Decreto preparado pelo governo Lula contraria o espírito liberalizante da “BR do Mar” e tende a manter entraves que impedem expansão mais forte da navegação de cabotagem.| Foto: Claudio Neves/Fotos Públicas
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Prestes a ser regulamentada, a lei 14.301/2022, que cria a "BR do Mar", dificilmente vencerá o desafio de alavancar o transporte marítimo de cargas entre os portos brasileiros, segundo especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo.

Depois de uma novela de mais de um ano, a minuta do decreto de regulamentação foi finalizada neste mês, após uma "adequação" feita pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Atendendo a demandas de estaleiros brasileiros e sob o pretexto de proteger a soberania nacional, as alterações feitas gestão petista vão na contramão do espírito liberalizante da lei idealizada pelo governo de Jair Bolsonaro (PL). Com isso, a tendência é de que persistam os entraves que há décadas impedem uma expansão mais forte desse tipo de navegação.

A edição de uma normativa de caráter protecionista se alinha à intenção de Lula de recuperar a indústria naval brasileira. Para isso, o governo também estuda elevar os índices de conteúdo local exigidos das petroleiras, para que façam mais encomendas aos estaleiros brasileiros.

A manobra na BR do Mar lembra outras tentativas do governo petista de reverter mudanças aprovadas na gestão passada. Um exemplo é o Marco do Saneamento. O decreto regulamentador assinado por Lula em abril foi na contramão do objetivo da lei, que buscava estimular a concorrência no setor ao impedir contratos sem licitação entre municípios e estatais de saneamento. Depois de embates com a Câmara, que sustou o projeto, o Senado contemporizou e o governo apresentou uma nova proposta, considerada intermediária.

Proposta pelo Ministério da Infraestrutura do governo Bolsonaro, a BR do Mar, também denominada "Lei da Cabotagem", tinha objetivos ambiciosos. A ideia era reduzir a dependência histórica do transporte por rodovias, que eleva o "custo Brasil" pela necessidade de manutenção mais frequente e elevado risco de acidentes.

Atuando em várias frentes, o projeto pretendia triplicar, em três anos, a participação do transporte de mercadoria entre portos nacionais – que, apesar dos mais de 8 mil quilômetros de costa marítima, representa apenas 11% da matriz logística brasileira. Ferrovias representam outros 20% e as rodovias são o meio de mais de 60% das cargas que circulam pelo país.

Para isso, entre outras ações, a BR do Mar previa a flexibilização de regras de afretamento de embarcações de outros países pelas transportadoras que atuam no Brasil, estimulando a concorrência e reduzindo os custos para os usuários.

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A capacidade da frota marítima dedicada à cabotagem, pelos cálculos do governo Bolsonaro, aumentaria em 40%, enquanto o volume transportado saltaria de 1,2 milhão de TEUs (unidade equivalente a 20 pés) de contêineres transportados por ano em 2019 para 2 milhões de TEUs já em 2022.

Nada disso aconteceu e nem vai acontecer tão cedo, acredita Ademar Dutra, professor da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul) e coordenador do Cidesport, Congresso Internacional de Desempenho Portuário, que acontece todos os anos no Brasil, reunindo pesquisadores e gestores da área. A proposta inicial, explica ele, visava estimular novos players e a concorrência. Agora, o viés é proteger a indústria nacional. "Tivemos uma guinada de 180 graus na orientação", diz.

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Lei "afronta a soberania nacional", alega Frente Parlamentar da Indústria Naval

A regulamentação da BR do Mar deveria ter ocorrido logo após a sanção da Lei, mas se perdeu na burocracia e no conflito entre os agentes envolvidos.

O governo Bolsonaro não deu prioridade a esse processo, frustrando as expectativas do setor. Com a mudança de governo, O Ministro dos Portos e Aeroportos, Márcio França, anunciou em março, num evento do setor no Rio de Janeiro, que iria rever o decreto para "aperfeiçoar a lei aprovada".

Houve nova discussão com setores da indústria e o decreto a ser publicado, segundo Dutra, já deve contemplar as "alterações ao espírito liberalizante do projeto inicial".

A expectativa do ministério é que o decreto seja publicado até fim de agosto, mas há pontos cruciais em discussão. A Frente Parlamentar em Defesa da Indústria Naval Brasileira, presidida pelo deputado Alexandre Lindenmeyer (PT-RS), quer a garantia de que os interesses do setor sejam atendidos.

Em entrevista à revista especializada "Portos e Navios", o parlamentar disse que é preciso revisar pontos da BR do Mar que "atingem a competitividade da indústria e afrontam a soberania nacional".

O principal ponto de impasse diz respeito ao afretamento de navios de outras bandeiras para transporte de cargas. Com a “BR do Mar”, as companhias ganharam permissão para afretar navios estrangeiros livremente, depois de um período de transição de quatro anos – durante este intervalo, há um limite no número de navios que podem ser alugados, que vai aumentando progressivamente.

A legislação atual atrela essa possibilidade a uma condição básica: para cada embarcação estrangeira alugada, deve haver uma em construção num estaleiro nacional. Para especialistas, isso aumenta muito o volume de investimento necessário às empresas que exploram o setor, dificultando a entrada de novos e pequenos players.

Por trás da regra está a proteção à indústria naval. O ministro Márcio França já declarou sua concordância e enfatizou o potencial dos estaleiros brasileiros, que na visão dele poderão receber novos pedidos de produção de navios para escoar a produção. "É uma indústria estratégica para o Brasil. O presidente Lula nos pediu atenção especial com o setor", destacou o ministro à "Portos e Navios".

Legislação trabalhista e insegurança jurídica são entraves

Para Luis Fernando Resano, diretor executivo da ABAC, Associação Brasileira de Armadores de Cabotagem, as empresas nacionais têm motivos de preocupação porque os investimentos são muito altos e há problemas de competitividade, como a legislação trabalhista que encarece a mão de obra e os impostos sobre os combustíveis.

O aluguel de embarcações estrangeiras, em alguns casos, permite a tripulação estrangeira, que não é regida pela legislação brasileira. "Sem atacar os pontos centrais de custos, nenhuma lei vai conseguir alavancar a cabotagem no país", resume.

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Paulo Villa, diretor executivo da Associação dos Usuários de Terminais da Bahia (Usuport), lembra que os donos da carga são os mais afetados pelos altos custos de cabotagem. Para além da legislação e dos insumos, a redução dos custos depende do aumento de escala. "Nosso volume transportado ainda é ínfimo diante da capacidade", diz.

Seriam necessários robustos investimentos em terminais com linhas direta, infraestrutura logística e de transbordo, rotas eficazes e "muitas coisas que os portos brasileiros não têm", afirma.

Para Ademar Dutra, da Unisul, a falta de regulamentação no tempo previsto aumentou a insegurança jurídica e impediu os investimentos previstoa na elaboração do projeto da "BR do Mar". "Nosso custo logístico continua altíssimo por conta de entraves nas ações públicas que o Estado não faz e não deixa fazer", resume.

Ele vê com pessimismo o decreto tardio com o novo viés protecionista. "Em termos de competitividade do país, será um retrocesso. Como em outros aspectos, reafirmamos nossa tendência de andar de lado ou para trás ", lamenta.