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Entrevista

Governo tem discurso dúbio e hesitante em relação à inflação

 | Marcelo Elias / Gazeta do Povo

Para um viciado que passou quase duas décadas na mais estrita abstinência, o menor contato com a droga pode ter efeitos imprevisíveis. "Com a inflação, é a mesma coisa", compara o ex-presidente do Banco Central, Gustavo Franco. Para ele, que comandou o Banco Central de agosto de 1997 a março de 1999, durante o segundo mandado de Fernando Henrique Cardoso, todos os elementos necessários para criação da inflação estão presentes na economia brasileira e o estranho seria se ela não ocorresse.

"Falando como um biólogo, o organismo já provou desse efeito. É como com o álcool, a cocaína ou mesmo o crack. Depois de muitos anos de abstinência, uma pequena dose já é apavorante, pois é impossível prever onde isso vai dar", compara.

Franco cita o exemplo seu barbeiro, que reajustou o preço de R$ 20 para R$ 25, com o argumento de que "tudo está subindo". "Quando isso começa a ocorrer é preciso cuidado", pondera. Para ele, o governo é gastador e envia sinais dúbios ao mercado, ao mesmo tempo em que evita usar o remédio mais comum para combater a inflação. "Aumentar os juros é melhor, mais limpo e tem os mesmos efeitos, com menos efeitos colaterais", defende. Na semana passada, Franco esteve em Curitiba para dar palestra em uma universidade e falou à Gazeta do Povo:

Um ranking internacional de competitividade divulgado recentemente mostra que o Brasil caiu seis posições e foi para a 44ª posição. Qual o impacto disso para a economia e o que deve ser feito para melhorar as condições no país?

Essa queda reflete uma ênfase reduzida de políticas públicas naquilo que, no passado, se chamava de "custo Brasil", que era uma expressão genérica para o ambiente de negócios brasileiro, os custos financeiros, de trabalho e de impostos que cercam a vida empresarial no país. O índice está capturando uma realidade do dia a dia, que são as filas nos estacionamentos, a infraestrutura que está explodindo, a energia que vai faltar, a inflação, as importações. É uma economia quente demais para sua capacidade produtiva e com empresas muito pressionadas para entregar e que não conseguem.

Em uma entrevista logo após as eleições presidenciais, você disse que a presidente deveria aproveitar seu capital político para encaminhar reformas logo no início do mandato. Isso vem sendo feito?

Neste aspecto este governo foi muito diferente de qualquer outro que eu tenha visto ou participado, porque os primeiros cem dias de governo já acabaram e não aconteceu nada. Não houve nenhuma ideia nova, nenhuma afirmação da personalidade ou do programa específico deste governo. A preocupação talvez tenha sido excessiva de transmitir a sensação de continuidade e creio que tenham exagerado na mão. O excesso, neste aspecto, dá a impressão que o Brasil está pronto e não tem nada para ser feito, a não ser tocar as coisas de rotina. E não é assim, está faltando muita coisa ainda.

Na última semana, uma matéria do jornal inglês Financial Times criticou a "fachada de prosperidade" no Brasil. Como avaliar o atual momento da economia brasileira?

A crítica é mais no sentido de uma advertência, mesmo sinal dado pela queda no índice de competitividade já citado. Nós estamos pegando uma onda muito favorável que vem de fora. Os preços das nossas commodities estão extraordinariamente altos, está entrando muito dinheiro. Então são circunstâncias muito favoráveis, criando um crescimento com base em fatores alheios a nossa vontade. Mas nós não estamos trabalhando.

Na mesma matéria, o jornal britânico também alerta para problemas enfrentados por bancos pequenos desde o escândalo com o PanAmericano. Existem riscos sistêmicos para o sistema bancário brasileiro?

Houve, depois da crise, uma extensão de facilidades e de segurança do sistema que resultou em prevenir muitas dificuldades que poderia ocorrer em instituições de boa saúde. Ou seja, nós tivemos uma ameaça de problema sistêmico, mas era uma onde que pegaria muita gente inocente. Por isso o Banco Central adotou medidas excepcionais "uma oitava abaixo". Isso foi bom, porque não houve nenhum abalo e nenhum banco quebrou durante a crise. Mais recentemente, a salvação do PanAmericano transmitiu uma sensação de segurança, que é boa por um lado, mas ruim por outro. Ruim porque os bancos mais agressivos sentem que não estão correndo riscos e que, se acontecer alguma coisa de ruim, o Banco Central vai salvar. Nesse sentido, acho que foi muito bom que tenha acontecido um caso recente de banco que não foi salvo, porque o sistema precisa dessa disciplina, precisa saber que quem se não se comportar direito, vai morrer.

É preciso sacrificar alguém para servir de exemplo?

Aqui já estava na hora de desaparecer algumas coisas que foram estendidas durante o período da crise e que causaram um certo relaxamento nos controles de risco de algumas instituições. Muito provavelmente tem um ou outro banco aí que está vulnerável e, se não arrumar a casa, vai perecer. Todo mundo é grandinho e sabe da sua vida. O BC não tem que ser babá de ninguém.

As chamadas medidas macroprudenciais são suficientes para combater a inflação no estágio atual?

Tenho pouca fé. Aumentar os juros é melhor, mais limpo e tem os mesmos efeitos, com menos efeitos colaterais. As medidas macroprudenciais resultam em aumentar o spread bancário, ou seja, tem o mesmo efeito de aumentar o juros, mas com uma distorção aí no meio. Se as medidas vão ser eficazes? Aacredito que sim, no decorrer do tempo. A verdade é que, de fato, a despeito de algumas ações terem sido muito sensatas, o discurso é dúbio e hesitante em relação à inflação. O normal é que as autoridades se manifestem sobre a inflação de forma bastante assertiva e inflexível. A nossa presidente falou assim sobre a inflação, mas o Banco Central não, e o ministro da Fazenda fala o contrário disso regularmente. O ministro da Fazenda tem um receio tão grande de parecer ortodoxo que não fala nem as verdades mais evidentes da ortododoxia e que são parte do cotidiano da vida brasileira, e por isso alimenta dúvidas onde elas não precisam existir.

É o momento de usar remédios mais "amargos" contra a inflação? Quais são suas perspectivas para o segundo semestre? E em 2012, a inflação deve se manter dentro da meta?

São perguntas de um bilhão de dólares que eu não sei responder. As indicações a partir de modelos de previsão estatísticas que o próprio Banco Central e o mercado utilizam é de que a inflação vai furar o teto no acumulado de 12 meses, passear ali pelos 7%, e depois cair. Isso poderá ser acompanhado em tempo real, porque o acumulado de 12 meses vai ter sempre um doze avos da informação nova chegando, e a gente sabe exatamente como vai ficar o acumulado. Por isso essa previsão de que a inflação vai piorar para depois melhorar tem sido feita. Mas, no mês a mês, o IPCA tem que cair. Há uma espécie de uma torcida, misturada com reza, para que as dosagens de medicamento já ministradas sejam suficientes, mas o mercado tem dúvidas, muitas delas com base nessas ambiguidades do próprio discurso governamental.

Já é o momento de rediscutir o teto da meta?

Acho que sim, mas o problema maior é que a taxa de juros está em um nível absurdo e temos que, infelizmente, recorrer a esse remédio para manter a inflação dentro da meta. Deveríamos estar pensando nas coisas que são necessárias para que as taxas de juros sejam de um dígito ou mais próximas de 5% do que de 10%. Mas, também aí, a presidente falou isso em um discurso, mas não houve nenhuma ação ou desenvolvimento desta tese que mostrasse como podemos ir do ponto A ao ponto B. É isso que está faltando. Talvez a presidente esteja expressando os seus desejos, mas a máquina não esteja correspondendo.

Qual tem sido a política adotada pelo governo?

As políticas hoje estão voltadas a aumentar o gasto como se isso produzisse o crescimento. Mas o que ocorre é justamente o contrário: excesso de gasto público impede a taxa de juros de cair e provoca inflação, que são duas formas de fazer encolher o setor privado. Acredito que deveríamos ter um superávit primário significativamente maior do que nós tínhamos antes de 2008 para acomodar o crescimento do consumo privado. Se o setor privado é maior, o governo tem que ser menor.

Na sua opinião, qual deve ser o papel do estado na economia brasileira?

Não é o governo que vai fazer o crescimento brasileiro acelerar. Nós ainda temos uma cultura de que o Brasil é como um grande gramado e que todo o desenvolvimento ocorre única e exclusivamente, como que por passe de mágica, por conta da ação do estado, que faz surgir uma grande obra neste local. Mas não é mais assim. Hoje somos uma economia industrial, uma economia de mercado, predominantemente privada, aonde o investimento do setor privado é o condutor importante e líder da economia.

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