Mesmo precisando de R$ 168 bilhões para cumprir as metas do arcabouço fiscal e zerar o déficit das contas públicas em 2024, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) resiste a cortar gastos e racionalizar despesas. O movimento, na verdade, é inverso.
Demonstrando de saída que o equilíbrio das contas não é uma prioridade, o novo governo conseguiu, antes mesmo de tomar posse, um acréscimo de R$ 145 bilhões em gastos para este ano, por meio da proposta de emenda à Constituição (PEC) da Transição – a PEC fura-teto.
"O governo fez, desde o início, a opção política de gastar mais, ampliando seu teto em 2% do PIB", explica Gabriel Barros, sócio e economista chefe da Ryo Asset.
Para fazer frente às despesas e substituir a regra do teto de gastos, que equilibrava o Orçamento desde a gestão Michel Temer (MDB), o governo petista conseguiu aprovar no Congresso um arcabouço fiscal apostando apenas no aumento das receitas por meio de tributação para fechar as contas. Como se não bastasse, o texto também determina um aumento real de despesas de no mínimo 0,6% ao ano, independente da arrecadação.
Desde o início do ano, o ministro Fernando Haddad, da Fazenda, tem enfrentado uma cruzada junto ao Legislativo para aprovar projetos visando arrecadar mais. Algumas medidas já foram aprovadas, outras aguardam votação ou ajustes. Estão entre elas a taxação de jogos eletrônicos, rendimentos no exterior (offshores) e fundos fechados. Mais adiante, o governo tentará retomar a tributação de lucros e dividendos na segunda fase da reforma tributária.
Mesmo com todas as iniciativas, observadores da cena fiscal duvidam que a meta de déficit zero em 2024 será cumprida. Segundo Barros, as projeções de arrecadação que o governo pôs no Orçamento são superestimadas.
Entre as maiores disparidades estão as expectativas de receitas vindas pelo restabelecimento do voto de qualidade do Carf em favor do governo nas disputas tributárias. O governo prevê aumento de R$ 50 bilhões com a medida; a Ryo Asset, de R$ 10 bilhões.
Outro exemplo é a nova sistemática de tributação dos cálculos de Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), editada por medida provisória. A previsão de arrecadação do Orçamento é de R$ 90 bilhões; para a Ryo Asset, não passará de R$20 bilhões.
A expectativa da empresa é de um déficit primário equivalente a 0,7% do PIB no ano que vem, similar à mediana das projeções do mercado (0,71%).
Para a consultora econômica Zeina Latif, o mercado nunca "comprou" a meta de déficit zero em 2024 e isso já vem sendo precificado. Por outro lado, houve alívio em Haddad ter mantido a meta. "Pelo menos, ainda não jogou a toalha", avalia. Ela observa que Haddad ainda é visto com condescendência pelo mercado, que acredita que a interlocução poderia ser mais difícil com quadros à esquerda do PT.
Lira critica agenda de taxações e pressiona por reforma administrativa
O descrédito sobre o cumprimento da meta fiscal e a longa sequência de medidas arrecadatórias têm aumentado as pressões sobre o governo para rever despesas.
As principais partiram do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), que tem se manifestado publicamente contra iniciativas de aumento de impostos propostas por Haddad.
Lira trouxe à tona a necessidade da reforma administrativa para fazer frente às críticas de que Executivo e Congresso só têm projetos para arrecadar e gastar.
Ele lembrou que a Câmara tem uma PEC – a 32/2020, apresentada pelo ex-ministro da Economia Paulo Guedes – para promover tal reforma, mas que ela não vai a plenário por falta de apoio do governo. Relatada pelo deputado Arthur Maia (União -BA), a proposta foi aprovada por comissão especial da Câmara em setembro de 2021, mas está na gaveta da Casa desde então.
A ideia de reforma ganhou adesão de frentes parlamentares e entidades setoriais. A iniciativa é considerada mais uma forma de demonstração de poder pelo presidente da Câmara, em meio a negociações de reforma ministerial para formação de base parlamentar do governo.
Independente do objetivo de Lira, a ideia é vista com bons olhos pelo mercado. Latif acredita que, assim como as reformas da Previdência e tributária puderam ser costuradas e acabaram aprovadas, o momento é propício para iniciar uma discussão sobre o tema.
As possibilidades de se concretizar, no entanto, são remotas, acredita a economista. "Não está no DNA deste governo um ajuste pelo lado das despesas, especialmente no setor público", diz.
Governo não quer reforma e defende alterações pontuais
O PT, historicamente alinhado ao corporativismo dos servidores, rechaça a proposta de reforma administrativa que está no Congresso. O governo se viu obrigado a discutir alternativas, em meio à continuada pressão de Lira, mas declarações de ministros indicam que o Executivo defenderá, no máximo, alterações pontuais na legislação.
A ministra de Gestão e Inovação, Esther Dweck, tem defendido que as regras do funcionalismo precisam de ajuste, mas não apoia o fim da estabilidade dos servidores. Uma das propostas em discussão é um pacote "fatiado" de medidas que envolvem o setor público, sem apresentação de emenda constitucional.
Após reunião de ministros na terça-feira (5) para discutir formas de responder à demanda por racionalização do Estado, a ministra classificou de "muito ruim" a PEC 32. Questionado, Haddad também não quis não se comprometer com a reforma administrativa.
Segundo ele, o governo estuda formas de "modernização do Estado", defendendo aprimoramento nas regras para concursos públicos e também a aprovação do projeto de lei para limitar os "supersalários" no serviço público, emperrado no Senado desde 2021, após pressão do Judiciário. "Temos conseguido avançar com muitas questões, podemos conseguir com o projeto também", disse Haddad a jornalistas.
Reforma administrativa pode gerar economia de R$ 180 bilhões em dez anos
Para Barros, apesar das resistências internas, há chances de a reforma administrativa prosperar, com o Congresso chamando para si a responsabilidade. Ele vê o momento como ideal, em razão da necessidade de renovação do quadro funcional do setor público.
Segundo estudo da Ryo Asset, com uma versão conservadora de reforma que afetasse apenas futuros servidores, a economia aos cofres públicos poderia ser de até R$ 180 bilhões nos próximos dez anos.
"É um volume que começa pequeno e vai ganhando corpo a cada ano, com a aposentadoria dos atuais servidores", explica. Barros diz que o governo deveria aproveitar os próximos concursos para estabelecer a nova regra. "Se não mudar agora, a atual despesa será estendida por mais 40 anos", alerta.
Antes da reforma, prioridade deveria ser racionalização dos gastos, diz economista
Para Bruno Carazza, economista e professor associado da Fundação Dom Cabral, a reforma não é uma "bala de prata" para o ajuste das contas e seus resultados mais expressivos são no longo prazo. A prioridade do governo, segundo ele, deveria ser a revisão de despesas que possam aliviar as contas no curto prazo. "É preciso passar um pente-fino na estrutura de gastos para uma reavaliação das políticas públicas", defende.
Carazza acredita que vários programas que não dão o resultados esperados poderiam ser extintos, fundidos ou remodelados. "A revisão deveria abranger desde os programas de transferência de renda até os gastos com emendas parlamentares, que são distribuídas para estados e municípios sem acompanhamento efetivo dos resultados das políticas públicas", diz.
Uma secretaria especial foi formada dentro do Ministério do Planejamento para esta função, mas os trabalhos não têm evoluído. A ministra Simone Tebet teve seu papel reduzido, com desgastes públicos de perda de poder, como no caso da nomeação do novo presidente do IBGE, Márcio Pochmann, pelo presidente Lula.
Para Carraza, a secretaria tem bons especialistas na qualidade do gasto público e sabe o que deve ser feito. "Mas isso nada adianta se o presidente não tem vontade política de racionalizar gastos e ajustar as contas públicas", finaliza.
Ajuste fiscal com base apenas em arrecadação é equívoco, diz economista
A decisão do governo atual de fazer um ajuste fiscal com base apenas no aumento da receita e não no controle de gastos é uma premissa equivocada, na avaliação de Barros, da Ryo Asset.
Segundo o economista, a literatura acadêmica internacional mostra que países que fizeram ajustes lado da arrecadação tiveram resultados macroeconômicos piores que as economias que combinaram medidas de ajuste de receita e corte de despesas.
Ele cita um estudo publicado no Journal of Economics Perspectives, intitulado "Efeitos da Austeridade: Despesas e Abordagens baseadas em impostos", que mostra os reflexos indesejados da estratégia única de arrecadação sobre inflação, taxa de juros e crescimento do PIB. "A receita não é totalmente previsível, o que gera incerteza e altera as expectavas futuras do mercado", explica.
O mercado avalia que em algum momento o ministro Fernando Haddad será obrigado a revisar a meta do arcabouço fiscal, o que pode mexer com a trajetória dos juros pelo Banco Central.
Para Barros, isso deve acontecer a partir de dezembro, quando já estiverem aprovados pelo Congresso os novos projetos tributários para aumentar a arrecadação.
Neste momento também se terá definição do cenário externo e das perspectivas de recessão americana, que podem afetar os mercados mundiais. "Se a realidade mostrar a impossibilidade de cumprir a meta, alguma medida concreta terá de ser tomada em relação à contenção de gastos", prevê o economista.
Para a consultora econômica Zeina Latif, é difícil estabelecer uma data limite para a revisão da meta. Ela acredita que a depender de inúmeros fatores, domésticos e externos, a fatura pode sobrar para o próximo governo. "Por enquanto, a possibilidade de corte de gastos é mais retórica. Este governo só vai fazer o ajuste se for obrigado pelas circunstâncias", acredita.
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