O governo Lula costura com centrais sindicais e confederações patronais um projeto de lei (PL) que cria uma nova contribuição a ser descontada dos salários dos trabalhadores. O objetivo é ela que sirva de "recompensa" aos sindicatos por conquistas como reajustes salariais e seja paga por todos os profissionais, sindicalizados ou não. A cobrança dependerá de aprovação em assembleia da categoria, mas, uma vez autorizada, o trabalhador será obrigado a pagá-la, sem direito de oposição.
Da forma como está sendo desenhada, a cobrança contraria o espírito de uma recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). A Corte autorizou que a chamada contribuição assistencial – que já existe hoje – seja descontada de todos os trabalhadores, incluindo não sindicalizados. Mas os ministros decidiram que deve ser assegurado o direito de oposição.
No entender de representantes dos sindicatos, porém, o direito de oposição à nova contribuição deverá ser exercido somente durante a assembleia de trabalhadores. Se aprovada, argumentam, depois o profissional não poderá recusar o desconto no salário.
Centrais sindicais, confederações patronais e representantes do Ministério do Trabalho se reúnem desde abril para preparar a minuta do projeto que cria a nova contribuição. Ela será vinculada à realização de acordos de reajuste salarial entre patrões e empregados.
Ainda há impasses sobre a divisão dos recursos entre as entidades, mas a previsão é de que o texto-base esteja concluído até o início de outubro para ser enviado ao Congresso.
A premissa do grupo de trabalho foi elaborar uma contribuição que se distinguisse do antigo imposto sindical, extinto pela reforma trabalhista de 2017. Ele era compulsório, pago uma vez por ano, e tinha valor correspondente a um dia de trabalho.
A futura contribuição não será compulsória no sentido de que o desconto não será "automático"; ele dependerá de aprovação como parte de convenção coletiva. Se a maioria dos presentes à assembleia concordar com a cobrança, depois não haverá direito a contestação do pagamento.
Para Clemente Ganz Lúcio, coordenador do fórum das centrais sindicais, o direito de oposição deverá ser exercido na assembleia, em que votam todos os trabalhadores. Segundo ele, os acordos coletivos beneficiam a todos, filiados ou não. "Não tem sentido o trabalhador ser beneficiado e se negar individualmente a pagar a taxa da negociação", defende.
As convenções coletivas, ressalta Ganz Lúcio, costumam abordar centenas de questões de trabalho, desde bônus por horas trabalhadas até acordos de redução de jornada e de salário, quando necessário, todos aplicados automaticamente pela empresa.
"Nenhum funcionário pode se recusar a cumprir uma orientação de trabalho da convenção. Porque poderia se opor apenas ao ponto da taxa de financiamento?", questiona o sindicalista.
STF liberou cobrança de contribuição assistencial, mas com direito a oposição
A apresentação do projeto de lei, que deve autorizar cobrança de contribuição de até 1% do salário anual do trabalhador, pode ocorrer um mês após o STF ter permitido a cobrança de contribuição assistencial de todos os trabalhadores, inclusive os não sindicalizados. Na decisão, os ministros determinaram, no entanto, que deverá ser assegurado o direito de oposição.
Ganz Lúcio esclarece que as contribuições são distintas. A taxa vinculada aos acordos coletivos não é uma contribuição assistencial para atividades do sindicato, nem associação ou filiação mensal.
"É específica para fins de negociações e deverá ter valores razoáveis, sempre definidos pela assembleia. Por isso é preciso ter uma lei regulamentando o assunto de forma clara" defende.
A preocupação dos envolvidos é com o questionamento na Justiça. Fontes ligadas ao Ministério do Trabalho e Emprego afirmam que o ministro Luiz Marinho não gostou da retomada do julgamento da contribuição assistencial pelo Supremo, que resguardou o direito de oposição.
Marinho avalia que a decisão pode atrapalhar a ideia de estender a nova taxa a todos os trabalhadores. Ele gostaria de tratar do assunto só no Congresso, evitando assim brechas para contestações judiciais.
Em entrevista à revista "Exame", em agosto, Marinho chegou a afirmar que o STF "já legisla demais" e que o Legislativo é quem deveria dar a palavra final sobre o assunto.
Contribuições têm o mesmo objetivo de financiamento, diz especialista
Thiago Collodel, sócio coordenador do Araúz Advogados prevê uma confusão no entendimento sobre as contribuições e explica que, caso o PL seja aprovado, qualquer contestação da constitucionalidade deverá apreciada novamente pelo STF. "A decisão do Supremo sobre a contribuição assistencial não se aplica a essa nova taxa", entende.
Para Collodel, a nova cobrança foi a alternativa encontrada dos sindicatos para driblar a extinção do imposto sindical. "Taxar as normas coletivas é uma forma de garantir o financiamento dos sindicatos oferecendo um contrapartida aos trabalhadores", acredita.
Mas, para Antônio Galvão Peres, doutor em Direito do Trabalho pela USP e professor do Insper, ambas as taxas podem ser consideradas fontes de financiamento das entidades. "A função precípua é a mesma", avalia.
Especialmente, segundo ele, porque não há nada que garanta que ela será estritamente usada para o custeio das negociações coletivas. "Isso requer contas abertas aos associados para verificação, o que não é exigido pela nossa legislação", explica.
Alguns países, segundo Peres, já esbarraram no mesmo ponto. Na Espanha, o tribunal local regulamentou a destinação dos recursos estritamente para custeio das convenções. Nos EUA, servidores públicos de alguns estados conseguiram reverter na Justiça a compulsoriedade de chamada Agency Fee (taxa sindical) quando argumentaram que os recursos estavam sendo utilizados pelos sindicatos para defesa de pautas políticas e de costumes.
Para Collodel, existe a possibilidade de contestação futura sobre a vigência de duas contribuições com o mesmo fim. "É possível questionar a cumulatividade", observa.
Estrutura sindical arcaica é origem das distorções, e projeto não mexe nela
O Ministério do Trabalho defende que é necessário retomar, de alguma forma, o financiamento dos sindicatos. A queda de arrecadação desde o fim do imposto sindical, em 2017, foi de 98% – as receitas dos sindicatos caíram de R$ 3,6 bilhões, em 2017, para R$ 68 milhões em 2023, segundo um estudo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).
Para Galvão Peres, o problema central do financiamento das entidades, já conhecido dos especialistas no assunto, é a falta de liberdade do trabalhador para escolher o sindicato que o representa.
A unicidade sindical, prevista na Constituição, permite a existência de apenas um sindicato por categoria de trabalho, o que faz dos trabalhadores um mercado cativo.
"O argumento das Centrais de que o sindicato negocia em nome de todos e pode estabelecer uma contribuição compulsória e sem direito a oposição só é legitimo num regime de liberdade sindical", defende o professor do Insper.
Ganz Lúcio, do fórum das centrais, acredita que a nova contribuição vai forçar "sindicatos fantasmas" – que não representam efetivamente suas categorias – a se mexerem. "Todo esforço das centrais é fazer um negócio transparente, razoável e que não seja mais um imposto para pagar sem contrapartida da negociação", diz.
Grupo de trabalho criado pelo governo tem vício de origem, diz especialista
O professor Galvão Peres defende uma reforma mais ampla na estrutura sindical, vista como arcaica e corporativista. "Temos um sistema inspirado no modelo fascista italiano, onde o Estado busca controlar as relações de trabalho".
O grupo de trabalho criado pelo governo para atualizar a estrutura sindical, para ele, tem um vício de origem, já que é formado apenas por entidades sindicais e patronais já estabelecidas.
"Para reformar a atual estrutura, deveriam estar incluídos estudiosos, acadêmicos e pesquisadores das relações de trabalho", acredita. Um grupo composto exclusivamente das partes beneficiadas não vai modificar uma estrutura para se privar de poder", constata o professor.
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