Guilherme Afif Domingos, assessor especial do ministro da Economia, Paulo Guedes, é um entusiasta do imposto sobre pagamentos. Afif classifica o novo tributo, que deve ser proposto pelo governo na reforma tributária, como o "imposto do futuro". Segundo ele, um tributo sobre transações, que recaia sobre as movimentações eletrônicas, pode, com o tempo, ser utilizado para substituir "todas as bases analógicas do sistema tributário" – à exceção da tributação da renda e da propriedade.
No fim das contas, seria praticamente um imposto único – nos moldes do que defendia o antigo secretário da Receita Federal, Marcos Cintra, que foi demitido por Bolsonaro por defender uma repaginação da CPMF.
Em entrevista à Gazeta do Povo, Afif Domingos rechaçou as comparações entre o novo tributo e a antiga CPMF, dizendo que os críticos estão "vendo fantasmas". Mas, na conversa, se referiu ao tributo extinto como sendo uma versão mais velha da ideia atual do governo.
Segundo ele, a intenção da equipe econômica é de que a base de tributação do novo imposto – isto é, a variedade de operações que serão taxadas – seja a mais ampla possível, para que a alíquota possa ser pequena e, ao mesmo tempo, bancar parte da desoneração da folha de salários e o aumento da faixa de isenção do Imposto de Renda para pessoas físicas.
A intenção inicial é de que a alíquota seja de 0,2% – uma "merrequinha", diz Afif, acrescentando que o porcentual pode diminuir se a base for ampliada.
Afif Domingos afirmou, ainda, que todas as etapas da reforma do governo devem ser encaminhadas ao Congresso até o fim do mês. Leia a entrevista completa:
Qual deve ser a base desse novo tributo, o imposto eletrônico? No que ele deve incidir? Vão ser todas as transações eletrônicas?
A ordem do ministro [Paulo Guedes] é para que essa base seja a mais ampla possível. Dentro dessa margem ampla, estamos estudando seus impactos, especialmente no setor financeiro. Estamos consultando o Banco Central [BC] porque não queremos ter efeitos colaterais indesejados.
O princípio da base mais ampla possível é o princípio da universalidade. Quanto mais exceção você coloca, mais complexos são os sistemas para efeitos de entendimento. Nós achamos que esse entendimento tem que ser muito fácil, para evitar um problema de contencioso tributário – que já é uma das grandes desgraças do Brasil – e que não exija custo operacional da administração tributária e da administração pessoal e empresarial. Portanto, tem que ser uma coisa muito simples, de valor muito pequeno e de base muito ampla.
Esses efeitos colaterais que o senhor menciona estão relacionados à possibilidade de estímulo à desintermediação financeira?
Essa crítica não vinga porque nem a CPMF, nos seus áureos tempos, desestimulou a intermediação financeira. Depois iriam dizer que todo mundo ia usar dinheiro. Hoje, dinheiro é uma coisa em extinção. Eu não consigo pagar as coisas em dinheiro. O dinheiro eletrônico e a transação eletrônica vieram para ficar. Não recua, de jeito nenhum. Logicamente, você tem que fazer essa alíquota ser bem pequena. Sendo pequena, ela é dentro do principio da proporcionalidade. Quem movimenta pouco, vai pagar muito pouco. Quem movimenta muito, vai pagar um "pouco muito".
Mas o BC justificou a criação da nota de R$ 200 dizendo que está havendo uma circulação maior de dinheiro físico, com as pessoas guardando em casa e sacando o auxílio emergencial, por exemplo.
Aí que está. Esse foi um fenômeno do auxilio emergencial, porque você pegou uma população absolutamente desbancarizada. Faltou moeda no mercado para atender a essa demanda, que é especifica desse universo. Eu acho que a sinalização não foi boa porque ficou parecendo que nós estamos prevendo uma desvalorização da moeda, o que não é verdade. A nossa taxa de projeção inflacionária é muito baixa.
O ex-presidente do BC, Ilan Goldfajn, falou que a criação da nota era um indicativo de que vinha a nova CPMF. Como o senhor avalia essa declaração?
Ele está vendo fantasma. Aliás, ele é presidente de um banco. Os bancos estão vendo cada fantasma... Os bancos não querem isso, porque [o imposto sobre pagamentos] rastreia o dinheiro. Não é uma crítica isenta.
O senhor diz que o novo imposto não é uma CPMF. Mas o que tem de diferente do novo tributo para a antiga CPMF?
Primeiro, na antiga não tinha economia digital. A Gazeta do Povo, por exemplo, era em papel jornal.
Mas a natureza do tributo e o seu mecanismo não são os mesmos?
Veja, ele [o novo tributo] vai pegar as transações. Só que as transações, hoje, são todas digitais. O sistema tributário que estamos implementando é moderno como nos anos 1950.
O senhor está se referindo ao Imposto Sobre Valor Agregado (IVA) [que está nas propostas de reforma tributária da Câmara, do Senado e do próprio governo]?
Sim. O nosso sistema é tão caótico que o IVA seria um avanço extraordinário. Mas o IVA foi concebido na época em que se amarrava cachorro com linguiça – ou seja, você tinha um sistema econômico todo lastreado em bens. Hoje, a velocidade com que os marketplace estão evoluindo – exatamente a área de comércio e serviços – [mostra que] o que anda muito rápido é o fluxo monetário. Esse fluxo, sendo bem taxado, é o imposto do futuro.
Estamos entrando agora para poder apostar no imposto do futuro porque, aos poucos, com grande amplitude de atuação e pequenos aumentos de alíquota, você vai substituindo todos os impostos do passado.
Então, no limite, esse imposto poderia virar quase um imposto único.
É o ideal. Ou seja, ele veio para ser concebido como um imposto que possa substituir, no mundo moderno, todas as bases analógicas de sistema tributário. Ficando de fora, logicamente, o imposto de renda e de propriedade.
Traduzindo, a CPMF antiga é o modelo analógico desse novo imposto que o governo está pensando.
Analógico, não. Digital.
Analógico é o IVA.
Sim. Ele é moderno perto da tranqueira que nós temos, mas está longe de ser um imposto que traduza a modernidade das transações.
Pelo que o senhor está falando, então, a questão toda é narrativa, ou seja, de não dizer que é CPMF por causa do impacto ruim na sociedade.
O impacto ruim veio da maneira como foi utilizada essa ideia. É como o Santos Dumont: ele concebeu o avião, mas não para ser utilizado na guerra. A concepção do imposto de transações era para ser um imposto que substituísse outros impostos. Veio com uma conversa boa, de que era para a saúde. Usaram a imagem do Adib Jatene, que era um grande cientista, porque precisava de recursos para a saúde.
Depois tiraram o Adib, pegaram o dinheiro, colocaram no caixa do governo e virou mais um imposto. Daí virou aquela ideia de “eu fui enganado”. Aqui, ninguém está enganando ninguém. O sistema é absolutamente eficaz em termos de arrecadação tributária.
A ideia é que substitua outros impostos, não é?
Sim, ele começa substituindo o imposto sobre a folha de pagamento e [proporcionando] a isenção do Imposto de Renda para as camadas de menor salário (já que vai aumentar a isenção), porque estamos transferindo bases. Até porque o Estado está em uma situação em que não há margem para baixar a carga tributária, por enquanto, em função dos encargos recebidos, principalmente, com a Covid-19.
O senhor tem falado de uma alíquota pequena, de algo como 0,2%.
Merrequinha.
Isso deve gerar algo em torno de R$ 120 bilhões por ano de arrecadação.
Essa é a previsão inicial. Pode até acontecer de essa alíquota ser menor do que o 0,2%, desde que eu tenha uma base mais ampla do que aquela que foi estudada e que era a base do passado.
Mas os cálculos para desonerar a folha totalmente falam em mais de R$ 300 bilhões por ano.
Aí teria que ser uma alíquota alta e seria muito difícil de fazer. Mas, depois que ele [o tributo] entrou em linha de produção e provou eficácia, no tempo eu posso ir desonerando totalmente a folha. Até porque a folha financia a Previdência. E você basear a arrecadação da Previdência sobre a folha é um risco muito alto. Folha de pagamento, como nós temos, tende a ter uma mudança muito profunda nos tipos de contratação futura, de uma legislação que também é do século passado.
Se o novo imposto for implementado, então, o governo vai ter que escolher onde colocar esse dinheiro. Já está se falando em muitos usos para um dinheiro que é limitado.
O novo imposto tem que ficar muito firme em termos do que ele está substituindo e em termos de carga.
Quando o governo apresentar o projeto, efetivamente, isso vai ficar mais claro?
Sim. Aliás, hoje [terça-feira, 11] tivemos uma reunião em que ficou muito clara a pressa para a apresentação [das próximas fases da reforma]. Se não, vira especulação, e vira oposição sobre especulação. Nós queremos oposição sobre fatos reais, porque é importante ouvir a oposição exatamente para nós firmarmos posição.
Quando deve vir o texto?
Tem que ser nesse mês, não dá para passar disso.
Vão ser encaminhadas todas as etapas juntas?
As etapas dos [tributos] federais. Talvez a gente centre mais no IPI [Imposto sobre Produtos Industrializados], porque ele tem a ver com a CBS [Contribuição sobre Bens e Serviços] e com o IVA Dual. Ele vai compor o pacote do IVA dual, que é o que dialoga com o projeto da Câmara. Os outros projetos não dialogam com o da Câmara, porque são sobre tributos federais. São esses que nós vamos apresentar até como prioridade total.
Pode ser que essa parte do imposto digital fique para depois?
Acho que tem que vir junto com o que nós pretendemos, que é a desoneração da folha. Nós vamos precisar gerar emprego, não podemos taxar mão de obra.
Até o fim do mês, então?
Acredito que sim.
E como o senhor responde às críticas de que o imposto sobre transações é regressivo e cumulativo?
E o imposto sobre a folha, o que é?
Mas então não é trocar seis por meia dúzia?
O princípio é o da proporcionalidade tributária. O pobre vai pagar proporcional ao que ele gasta. O rico vai pagar proporcional ao que gasta. Imposto regressivo é o atual sobre bens de consumo. Esse sim é regressivo.
As propostas para o Imposto de Renda devem atacar essa questão da regressividade?
Nós temos o IR da pessoa física e o da pessoa jurídica. No da pessoa física, a nossa tendência é, efetivamente, mexer no limite de isenção da base. Aumentar de R$ 1.900 para R$ 3.000. Depois você tem as outras faixas, em que estamos com severas dúvidas. A classe média está sofrendo muito nesse momento. Estuda-se criar uma faixa maior, além da última, [para quem ganha mais de R$ 35 mil], mas isso também ainda não é certo.
O que é certo é você taxar os dividendos, para evitar a pejotização – que cria um desequilíbrio entre um [trabalhador] assalariado e um que é pejotizado. Os impostos têm que ser equivalentes naquilo que é rendimento. A taxação do dividendo é uma forma que temos de poder compensar eventuais perdas no IR da pessoa jurídica. Nossa tendência é baixar o IR da pessoa jurídica, para ficarmos com equivalência internacional de tributos sobre empresas.
As deduções para pessoa física serão extintas?
É algo que ainda não está acertado. Talvez não seja a hora ideal de se mexer nisso.
Qual é a expectativa do senhor: acha que, até o fim do ano, vamos ter mudanças aprovadas no Congresso?
O Orçamento não tem nenhuma previsão de mexida tributária. Ou seja, o Orçamento que está sendo construído é em cima das regras atuais. Portanto, não estou vinculando a aprovação do Orçamento a qualquer tipo de reforma. Isso precisa ficar bem claro. As reformas que nós vamos fazer vão efetivamente trazer, em sendo aprovadas, alterações no curso das nossas políticas. Mas nós não utilizamos isso para aprovação e confecção do Orçamento, sobre o qual o país vai continuar funcionando.
O senhor tem alguma previsão de quando o governo deve enviar a reforma administrativa?
A reforma administrativa está na Casa Civil há tempos. O grande problema é que ela não nos dá respostas de curto prazo. É uma resposta mais longo prazo.
Como a reforma da Previdência?
É, mas a reforma da Previdência já dá impacto no ano seguinte da aplicação. Na reforma administrativa leva mais tempo, as mudanças são para quem entrar a partir de agora. Os impactos serão menores.
Já no caso do pacto federativo, esse sim pode ter impactos importantes. No pacto federativo está a desindexação – hoje os Orçamentos são todos engessados. Esse, sim, tem impacto e abre campo para não ter que furar o teto [de gastos]. O pacto federativo, no meu entendimento, é o projeto mais importante para agora porque vai trazer para a administração pública um alivio sobre gastos, dando mais liberdade em termos de mudanças orçamentárias, para não ficar tão engessado.
O que o senhor acha da possibilidade de flexibilização do teto de gastos?
Se isso for feito, é um desastre. Uma das grandes conquistas nossas para o controle de gastos foi a queda abrupta da taxa de juros. O Brasil passou de uma das maiores taxas de juros do mundo a uma das menores, exatamente para fazer o dinheiro sair da toca e ir para a atividade produtiva, de um lado, e, do outro, baixar dramaticamente o gasto público com juros.
A nossa dívida aumentou. Hoje, temos uma situação de dívida pública maior do que tínhamos no ano passado em função do impacto do coronavírus. Se não fosse a queda na taxa de juros, estávamos com uma explosão de gastos orçamentários em cima dos juros. Quando você vem e parte para furar o teto, a primeira reação vai ser aumento da taxa de juros e você vai anular todo o efeito do investimento que você faria com gastos no serviço da dívida. É um erro monumental. Quem fala sobre isso não entende nada de economia, só quer gastar.
O plano Pró-Brasil não é baseado, justamente, no aumento do gasto público para a retomada?
Com o que você tiver no Orçamento, tudo bem. O que eles tão querendo é exatamente furar o teto para ter um gasto orçamentário a título de gerar emprego. Olha, você vai gerar emprego em uma partezinha assim [pequena]. O grosso vai para empreiteira. Eu prefiro fazer uma renda cidadão e botar o dinheiro no bolso do povo diretamente nesse período de transição.
Mas então há entendimentos diferentes dentro do próprio governo.
Não são entendimentos diferentes. Todo governo quer gastar, todo ministro da Fazenda tem que mostrar qual vai ser a besteira.
Esse ímpeto para gastar mais vem principalmente da ala militar?
Estou colocando as áreas, em geral, que ainda têm a ilusão de que o Estado é indutor do desenvolvimento. Hoje, o estado é indutor de déficit e de gastos. Desenvolvimento vem da iniciativa privada. Você tem que dar condição de juro baixo, de impostos moderados e com muita segurança jurídica pra garantir os investimentos sem contencioso tributário. Solta a iniciativa privada que ela vai gerar os empregos que dizem que o investimento público faria.
Para terminar, qual é a perspectiva do senhor para a economia brasileira neste ano?
O Brasil urbano desconhece o que o Brasil rural tem feito. Apesar de tudo o que aconteceu, nós continuamos alimentando o mundo. Nós somos o grande parceiro da Ásia em termos de suprimento de alimentação e de matérias-primas. O Brasil não parou.
Como diziam os mais velhos de antigamente na Rua 25 de Março, que era um grande termômetro da economia brasileira: “Quando chove na cabeceira, não sobra mercadoria na prateleira”. Quando a agricultura vai bem, o comércio vende e o comércio ajuda a indústria. Então, quando olhamos o desempenho diante dessa pandemia, vemos que as coisas não são tão ruins assim.
Tanto é que falava-se em queda do PIB [Produto Interno Bruto] em 10% e hoje se fala no máximo em -5%. Portanto, temos uma situação relativamente mais favorável em função da força do nosso setor primário, agricultura e mineração.
As questões ambientais e diplomáticas não podem atrapalhar isso?
O [conflito] ambiental e o diplomático, em grande parte, é gerado por aqueles que querem colocar barreiras invisíveis nas nossas exportações. No último diálogo do ministro Paulo Guedes com jornalistas americanos ele foi muito claro, até porque o Brasil tem uma das melhores matrizes ecológicas entre agricultura e preservação.
Temos uma área plantada e, para dobrar, triplicar essa produção, não vamos precisar de mais área. Seria com aumento de produtividade e com o uso racional da água. Outros países como Índia e China não têm a quantidade de água que nós temos. Já olham o Brasil como o grande celeiro do mundo.
Logicamente, isso incomoda os norte-americanos e os europeus, que têm um inverno em que têm que ficar parados seis meses enquanto nós, que dominamos a agricultura de clima tropical, trabalhamos 365 dias por ano. Lamentavelmente, nós temos sido vítimas de um discurso do politicamente correto, com intenções de impedir o avanço da nossa economia no setor primário. Temos uma ministra, a Tereza Cristina, que é uma mulher extremamente ponderada e ela tem sido muito moderada nesse aspecto. O resto é onda para atrapalhar porque não gostam de concorrência.
Mas e o aumento do desmatamento na Amazônia, as queimadas...
Esse aumento ainda é um resquício de agricultura extrativa. O restante do Brasil, 90%, dominou a atividade produtiva. Esta cultura é a da agricultura moderna, é produtiva e é conservacionista, porque sabe que, se estragar a terra, perde o ouro que se produz.
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