O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, conta com a ajuda do Judiciário para obter o ganho fiscal de R$ 24 bilhões que espera ter neste ano com a limitação de compensações tributárias às quais as empresas têm direito.
Grandes companhias, prejudicadas pela decisão do governo de limitar o reembolso de créditos, têm recorrido à Justiça para contornar a limitação estabelecida pela Medida Provisória 1202/2023, editada pelo governo no apagar das luzes do ano passado.
O tema tem dividido as instâncias judiciais e a perspectiva é desafiadora para as empresas, escancarando as controvérsias do gigantesco contencioso tributário brasileiro. O governo tem a expectativa de mais uma vez contar com a boa vontade do Supremo Tribunal Federal (STF), a quem caberá a palavra final sobre as pendengas.
Os créditos tributários são decorrentes de decisões judiciais contra o Fisco em que não cabem mais recursos. Grande parte do contencioso está ligada ao Tema 69, a chamada "tese do século", decisão do STF que excluiu o ICMS, principal imposto estadual, da base de cálculo do PIS e da Cofins, de âmbito federal.
Com essa decisão, as companhias ganharam o direito de abater, dos impostos que têm a pagar à Receita Federal, o valor que a Justiça reconheceu ter sido cobrado indevidamente.
O que a MP 1202 fez foi limitar esse abatimento. Segundo portaria publicada pela Fazenda após a MP, os créditos acima de R$ 10 milhões serão compensados escalonadamente, em um período que pode variar de 12 a 60 meses, a depender do montante envolvido.
Quanto maior o crédito da empresa, mais tempo vai demorar a compensação integral. Isso significa que parte do crédito a que companhia tem direito – dinheiro que, na prática, é dela, pois se refere a tributos que ela não deveria ter pago – fica temporariamente "bloqueado".
De um lado, tal bloqueio piora temporariamente as finanças daquela empresa. De outro, melhora – também temporariamente – o resultado primário das contas do governo.
Esse escalonamento foi a forma encontrada pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para reduzir o impacto das compensações tributárias nas contas públicas, dentro da cruzada do ministro Haddad para providenciar R$ 168 bilhões e cumprir a meta de zerar o déficit primário em 2024, estabelecida pelo arcabouço fiscal.
Aumento das compensações tributárias elevou déficit do governo
A equipe econômica apostou as fichas no limite de créditos tributários após a divulgação dos números do primeiro ano do governo Lula.
Segundo dados da Receita Federal, o aumento expressivo das compensações em 2023 reduziu a arrecadação da União em R$ 242 bilhões, o que equivale a 2,2% do Produto Interno Bruto (PIB). Mais de um terço do volume é referente a créditos de decisões judiciais. Foram R$ 82,7 bilhões compensados, o terceiro maior montante de toda a série histórica, iniciada em 2003.
Segundo a Fazenda, só as compensações da “tese do século” custaram mais de R$ 60 bilhões à União no ano passado. Foram uma das principais causas, segundo a equipe econômica, para o déficit primário de R$ 230 bilhões registrado em 2023. A estimativa do governo é que, nos últimos cinco anos, os créditos acima de R$ 10 milhões tenham frustrado a arrecadação em R$ 320,5 bilhões.
Este ano, já por força da MP, o cenário é inverso. Em fevereiro, segundo a Receita, o uso de créditos tributários caiu 40% em relação ao mesmo período de 2023, o que contribuiu para a arrecadação recorde do governo no mês, que somou R$ 186,5 bilhões.
Ações contra a MP 1202 dividem o Judiciário
As decisões sobre os limites estabelecidos pela MP 1202 têm dividido o Judiciário. Alguns juízes têm concedidos limares que permitem a compensação total dos tributos. Em outras decisões, ainda cabem recursos.
Segundo apuração do jornal O Estado de S. Paulo, ao menos cinco decisões já foram publicadas: duas favoráveis (às empresas Pernambucanas e Seara), duas contrárias (em ações movidas pelas Lojas Colombo e pela Valgroup), e uma que atende parcialmente à demanda (da multinacional Nestlé).
De qualquer forma, a MP ainda precisará ser chancelada pelo Congresso até o fim de abril. Caso contrário, perderá a validade. Esse é um dos motivos que tem levado o ministro Haddad a repetir que a meta fiscal não depende só do governo, mas do Legislativo e Judiciário.
Outros dois pontos da MP 1202 (o fim da desoneração da folha de pagamentos de 17 setores e o Perse, programa de incentivo ao setor de turismo e eventos) foram revogados em acordo do governo e do Congresso, e um terceiro (o fim da desoneração da folha de parte dos municípios) foi derrubado por ato unilateral do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco.
A limitação das compensações tributárias, porém, não foi revista, apesar da controvérsia e das críticas. Agentes econômicos e empresários chegaram a classificar a medida como "calote".
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Para tributaristas ouvidos pela Gazeta do Povo, a constitucionalidade da MP pode ser questionada sob diversos aspectos.
João Eloi Olenike, presidente do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), diz que compensação de créditos deveria ser tratada por lei ordinária ou complementar, após a discussão legislativa, e não por MP.
"Uma MP tem que atender aos princípios de relevância e urgência, conforme o artigo 62 da Constituição. Tem caráter excepcional e temporário. No Brasil, me parece engraçado que a urgência e relevância sejam o governo fazer caixa para honrar seus gastos", afirma.
O argumento é reforçado por Luciano Burti, da CBLM Advogados, que ressalta a justificativa apresentada pelo governo. O texto faz referência a fatos ocorridos anos antes da publicação da MP, entre eles o julgamento pelo STF da "tese do século", em 2021. "Não existiu urgência. Houve tempo suficiente para apresentação de projeto de lei, debate e publicação de lei ordinária regulando a matéria", diz Burti.
Para Leonardo Roesler, sócio da RMS Advogados, o direito à compensação, amparado pelo Código Tributário Nacional e pela jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça (STJ), pode ser reivindicado pelas empresas com base no princípio da isonomia.
"A MP impõe uma diferenciação entre contribuintes, dependendo do valor envolvido. A distinção pode ser considerada arbitrária, configurando tratamento desigual", afirma.
Quando avaliar uma Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pelo Partido Novo, o STF deverá decidir, de forma vinculante, os efeitos da MP. A tendência, segundo os tributaristas, é que prevaleça o entendimento de que a medida do governo é constitucional.
"Não é desconhecido que, dentre os argumentos de defesa governamental, há sempre a alegação de rombo das contas públicas, o que parece sensível aos tribunais superiores, no mínimo, para modular os efeitos das decisões favoráveis aos contribuintes para momento posterior ao julgamento", afirma Nereida Horta, da CBLM Advogados.
Embora em 2001 o Judiciário tenha decidido a favor dos contribuintes na "tese do século", mais recentemente os tribunais superiores têm favorecido mais os governos em julgamentos tributários, votando na maioria das vezes a favor das teses defendidas pela União, estados e municípios.
"Alguns exemplos foram as decisões sobre o IPI na revenda de importados, a incidência do ICMS na tarifa de transmissão de energia e a contribuição previdenciária do Sistema S ", destaca Horta.
Essa atuação dos tribunais superiores é vista com reservas e críticas por quem acompanha as discussões.
"A participação do Judiciário na manutenção da meta fiscal do governo não deve se traduzir em uma postura de subserviência às necessidades financeiras do Executivo", afirma Leonardo Roesler.
"Pelo contrário, o Judiciário deve zelar pela proteção dos direitos dos contribuintes e pela observância das normas tributárias, mesmo que isso possa, em certos casos, contrariar os interesses fiscais do governo. A atuação pode ser interpretada como um desrespeito à autonomia do Poder Judiciário e à autoridade de suas decisões", prossegue.
Para Nereida Horta, mesmo com a constitucionalidade da MP, o tema é passível de contestação. "Pode-se questionar a moralidade e boa-fé do Estado ao adiar a restituição daquilo que é devido ao pagador de tributos", afirma.
"A MP reforça a ideia geral de que o desequilíbrio das contas públicas deve ser suportado pelo contribuinte mediante o aumento da tributação, redução ou postergação da devolução de valores devidos aos contribuintes, sem a necessária contrapartida no corte de gastos públicos", completa.
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