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Entrevista

Governo quer Brasil como “ponte” entre países emergentes e desenvolvidos na OCDE

Ministro Celso de Tarso Pereira, coordenador-geral para assuntos da OCDE no Itamaraty. (Foto: Instituto dos Advogados do Paraná)

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Convidado em janeiro a iniciar o processo de acessão à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil quer se tornar uma espécie de “ponte” nas discussões entre os países desenvolvidos que integram a entidade e os emergentes, sub-representados na organização.

A avaliação é do coordenador-geral para assuntos da OCDE no Ministério das Relações Exteriores, ministro Celso de Tarso Pereira. “O Brasil quer entrar com a envergadura própria, e a OCDE reconhece isso”, diz o diplomata.

“O Brasil transita com boa parte do mundo em desenvolvimento. Ao mesmo tempo, a gente quer entrar em um grupo que tem basicamente países desenvolvidos. O Brasil quer ser uma ponte entre esses dois mundos, digamos assim”, afirma.

Em janeiro, a organização formalizou o convite para o governo brasileiro dar início às tratativas para o ingresso no quadro de membros permanentes. O país prepara agora um memorando inicial, uma espécie de autoavaliação a respeito do alinhamento ao acervo normativo da organização, composto de 257 instrumentos. Até agora, o Brasil já atende a 112.

Apesar de conhecida como “clube dos países ricos”, a organização é mais precisamente um fórum que discute e promove as melhores práticas em políticas públicas, além de realizar uma série de estudos internacionais nas mais diversas áreas. Tem sede em Paris e reúne 38 países comprometidos com a democracia e a economia de mercado, a maior parte desenvolvidos, com alta renda e elevado Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), mas também emergentes, como Costa Rica, Colômbia, Chile, México e Turquia.

Foi fundada em 1961 a partir da antiga Organização para a Cooperação Econômica Europeia (OCEE), que, por sua vez, havia sido criada em 1948 para estimular a ajuda mútua entre nações europeias afetadas pela Segunda Guerra Mundial. Com a transformação, a adesão foi estendida a países de outros continentes.

Não há prazo para a finalização do processo de acessão do Brasil, que pode levar até sete anos, segundo Pereira.

O diplomata esteve em Curitiba na última segunda-feira (15), falando sobre o tema em evento do Instituto dos Advogados do Paraná (IAP). Confira a seguir a entrevista que ele concedeu à Gazeta do Povo:

Cinco anos após manifestar interesse em ingressar no quadro da OCDE, o Brasil recebeu o convite para iniciar o processo de acessão à organização. Em junho, foi divulgado o roadmap para que o país se torne membro permanente. Em que etapa do processo o Brasil está neste momento?

Em janeiro de 2022, finalmente a OCDE estendeu o convite para o início do processo de acessão para alguns países, três europeus e três da América Latina: Brasil, Argentina e Peru, Romênia, Croácia e Bulgária. O da Argentina, por vários motivos, não seguiu em frente, mas o Brasil no mesmo dia, 22 de janeiro, respondeu – o que era uma fase obrigatória – por meio de uma carta em que declara formalmente que quer iniciar o processo de acessão e que vai cumprir com as tarefas necessárias para isso. Então são cinco países que estão agora nesse processo.

Em 10 de junho, como você disse, a OCDE finalmente lançou o roadmap para os países, e para o Brasil especificamente. Esse roadmap estabelece o quadro das regras e o caminho que o Brasil deverá seguir para, em um prazo não determinado, aceder à OCDE. Geralmente, com base na experiência de outras acessões, isso pode demorar de dois a sete anos. É verdade que o Brasil sai com um pouco de avanço, porque, de todos os países não membros, é o que tinha a maior afinidade com o acervo normativo da OCDE.

Depois do roadmap, logo em seguida, houve as kick-off sessions, sessões de início do processo mesmo. Funcionários da OCDE que vieram ao Brasil para um evento chamado “Semana Brasil OCDE”, que o Itamaraty organizou. Houve um segmento só do governo com os funcionários da OCDE para uma primeira conversa, ainda informal, sobre o que vai acontecer a partir de agora no processo de acessão. Isso aconteceu no final de junho.

Agora estamos no momento da formulação do memorando inicial, que é um documento muito importante. É um grande mapa, um grande raio-X, um diagnóstico, do que o Brasil precisa fazer para entrar na OCDE e de qual é o grau de alinhamento que o Brasil tem, na sua legislação e na sua prática, em relação ao acervo normativo já existente da OCDE. Tem que fazer uma revisão de tudo, para cada uma das recomendações, decisões, declarações da OCDE, e tem que ver se o Brasil já está alinhado, se está parcialmente alinhado, ou se ainda tem um longo caminho a percorrer.

Como está a elaboração desse memorando inicial?

Esse raio-X, esse diagnóstico, está sendo feito agora por várias áreas do governo brasileiro. A entrada na OCDE é um processo transversal, que afeta muitos setores. São 26 comitês. Se você pega os temas que serão analisados, corresponde a todo o governo brasileiro. Desde os temas tradicionais, como finanças, assuntos fiscais, tributação, comércio, investimento, mas também estrutura de educação, saúde, meio ambiente, economia digital, governança corporativa, corrupção. É muita coisa. É toda a Esplanada em Brasília.

Isso demanda muita coordenação. O Itamaraty e os demais órgãos do governo, o Ministério da Economia, principalmente, e a Casa Civil, todos nós estamos tentando, pouco a pouco, naturalmente, fazer ver a todas as autoridades governamentais, e claro que a sociedade civil também, por tabela, que a acessão à OCDE demandará um alto grau de coordenação de todo o governo brasileiro. Você tem que pôr realmente toda a máquina para funcionar. Da revisão da legislação à implementação disso.

Há um prazo para a entrega desse memorando?

Da parte deles, não. Tem uma intenção nossa de fazer mais ou menos rápido, mas é uma rapidez que depende das circunstâncias. A previsão é entregar ainda neste segundo semestre. A partir do momento em que isso seja entregue à OCDE, considero que aí, sim, começa para valer o processo de acessão.

A partir daí, a OCDE vai receber cada uma das áreas, em cada um dos 26 comitês, e vai começar a analisá-las, à luz do que o Brasil entregou e do que eles já sabem – eles têm vários estudos e um secretariado forte –, e vai começar um diálogo cooperativo, com questionários, visitas, missões de lado a lado, para avaliar esse alinhamento: se o Brasil está ou não está alinhado, o que precisa ser feito, como pode ser feito e em que prazo. Haverá desde coisas mais simples, como ajustar um detalhe aqui ou ali, a outras mais complicadas, que demandarão, por exemplo, uma nova lei, que terá de passar pelo Congresso e ser implementada. Tudo isso antes da acessão. Nada fica para depois. No passado isso era possível, hoje não é mais.

O importante disso é que a OCDE vai avaliar não só a parte legal – se realmente você tem uma lei, uma portaria – mas especialmente a implementação disso. E aí nós sabemos que pode ser mais difícil. Porque independente dessa questão da entrada na OCDE, muitas vezes você tem a legislação, mas na prática é outra coisa, não funciona, não se consegue implementar por vários motivos.

Como está o alinhamento do Brasil em relação ao conjunto de normas da organização?

São 257 instrumentos legais que o Brasil tem de incorporar, de uma maneira ou outra. Ao longo dos anos, o Brasil já tinha voluntariamente incorporado 112, e isso está evoluindo. Ao mesmo tempo, a OCDE continua produzindo novas normas, e o Brasil continua incorporando.

Então o Brasil já tinha um caminho, que agora começa formalmente. O convite veio em janeiro, mas isso tudo é resultado de uma aproximação gradual que vem desde a década de 1990. Era um momento em que, dos dois lados – tanto da OCDE quanto do Brasil –, houve uma mudança de atitude. No Brasil, foi o início do processo de reformas, de mudanças estruturais, fim da hiperinflação, de certo descontrole econômico. Do lado da OCDE, eles começaram a ver que alguns dos países-membros e que a própria organização estavam perdendo importância relativa. Então a OCDE começou a refletir se não era melhor eles se modernizarem e levarem em conta a situação internacional. Tinha países importantes aparecendo e que não estavam na organização: os emergentes, na América do Sul, na Ásia.

Com essa percepção do lado da OCDE, que era uma instituição estritamente de países desenvolvidos – a maior parte europeus, mas também com Estados Unidos, Japão, Coreia e outros –, eles começaram a dar sinais de que estavam abertos. E o Brasil aproveitou isso. Em 1994, juntou-se ao Centro de Desenvolvimento; em 1996, ao Comitê do Aço. Isso foi se adensando nas décadas seguintes, entre idas e vindas, até 2017, quando o Brasil fez um gesto junto à OCDE de manifestar seu interesse em ingressar na organização.

Após a análise do memorando inicial pelos 26 comitês, qual o próximo passo?

Essa análise pode durar – ninguém sabe –, dois, três, quatro, cinco, seis, sete anos. Talvez mais, ou menos. Isso vai depender da velocidade dos dois lados, das dificuldades, até da situação geopolítica mundial. Por exemplo, a própria guerra da Rússia e Ucrânia afeta. A tensão entre Estados Unidos e China afeta. A própria OCDE, para onde vai? Ela vai continuar a ser a “casa das boas práticas” ou ela vai se tornar algo mais, mais ideológica? E o Brasil? Temos eleições este ano. Qual será a situação política no Brasil? Tudo isso pode afetar. Pode dar mais velocidade ou menos.

Quando essa análise técnica terminar, aí será feito o memorando final, com a colaboração, claro, dos dois lados. Aquele inicial, revisado, vai se tornar um memorando final. Esse documento vai então ser apresentado, não mais ao secretariado da OCDE, mas, sim, ao Conselho da OCDE, que é composto basicamente pelos representantes dos 38 países-membros mais o secretário-geral. Eles têm de decidir por unanimidade. Então não é uma coisa fácil. Se você tiver um problema específico com um dos 38 países, isso pode dificultar. Com questões que têm a ver estritamente com os compromissos para acessão, ou mesmo com questões paralelas.

Os Estados Unidos manifestaram apoio à entrada do Brasil na OCDE após sinalizar que não fariam. Já a França, logo após o convite, afirmou que o ingresso dependeria de ações concretas contra o desmatamento e mudanças climáticas. Como está hoje o apoio internacional à entrada do Brasil na organização?

Os Estados Unidos, naquele começo, de fato, não estava fácil distinguir. Os sinais não eram tão claros de lado a lado, mas, sim, eles estão apoiando. Isso não significa que o Brasil não vai ter dificuldades ou demandas por parte deles, da França ou de outros países, sobre questões específicas. Quer daqueles assuntos já previstos no processo de acessão, analisados pelos 26 comitês, quer questões bilaterais, que eles aproveitam para discutir. É um momento, claro, de negociação.

Então o Brasil pode se deparar com demandas relativas, por exemplo, a meio ambiente, à abertura de mercado. Os países vão aproveitar esse momento: “Você quer entrar aqui? Então faça isso ou aquilo”. Será uma negociação. O Brasil está preparado para isso, está atento para ver o que faz sentido e o que não faz. Mas é um processo interessante, que vai demandar, por isso, toda a atenção e coordenação do governo brasileiro. Para entrar, mas também respeitando os interesses brasileiros nesse processo.

Em relação às exigências da OCDE, quais devem ser os maiores desafios para o Brasil cumprir?

De maneira mais específica, mais detalhada, ainda estamos fazendo esse levantamento, que em parte vem da própria preparação do memorando inicial, a partir de uma avaliação e uma compilação de legislação, de dificuldades, de desafios, que pode haver em várias áreas. Mais especificamente onde temos problemas, acho que vai ficar claro mais adiante.

Na área tributária, sem dúvidas, tem coisas que já se sabe há décadas que tem o Brasil precisa se adaptar. Mas, por outro lado, também é verdade que tem havido uma aproximação muito grande entre o governo brasileiro, a Receita Federal, o Ministério da Economia – na última década, pelo menos, mas também desde a década de 1990 – junto com a OCDE, a respeito de várias questões tributárias. Primeiro, sobre evasão fiscal, paraísos fiscais, luta contra corrupção.

Agora, estão sendo discutidos três assuntos muito importantes. Primeiro, o preço de transferência, um tema muito técnico, que é a tributação aplicável às operações entre empresas afins, como a filial de uma multinacional no Brasil. O Brasil aplica um critério que é único, diferente de todos os países da OCDE. A Receita Federal está conversando, com a intenção de mandar um projeto de lei ainda este ano para o Congresso para avaliação. [Segundo o Ministério da Economia, uma medida provisória sobre o assunto deve ser publicada até o fim de agosto].

Tem ainda a questão de erosão da base tributária e destinação de lucros, que também já é fruto de uma discussão longa de vários países, mas também da nossa Receita Federal, do nosso governo, com a OCDE. E, por último, a criação do IVA [Imposto sobre Valor Agregado], aquele imposto único, que também está sendo discutido.

O próprio processo de acessão pode acelerar isso. Na verdade, talvez seja o principal motivo da entrada do Brasil. Utilizar esse fator externo para obter reformas e mudanças internas importantes. Nós buscamos hoje de uma maneira talvez não tão eficaz. Com a OCDE e com prazos, isso pode ser acelerado e alcançado. Conseguir alcançar boas práticas, que permitam ao Brasil entrar na OCDE, claro, mas que são boas para o Brasil e que não estávamos conseguindo de outra maneira. Agora é importante dizer: não se dará em um passe de mágica, e não é que o Brasil vai mudar da água para o vinho. “Atendemos a esses pré-requisitos, agora o Brasil virou um país desenvolvido”. Não é isso. Isso é um processo que ajuda.

Quais outros ganhos o Brasil pode ter ao entrar na OCDE?

O Brasil passa a ter um acesso facilitado a boas práticas internacionais, especialmente na área de políticas públicas e governança geral. Estará seguindo as melhores práticas na área de finanças, tributos, educação, meio ambiente etc. Todas as áreas do governo. Com isso, ganha racionalidade e mais força no cenário internacional. É visto como um país mais confiável e sério, o que, em tese, pode atrair mais investimentos. É como ganhar um selo de qualidade para o país em diversas áreas.

E mais: você vai estar dentro da OCDE ajudando a formular as regras que hoje você só está adotando. Vai ter condições de informar padrões e regras que depois vão valer no mundo inteiro para o comércio internacional. Em vez de ver de fora, você vai estar dentro. O que é feito na OCDE também tem repercussões na OMC [Organização Mundial do Comércio], na OIT [Organização Internacional do Trabalho], na OMS [Organização Mundial da Saúde], na FAO [Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura].

Como o senhor comentou, estamos em ano eleitoral, e a entrada na OCDE não é unanimidade entre os candidatos à presidência. O PT, por exemplo, questiona o alinhamento exigido ao Brasil a normas instituídas majoritariamente por países desenvolvidos, visto pelo partido como uma afronta à soberania nacional. Há a possibilidade de o processo de acessão ser interrompido a depender de quem for eleito presidente?

O governo eleito saberá o que fazer. O que posso dizer é que esse processo, como eu falei, tem vários momentos que vem acontecendo desde a década de 1990. Passou por vários governos: Fernando Henrique, Lula, Dilma, Temer, Bolsonaro. Então tem momentos de mais ou menos rapidez, de maior ou menor aproximação, desde os anos 1990, através de todos esses governos. Sempre dependeu da ênfase que cada governo quis dar a essa aproximação e vai depender do governo que estiver aí em 1.º de janeiro.

O que tem se dito ao longo do tempo é que o Brasil quer entrar com a envergadura própria, e a OCDE reconhece isso. O Brasil é do grupo dos Brics [Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul], é G20 [grupo das 19 maiores economias do mundo mais a União Europeia], e transita com boa parte do mundo em desenvolvimento. Ao mesmo tempo, a gente quer entrar em um grupo que tem basicamente países desenvolvidos, embora tenha a Costa Rica, o México, a Colômbia, entre outros. O Brasil quer ser uma ponte entre esses dois mundos, digamos assim. Nós achamos que a OCDE reconhece isso, ou vai reconhecer. Então as coisas podem ser levadas em paralelo, mas, naturalmente, você tem razão, é uma decisão de natureza política. Aí o governo eleito fará o que achar melhor.

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