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O governo federal pretende lançar um novo programa de microcrédito voltado para negativados – pessoas inscritas em cadastros de devedores – por meio da Caixa Econômica Federal. A iniciativa, que vem sendo articulada entre técnicos do banco e do Ministério do Trabalho e Previdência, utilizaria como garantia para os empréstimos recursos do FGTS, o que vem gerando controvérsia.
O fundo foi criado originalmente para proteger trabalhadores demitidos sem justa causa e financiar investimentos nas áreas de habitação e infraestrutura, prioritariamente de saneamento. Nos últimos anos, operações de crédito imobiliário com recursos do fundo vêm registrando crescimento nos índices de inadimplência.
Desde setembro, a Caixa já oferece um serviço de empréstimos de até R$ 1 mil a 3,99% ao mês, porém inacessível para quem tem o nome listado em serviços de proteção ao crédito. Para ampliar o público, o governo quer criar um fundo garantidor para eventuais perdas.
Apesar de ter gestão pública, o FGTS é um fundo financeiro de natureza privada, de modo que, ao utilizar seus recursos, o governo não precisaria criar uma nova despesa no Orçamento que pudesse levá-lo a comprometer o teto de gastos.
Ao jornal O Globo, integrantes do governo disseram que a ideia é utilizar R$ 13 bilhões do FGTS como garantia, e que os empréstimos devem variar de R$ 500 a R$ 15 mil. O capital utilizado permitiria conceder até R$ 67,5 bilhões em operações de microcrédito. O público estimado seria de 20 milhões de pessoas.
O ministro do Trabalho e Previdência, Onyx Lorenzoni, e o presidente da Caixa, Pedro Guimarães, falaram sobre a proposta no fim de novembro, em evento realizado pela Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), em Brasília.
Como na atual modalidade de microcrédito, a tomada do empréstimo deve ocorrer exclusivamente por celular, por meio do aplicativo Caixa Tem. “O objetivo qual é? Dar condições de sustentabilidade a esses 26 milhões [de informais] que nós encontramos, de que eles caminhem para a formalização”, disse Lorenzoni. O lançamento do programa deve ocorrer em algumas semanas, segundo ele.
O modelo seria semelhante ao do Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe), criado para enfrentar a crise provocada pela pandemia de Covid-19. Em 2020, o governo destinou R$ 37,5 bilhões do Tesouro ao Fundo de Garantia de Operações (FGO), com o objetivo de cobrir até 85% de perdas com o programa.
“O que estamos conversando, e vai ser impactante, é que nós criemos para o microcrédito um fundo garantidor como existe para o Pronampe”, disse Guimarães. “Ao se fazer essa garantia, nós vamos poder emprestar para os negativados, o que hoje a gente não consegue”, explicou. “E essas pessoas tomam empréstimo, só que elas tomam do agiota.”
O presidente da Caixa ressaltou que, hoje, quem tem o nome sujo só consegue acessar linhas de crédito em instituições que cobram taxas de 15% a 20% ao mês. “Por isso há uma geração, de fato, de renda [com o programa]”, afirmou, embora não tenha dado detalhes de quanto deve ser cobrado pelo empréstimo. “Quando você reduz a taxa de juros, você reduz a parcela mensal que essa pessoa vai pagar, logo, sobra mais dinheiro ou – o que é a realidade – você pode emprestar mais.”
Além dos R$ 13 bilhões do FGTS, até R$ 500 milhões viriam do Fundo de Aval às Micro e Pequenas Empresas (Fampe) do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). No mesmo evento em que participaram Lorenzoni e Guimarães, o presidente do Sebrae, Carlos Melles, se disse entusiasmado com a iniciativa.
Conselho Curador do FGTS não foi consultado sobre utilização dos recursos
Responsável pela gestão e administração do FGTS, o Conselho Curador do fundo não chegou a ser consultado ou informado dos estudos pelo governo. Na última reunião do colegiado, realizada em 14 de dezembro, a conselheira Maria Henriqueta Arantes Ferreira Alves, que representa a Confederação Nacional da Indústria (CNI), disse ter se surpreendido com a proposta, da qual ficou sabendo pela imprensa.
Ela destacou que o grupo tem articulado com parlamentares a retirada de pauta de projetos que disponham sobre a utilização de recursos do FGTS com o objetivo de preservar o fundo.
“Com muita surpresa, eu vejo pela imprensa que o próprio governo está estudando – não sei em que grau está, porque não foi levado ao Conselho nem ao GAP [Grupo de Apoio Permanente] – usar uma parte dos recursos do FGTS para criar um fundo garantidor para fazer microcrédito para negativados. Como é que nós, do Conselho Curador, vamos defender não impactar o FGTS com as medidas que vêm do Parlamento, que muitas vezes tem como motivação algum item de necessidade do trabalhador?”, questionou.
“Como já levamos algumas bolas nas costas, de alguns saques [de recursos do FGTS] por medida provisória, nós fizemos um pacto com o governo para que ele respeite o conselho”, disse a conselheira, dirigindo-se a Romulo Machado e Silva, representante do Ministério do Trabalho e Previdência, que presidia a sessão. “Não podemos ter esse tipo de informação pela imprensa.”
O presidente da sessão afirmou que levaria a questão ao ministério, “destacando o compromisso feito [pelo governo] nesse Conselho”. Ele disse que o programa ainda está em desenvolvimento e que não estaria decidido se os recursos para garantir os empréstimos viriam do FGTS. “A informação que tenho é que o governo estuda essas medidas de microcrédito não é de agora. Isso já vem desde 2019, mas ainda não tem uma definição de como serão esses fundos garantidores, se seriam via FGTS ou não.”
O deputado Paulo Pereira da Silva (Solidariedade-SP), presidente licenciado da Força Sindical, afirmou que seu partido poderá acionar o Supremo Tribunal Federal (STF) caso o projeto seja levado adiante. “Isso é um absurdo. O governo quer dar esmola com o chapéu dos outros. Não sei se isso teria amparo jurídico porque o dinheiro do FGTS pertence aos trabalhadores”, disse o parlamentar ao jornal O Globo.
À Gazeta do Povo, o Ministério do Trabalho e Previdência declarou, em nota, que detalhes da iniciativa ainda estão em análise.
“O governo vem efetuando estudos para lançar um programa de fortalecimento do microcrédito no país, priorizando o empreendedorismo e a geração de trabalho e renda. O formato do programa, o público-alvo e os instrumentos jurídicos a serem utilizados na sua regulamentação vêm sendo objeto de discussões no Ministério do Trabalho e Previdência e serão divulgados oportunamente”, diz o texto do ministério.
A Caixa também foi procurada, mas não deu retorno ao contato feito pela Gazeta do Povo.
Inadimplência no financiamento imobiliário com recursos do FGTS cresce desde 2018, diz BC
Principal fonte de recursos dos programas de habitação social do país, o FGTS já enfrenta nos últimos três anos um crescimento nos índices de inadimplência ou renegociação de parcelas atrasadas de operações de crédito imobiliário.
“Houve aumento relevante de materialização de risco para empréstimos com recursos do FGTS”, destaca o Banco Central em seu último Relatório de Estabilidade Financeira. De acordo com o documento, no panorama do financiamento imobiliário a pessoas físicas em geral, houve queda nos chamados ativos problemáticos. “Contudo, tal movimento não é observado na linha com recursos do FGTS.”
De dezembro de 2018 a junho de 2021, o total de ativos problemáticos na linha de crédito com recursos do FGTS cresceu 88,8%. A taxa de inadimplência foi de 1,44% para 2,38%, enquanto a reestruturação de dívidas com mais de 60 dias de atraso subiu de 2,9% para 4,6%. Desde outubro de 2019, o porcentual de operações com classificação de risco entre E e H dobrou, de 0,4% para 0,8%.