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Um dos efeitos práticos da pandemia da Covid-19 no trabalho foi alterar o regime de milhares de empregados, que deixaram de bater ponto nas empresas todos os dias e passaram a trabalhar em casa. Se em um primeiro momento a mudança para o home office foi “forçada”, em razão da situação sanitária, com o passar dos meses algumas vantagens do novo regime saltaram aos olhos de empregadores e seus funcionários, ainda que o teletrabalho não seja uma unanimidade.
Dados da PNAD Covid-19 de maio, divulgados pelo IBGE no fim de junho, mostraram que 8,7 milhões de brasileiros estavam trabalhando remotamente por causa da pandemia naquele mês.
O trabalho em casa deve virar tendência após a pandemia. Petrobras e Banco do Brasil, por exemplo, já anunciaram que vão manter parte dos empregados em home office – a meta é ter cerca de 10 mil funcionários em cada empresa nesse regime de trabalho. Também já há um movimento de empresas desocupando escritórios alugados em grandes metrópoles porque vão tornar o trabalho em casa permanente. Mas, o que a lei diz sobre isso?
Apesar de muitas empresas já adotarem um regime de trabalho híbrido, a legislação brasileira só trata de teletrabalho – e essa previsão foi incluída na CLT com a reforma trabalhista de 2017. Só que teletrabalho e home office não são exatamente sinônimos no entendimento de muitos juristas, o que pode abrir margem para dúvidas posteriores na Justiça do Trabalho.
E esse movimento já começou: alguns sindicatos já ingressaram com ações pedindo compensações aos funcionários que foram trabalhar em casa, no susto, e nem sempre tinham as condições mais adequadas para a atividade laboral. Nesse caso, não se fala apenas de equipamentos e infraestrutura – como computador, mesa e cadeira –, mas também gastos como eletricidade e internet.
Home office da pandemia
Para a adoção do home office por causa da pandemia, muitas empresas levaram em conta a Medida Provisória (MP) 927, que flexibilizou algumas regras trabalhistas durante a pandemia, mas que perde validade neste domingo (19) e que não será renovada porque o Senado não colocou o tema em votação. Faltou acordo entre governo e parlamentares após o senador Irajá (PSD-TO) incluir no texto da MP uma extensão da desoneração de folha que desagradou a equipe econômica.
Mas, no caso do teletrabalho, o texto da medida provisória reproduzia a definição prevista na CLT, que está em vigência:
“Considera-se teletrabalho a prestação de serviços preponderantemente fora das dependências do empregador, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação que, por sua natureza, não se constituam como trabalho externo”.
Grosso modo, no âmbito jurídico, o teletrabalho é considerado o tipo de atividade que é cumprida fora das dependências da empresa – ainda que dias pontuais de trabalho presencial não o descaracterizariam, conforme previsão legal.
Já o home office é um tipo de regime híbrido, em que a pessoa vai, por exemplo, três dias ao escritório e fica em casa em outros dois, no caso de jornadas de segunda a sexta.
Advogadas trabalhistas ouvidas pela reportagem avaliam que, embora a regra de teletrabalho até possa ser aplicada, a falta de especificidade da legislação vigente pode virar insegurança jurídica no futuro porque não há como prever quais serão as decisões da Justiça Trabalhista.
Como as empresas precisam se preparar para a transição definitiva de regime de trabalho
A MP 927 ajudou muitas empresas a fazerem a mudança temporária para o regime de home office. “A MP veio para tutelar um regime de urgência, e se isso [home office] for se tornar definitivo, ela não serviria”, observa Claudia Abdul Ahad Securato, advogada trabalhista e sócia do escritório Oliveira, Vale, Securato & Abdul Ahad Advogados. Isso ocorre porque a MP não obrigava as empresas a fazerem aditivos de contrato, coisa que está prevista na CLT.
Na visão de Mariana Machado Pedroso, especialista em Direito Trabalhista, sócia do Chenut Oliveira Santiago Advogados, é importante frisar que a MP não criou uma nova forma de trabalho, mas flexibilizou algumas regras para permitir o trabalho diante de uma situação extraordinária.
Para ela, a definição do teletrabalho pode ser um entrave para o regime híbrido de home office que muitas empresas pretendem adotar: parte em casa, parte no escritório. “O regime híbrido que as empresas pretendem adotar não se enquadraria num regime de teletrabalho. Mas, para contemplar esse pensamento – porque as pessoas estão vendo que funciona, tem meios de mensurar a produtividade e traz reduções importantes para os custos fixos da empresa –, vai ter de haver adequações à legislação. Porque a legislação de hoje não será suficiente para o que as empresas e a sociedade estão pensando”, afirma Mariana Pedroso.
Claudia Securato concorda: “A legislação trabalhista é antiga, tem muita coisa engessada. Como as relações trabalhistas estão em constante transformação, a lei precisa de constante revisão”.
O assunto não está fora do radar do governo. Já antevendo a possibilidade de a MP 927 caducar, integrantes da equipe econômica estudam como retomar os principais temas da medida em outros projeto – o home office pode estar entre eles.
O que as empresas devem fazer para adotar o home office sem problemas legais
Para empresas que pretendem tornar os contratos de home office permanentes, a principal orientação é seguir o que diz a CLT e fazer um aditivo de contrato prevendo todo o acordo com os funcionários.
A advogada trabalhista Karen Badaró Viero, sócia da banca Chiarottino e Nicoletti Advogados, reforça que é nesse aditivo que será definido quem dará a estrutura para a execução das atividades laborais em domicílio. “Na pressa de colocar as pessoas para trabalhar em casa, isso não foi discutido em todas as empresas. Entendo que a estrutura tem que ser dada pela empresa e que ela pode fazer reembolso de material comprado mediante recibo ou ajuda de custo”, diz a advogada.
É esse aditivo que vai regular as relações entre empregados e empregadores. Ali deverá estar descrito se a empresa terá obrigação de fornecer equipamentos e como – e se – fará a compensação de gastos que as pessoas tenham em suas casas, principalmente as despesas de energia elétrica e internet, que podem ter aumentado devido à demanda de ficar em casa. “Não é razoável a pessoa encaminhar toda a conta de luz. O ideal é pensar em um valor razoável para a região, pagar isso em folha de pagamento e estipular em contrato”, afirma Mariana Machado Pedroso.
Além disso, é preciso estar atento a benefícios que são pagos pela empresa, especialmente os que constam em acordos coletivos de trabalho. A migração para regimes de teletrabalho não exige a intermediação de sindicatos – embora a participação dessas entidades facilite o processo quando se trata de mudanças robustas em grandes empresas.
“O vale-transporte, por exemplo, no teletrabalho, entendo que não tem que pagar. No home office, precisa ter vale, porque tem dias específicos em que a pessoa vai trabalhar na empresa. Quanto ao vale-refeição, tem discussão. Se for uma liberalidade da empresa, ela pode deixar de pagar. Mas se estiver em acordo ou convenção coletiva, ele é devido”, explica Karen Viero.
Controle de jornada e acidentes de trabalho exigem atenção no home office
A CLT traz duas observações para o teletrabalho que exigem atenção de quem for migrar para o regime de home office no pós-pandemia:
- dispensa do controle de jornada, que pode impactar as horas extras;
- limitação de obrigação das medidas de segurança e saúde ocupacional.
No caso do controle de jornada, trabalhar em casa não significa que o empregado extrapolará a jornada para qual foi contratado. Mas a forma de controle pode mudar – e isso impacta muito quem recebe pelas horas extras.
Geralmente, as questões mais levadas para a Justiça do Trabalho são relacionadas às verbas rescisórias e hora extra, lembra a advogada Claudia Abdul Ahad Securato. Para ela, essa será uma das grandes discussões do trabalho em casa. “A mudança trazida pela reforma trabalhista fala que quem trabalha em casa não tem direito a hora extra, mas se a empresa tem algum sistema de controle, esse empregado vai ter hora extra”, analisa.
A advogada trabalhista Karen Badaró Viero lembra que, em regime de teletrabalho, o funcionário pode seguir um modelo com controle de jornada e previsão do pagamento de hora extra ou obter um contrato por produção – ficam acertadas as entregas semanais e ele é responsável pela gestão do seu tempo.
“Eu indico que o empregador faça o controle de jornada. Como fazer? Por login no sistema, marcação de ponto remoto. Há alternativas e não sabemos como os tribunais vão se comportar, já que começamos a usufruir dessa legislação agora”, diz Karen.
Outro ponto importante ressaltado pela advogada é como será a postura das empresas para controlar acidentes de trabalho. “A gente tem que ter uma política interna de empresa com regras de home office, previsão de acidentes de trabalho”, explica.
Na visão de Mariana Pedroso Machado, é um desafio ainda maior para as empresas instruir e informar o funcionário e fiscalizar se ele está cumprindo as melhores práticas em regime de teletrabalho. “Estamos trazendo um risco para essas empresas que adotarem esse regime híbrido de trabalho, que é o de horas extras e casos de doença ocupacional ou de trabalho”, observa.
Compensações podem ser buscadas na Justiça
Recentemente, uma ação proposta pelo Sindipetro-RJ obteve uma decisão liminar que determinava que Petrobras e a Refinaria Henrique Lage deveriam custear despesas dos funcionários com home office. A decisão determinava que a empresa fornecesse mobiliário e arcasse com despesas de equipamentos de informática, pacotes de dados de internet e eletricidade para 16 mil funcionários no Rio de Janeiro. A liminar foi cassada, mas é exemplo de ações que podem se multiplicar daqui para frente.
A advogada Mariana Machado Pedroso explica que, entre os argumentos citados pela desembargadora que suspendeu o efeito da liminar, estavam o fato de que a empresa havia oferecido uma ajuda de custo para os funcionários e que seria impossível levar mobiliário a tantos funcionários, durante uma pandemia, no prazo de 10 dias estabelecido inicialmente. “É uma decisão razoável pelos fundamentos e dá um aceno do que deve ser feito”, afirma Mariana.
Para ela, esse é um risco a que estão sujeitas as empresas que não fizeram aditivos ou que não estabeleceram ajudas de custo desde o princípio. Já a advogada Claudia Abdul Ahad Securato recomenda que caso o empregado se sinta em uma situação de desvantagem, deve procurar a empresa para uma conversa antes de qualquer coisa.