A preocupação dos investidores com um possível afrouxamento da política de austeridade fiscal do governo para criar um novo programa social tem afetado a gestão da dívida pública. Eles estão cobrando prêmios (juros) mais altos para investir em títulos públicos e privados de médio e longo prazo no Brasil, justamente num período em que o Tesouro Nacional enfrenta problemas de liquidez para rolar a dívida, isto é, emitir dívida nova para pagar dívida antiga. Tal situação pode colocar o país à beira de uma crise fiscal, que trará reflexos para toda a sociedade.
A situação é explicitada pelos chamados juros futuros, ou seja, quanto os investidores pedem em troca – o chamado prêmio – para comprar títulos com vencimento daqui a alguns anos ou décadas. Quando os investidores estão pedindo prêmios mais altos, significa que a confiança na política fiscal está abalada.
Os juros futuros são o melhor indicador para mostrar como a preocupação com os rumos do governo está afetando a gestão da dívida pública, segundo Rodrigo Franchini, sócio da Monte Bravo Investimentos.
Ele avalia que esses juros são um termômetro mais preciso do desconforto com a parte fiscal do que a Bolsa, por exemplo. Isso porque o Ibovespa acaba sendo muito influenciado por variações externas, como no minério de ferro e no petróleo, que afetam diretamente Vale e Petrobras, que têm maior participação no índice.
“A curva de juros futuros é um indicador mais fidedigno [para a situação fiscal], porque ali você consegue ver de fato a exigência de prêmio pelo risco país. Quanto mais longo o título exigindo prêmio mais alto, quer dizer que a preocupação é muito maior pela questão de risco país. Você tem, então, a exata noção de como o mercado está vendo a sua economia”, diz Franchini.
Por causa do bate-cabeça recente do governo em torno do novo programa social, os investidores começaram a exigir prêmios mais altos em títulos de médio e longo prazo. O título do Tesouro prefixado com vencimento em 2026 está pagando 7,34% de juros ao ano. Em agosto, a taxa estava em cerca de 6%. Movimento semelhante ocorreu praticamente com todos os títulos do Tesouro e também com os Fundos DI nas últimas semanas. Os Fundos DI são fundos privados que aplicam quase a totalidade dos recursos em títulos do Tesouro atrelados à Selic.
A desconfiança levou a um movimento raro no mercado. Investidores passaram a exigir um prêmio para comprar LFTs, títulos do Tesouro atrelados à Selic. O juro adicional (além da Selic, hoje em 2% ao ano) exigido pelos compradores chegou a 0,37% ao ano, agora está em 0,19%.
Com essa exigência de prêmio mais alto, associado à percepção de risco maior, esses títulos se desvalorizaram. Isso é, o valor de mercado deles diminuiu, o que significa que quem os vendeu no momento da baixa perdeu dinheiro (quem, no entanto, permanecer com os títulos até o vencimento, recebe na íntegra o valor do título mais todo o juro prometido pelo Tesouro). Com a desvalorização momentânea das LFTs, os Fundos DI, que as acompanham, também sofreram uma rara desvalorização com a chamada "marcação a mercado" – que é a atualização, em geral diária, do valor de um ativo de renda fixa.
Segundo Franchini, isso só tinha acontecido antes nos anos 2000, mas era quase imperceptível. "A gente até teve essas marcações a mercado nas LFTs em alguns momentos de estresse no Brasil, principalmente ali no começo dos anos 2000, com as incertezas do novo governo. O problema é que, nessa época, a taxa de juros do Brasil era de 20%. Por mais que a marcação estivesse sendo feita, era quase imperceptível, devido aos juros que já estavam elevados. Agora, em cima de 2% [taxa de juros atual], é mais perceptível.”
Como chegamos até aqui
A exigência de prêmios mais altos nos títulos públicos e privados é explicada por dois motivos. Primeiro, porque a dívida pública do Brasil vai chegar a quase 100% do Produto Interno Bruto (PIB) neste ano, em virtude das muitas emissões que o Tesouro teve de fazer para financiar os programas emergenciais de combate à Covid-19 e seus efeitos na pandemia. O país já vinha de uma dívida alta – antes da pandemia, a previsão era fechar o ano em torno de 75% do PIB – e agora ficou ainda pior.
O segundo motivo são os sinais que o governo pode abandonar a política de austeridade fiscal. O pano de fundo é a criação de um programa social para substituir o Bolsa Família. Não há espaço dentro do Orçamento para criá-lo e o presidente Jair Bolsonaro não aceitou o corte, sugerido pela equipe econômica, de uma série de despesas de caráter social.
Integrantes do próprio governo passaram a defender a flexibilização do teto de gastos para criar o programa, de forma a deixá-lo de fora das limitações legais. Com o eventual drible no teto, a percepção do mercado é de que a dívida pública crescerá ainda mais rápido.
A equipe econômica é contra esse artifício e diz que vai achar uma solução. Só que a solução ficou para depois das eleições municipais, e o clima de incerteza permanece.
Tesouro em sinal de alerta
Em meio a tudo isso, há ainda a dificuldade de financiamento do Tesouro, que vem de antes da discussão do novo programa social. A secretaria responsável pelo “cofre” do governo está tendo que emitir títulos mais curtos, ou seja, com prazo de vencimento mais próximo – o que é ruim, porque aumenta a dívida de curto prazo sem que a situação fiscal do país esteja bem encaminhada.
Os títulos que vencem em abril do próximo ano, por exemplo, já somam R$ 268 bilhões, segundo o Tesouro Nacional. O montante equivale a 19% do total de dívida prefixada e a pouco mais de 6% de toda a dívida pública.
Essa situação é preocupante porque emitiu um “alerta amarelo” na gestão da dívida, afirma Sergio Goldenstein, estrategista da Omninvest e ex-diretor do Banco Central. “Uma dívida maior a ser refinanciada, com aumento dos vencimentos no curto prazo, emite um sinal amarelo. Neste ano de 2020, o Tesouro recorreu ao seu colchão de liquidez, reforçado pela transferência do lucro cambial do Banco Central, mas esse é um expediente não recorrente”, explica.
Ele se refere à transferência de R$ 325 bilhões do Banco Centra ao caixa do Tesouro, a pedido do governo. O dinheiro é fruto do lucro cambial registrado pela autoridade monetária no primeiro semestre deste ano com as suas reservas em dólares. A transferência foi autorizada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) devido às severas restrições para a gestão da dívida pública por parte do Tesouro.
Goldenstein afirma, ainda, que a acentuada inclinação da curva de juros indica que o atual patamar da taxa Selic não é condizente com os riscos fiscais. “Como resultado, o Tesouro vem encontrando dificuldade para emitir títulos de LFT e passou a concentrar suas emissões em títulos prefixados de curto prazo. O problema é que isso aumenta o risco de refinanciamento do Tesouro e ainda tende a pressionar o segmento da curva de juros que baliza com maior intensidade o crédito privado”, completa.
O que pode ocorrer se a situação não mudar
Se a situação não se resolver, ou se for resolvida com um afrouxamento da política de austeridade, o governo pode cair numa crise fiscal. É o que alertaram o Fundo Monetário Internacional (FMI), indiretamente, e o Deutsche Bank, diretamente, ambos em relatórios emitidos neste mês.
Em comunicado a clientes, o banco alemão afirmou que a política fiscal do Brasil está convidando a uma “crise da dívida”. Isto é, o Tesouro Nacional terá de pagar cada vez mais juros para vender seus títulos e um dia pode não conseguir rolar a dívida.
O banco alerta, ainda, para a “falta de comprometimento com a contenção de gastos”, o que pode empurrar o Brasil para um “abismo fiscal". “O tempo é difícil de determinar. Esses eventos [crise fiscal] normalmente demoram muito para acontecer, mas podem desdobrar mais rápido do que o esperado [no Brasil]”, diz o Deutsche Bank.
O FMI foi menos direto, mas ainda assim incisivo na importância da manutenção do teto de gastos para manter o risco país sob controle. “Com a dívida pública subindo para 100% do PIB, preservar o teto de despesas constitucional como uma âncora fiscal é essencial para apoiar a confiança do mercado e manter o prêmio de risco contido.”
“Na ausência de evidências inequívocas da manutenção do teto de gastos, qualquer despesa adicional poderia minar a confiança do mercado e elevar as taxas de juros”, completa o FMI, ressaltando que é “necessária uma consolidação fiscal substancial para reduzir o déficit primário [do governo central]”, medida necessária para “estabilizar a dívida pública no médio prazo”.
Como tudo isso afeta o dia a dia da economia
Caso o país entre realmente numa crise fiscal, as consequências serão sentidas por toda a sociedade. “Cada vez que você precisa elevar o prêmio para que o mercado compre seus títulos, você está com uma má reputação. A má reputação vai te machucar no médio e longo prazo”, diz Rodrigo Franchini, sócio da Monte Bravo Investimentos.
“Daqui a dois, três anos, ou mais, o que pode acontecer: alta de juros; você não consegue reduzir esse juro local, porque é mau pagador; a sua dívida começa a se tornar impagável; você não tem mais margem fiscal para fazer qualquer investimento; a inflação sobe; o dólar vai continuar alto”, resume. “Você não tem mais como fazer crescer a economia por meios fiscais e monetários, mas a sua dívida continua crescendo”, conclui.
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