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O governo federal estuda apresentar uma proposta de emenda constitucional (PEC) para permitir à União parcelar o pagamento de precatórios – dívidas que não são mais passíveis de recursos, uma vez que já percorreram todas as instâncias judiciais. Na prática, o governo deseja postergar uma despesa obrigatória que consome grande parte do Orçamento, e que deve crescer consideravelmente com as correções monetárias.
A medida ainda não foi oficialmente apresentada. Mas, nos bastidores, é tida como uma espécie de contenção temporária dos gastos com essas dívidas, que poderia gerar uma margem de cerca de R$ 40 bilhões no Orçamento de 2022. Esse alívio daria ao governo mais recursos para "turbinar" o programa que tem sido chamado de "Auxílio Brasil", que deve substituir o Bolsa Família, além de outras ações.
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) já sinalizou a intenção de elevar a média do benefício que será pago para, "no mínimo", R$ 300 – hoje o valor médio é próximo de R$ 200. A promessa de elevar o montante geraria uma conta para o governo de ao menos R$ 50 bilhões por ano. A expectativa da equipe econômica é lançar o programa social em novembro.
Para aprovar uma emenda à Constituição, como deseja o governo, são necessários os votos de 308 deputados e 49 senadores no Congresso Nacional, com dois turnos de votação em ambas as Casas.
Precatórios podem chegar a R$ 90 bilhões em 2022
Em 2022, ano eleitoral, os precatórios da União podem chegar à cifra de R$ 90 bilhões – muito superior aos R$ 55 bilhões de 2021. A proposta que deve ser endereçada ao Congresso Nacional nos próximos dias deve prever, segundo informações de bastidores, o parcelamento em até dez anos de dívidas acima de R$ 66 milhões (chamadas de "superprecatórios"). No outro extremo, os precatórios de até R$ 66 mil – sentenças consideradas de pequeno valor – serão pagos integralmente, sem parcelamento.
Um dos passivos da União, da ordem de bilhões de reais, é relacionado ao Fundef, hoje substituído pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb). Uma tentativa de parcelamento desses recursos deve encontrar rejeição por parte da categoria dos profissionais da educação.
Informações que vieram a público dão conta de que a União também estuda criar um fundo patrimonial com recursos provenientes de outras áreas, como ativos, para bancar os precatórios fora do teto de gastos.
Diferentemente do que ocorre no âmbito do governo federal, em que os precatórios – dívidas que podem ficar por décadas tramitando no Poder Judiciário – devem ser quitados até o final do exercício seguinte à sua expedição, o parcelamento das dívidas é uma prática recorrente em estados e municípios. Os entes podem fazer isso em casos em que o pagamento de precatórios comprometa a prestação de serviços públicos básicos à população.
Bola de neve fiscal, manobra, pedalada: a reação de especialistas à proposta
A medida preparada pelo governo é tida por alguns economistas como um "calote" e até "pedalada fiscal" – prática de postergar pagamentos que serviu de motivo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT).
Frente à dívida pública já elevada, a "manobra" poderia se tornar insustentável no longo prazo, sinalizando que o governo não deve honrar o compromisso com as dívidas. Para outros analistas, no entanto, a intenção de deixar esses gastos fora do teto é legítima, uma vez que eles são "imprevisíveis".
Paulo Guedes, ministro da Economia, afirma que não se trata de "calote". "Devo, não nego; pagarei assim que puder", afirmou o titular da pasta em entrevista ao Poder 360 nesta terça-feira (3). Questionado sobre o aumento significativo das dívidas, ele afirmou: "Não sei se dormimos no ponto. Possivelmente, faltou capacidade de autocontrole para todo mundo".
A proposta de envio da PEC foi discutida na segunda-feira (2) entre os presidente do Senado e da Câmara, respectivamente Rodrigo Pacheco (DEM-MG) e Arthur Lira (PP-AL) e os ministros Paulo Guedes, Flávia Arruda (Secretaria de Governo), João Roma (Cidadania) e Ciro Nogueira (Casa Civil).
"Envidaremos os esforços para essa solução, com especial destaque ao fato de que a população carente precisa ser assistida com uma renda mínima que minimize a fome e a miséria no Brasil", escreveu Pacheco em seu perfil no Twitter.
Em nota, o Supremo Tribunal Federal (STF) disse que a "necessidade de conciliação para não prejudicar os cofres públicos foi tratada em conversa entre o ministro Luiz Fux, presidente da Corte, e o ministro Paulo Guedes. A partir de agosto, os moldes dessa negociação serão definidos e informados à sociedade".
A jornalistas, Arthur Lira negou que tenha discutido com membros do governo que o valor do novo Bolsa Família será de R$ 400, e que, além disso, não foi discutida a possibilidade de incluir o benefício dentro de uma PEC ou furar o teto de gastos.
"Nós não queremos romper o teto e o Brasil não pode dar calote. Não houve essa conversa de R$ 400, não há essa conversa de Bolsa Família dentro de PEC, não há essa conversa de furar teto de gastos", disse o presidente da Câmara.
Financiamento do Bolsa Família
O governo tem investido em várias estratégias para conseguir financiar o novo programa social, mas a maneira como a União vai bancar os recursos sem exceder o teto de gastos ainda é pergunta sem resposta entre especialistas e economistas.
Uma das estratégias, indicada pelo próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, é carimbar os recursos da taxação de dividendos, prevista na reforma o Imposto de Renda, e direcioná-los para o programa.
Um projeto de lei endereçado pelo Executivo ao Congresso Nacional abre uma exceção à Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e altera a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2021, permitindo ao governo comprometer recursos ainda em discussão para direcioná-los a um programa social. Isso é, antes mesmo que as verbas sejam obtidas.
A ideia é que os recursos oriundos da reforma do IR – que, se aprovada, deve taxar em 20% a distribuição de dividendos, hoje isenta – banquem o novo programa social a ser lançado pelo governo federal. Na prática, a proposta legislativa altera a lei para permitir que despesas relativas aos programas de transferência de renda para o "enfrentamento da extrema pobreza e da pobreza", como é o caso do novo Bolsa Família, possam considerar como compensação projetos que ainda estejam em tramitação no Parlamento.
Uma outra estratégia tentada pelo governo federal para bancar o novo programa social foi atrelar recursos oriundos da capitalização da Eletrobras à iniciativa.
A MP 1.031, já sancionada pelo presidente, estabelece que, a partir de 2023, quando devem estar quitados os empréstimos e financiamentos da Itaipu (que não será privatizada), 25% do eventual superávit financeiro da usina binacional será destinado a "programa social do governo federal" não especificado.
Embora seja tido por muitos interlocutores como uma estratégia do governo do presidente Jair Bolsonaro para criar esteio político frente às eleições de 2022, o governo também tem a necessidade de fortalecer a assistência social para cumprir uma decisão do STF.
Em abril deste ano, a Corte determinou que a União cumpra obrigatoriamente, a partir de 2022, a Lei 10.835/2004, aprovada há 17 anos, mas nunca regulamentada. A decisão do STF determina uma política de transferência incondicional de renda básica para o estrato da população brasileira em situação de vulnerabilidade (extrema pobreza e pobreza). A lei é de autoria do ex-senador e atual vereador de São Paulo Eduardo Suplicy (PT).