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O governo federal finalmente apresentou a primeira fase de sua proposta de reforma tributária, que unifica PIS e Cofins – de competência federal – na nova Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), um modelo de imposto de valor agregado (IVA). E decidiu "blindar" estados e municípios, excluindo ICMS e ISS da proposta e transferindo esse debate para o Congresso. Ao mesmo tempo, pretende avançar as discussões sobre a revisão do pacto federativo – que envolve amplo debate sobre arrecadação, repasses e gastos desses entes – e cuja PEC está parada no Parlamento.
A decisão de deixar ICMS e ISS, impostos de âmbito estadual e municipal, é estratégica: o governo acredita que será mais fácil e rápida a tramitação de uma reforma tributária fatiada. A proposta da criação do CBS, por exemplo, é um projeto de lei, e não uma PEC. A nova contribuição teria uma alíquota única de 12% sobre o valor da receita bruta auferida em cada operação. Seriam descontados valores de ICMS e ISS e descontos incondicionais que aparecem no documento fiscal.
O ministro Paulo Guedes sinalizou que não se opõe a um “acoplamento” dos dois impostos ao CBS posteriormente, mas justificou a exclusão dizendo que não caberia a ele propor a mudança nesses impostos. “Cabe ao Congresso legislar as relações entre os entes federativos. Eu não posso invadir os territórios dos prefeitos e governadores falando de ISS e ICMS. Nosso apoio é total ao acoplamento desses impostos”, disse.
Paralelamente ao andamento da reforma tributária, o governo também tem expectativa de que a PEC do Pacto Federativo avance no Congresso. Essa proposta, além de criar um estado de emergência fiscal, também propõe uma nova política de distribuição de repasses da União para os entes, unifica o mínimo constitucional de gastos com saúde e educação e extingue os fundos de participação de estados e municípios.
Há pontos polêmicos, como a extinção de cidades com menos de 5 mil habitantes e arrecadação insuficiente, que seriam incorporadas pelas vizinhas. O governo tem interesse em ver esse projeto andar, tanto que concordou em deixar a PEC Emergencial de lado e agora trabalha junto com a equipe do senador Márcio Bittar (MDB-AC), relator da matéria, em uma proposta mais enxuta e palatável para aprovação no Congresso.
Discussão sobre ICMS é mais complexa
Tributaristas ouvidos pela Gazeta do Povo ponderam que, embora seja mais interessante fazer uma reforma ampla e única, é coerente a estratégia do governo de fatiar a reforma tributária visando agilidade na tramitação. E isso explica a exclusão do ICMS, porque sua discussão é mais complexa.
“A discussão do ICMS vai ser muito maior e mais abrangente, porque não vai envolver só uma decisão federal. Vamos ter todos os governadores em cima, até por estudos que já apontam quem vai ter perda de arrecadação considerando as propostas que já foram apresentadas. Acredito que a discussão que vai ter mais relevância envolve mais o pacto federativo do que propriamente a sistemática de tributação do que mudar”, aponta Charles Dutra, contabilista e administrador do Canal Tributário.
Para Tiago Conde, sócio do Sacha Calmon-Misabel Derzi Consultores e Advogados, mexer em um sistema tributário tão complicado quanto o brasileiro pode trazer uma confusão enorme. Portanto, começar o processo com uma simplificação de tributos de competência privativa da União dá fôlego para discutir ICMS e ISS. “O ICMS é um dos impostos que mais traz guerra fiscal e precisa ser resolvido. Mas o governo precisa começar a reforma para criar um sistema mais justo e não tão complexo. Para isso, o ideal é não mexer no ICMS e construir uma proposta com governadores”, defende.
O advogado tributarista Renato Gomes, do escritório Gomes, Almeida e Caldas Advocacia, avalia que o governo optou pelo caminho da simplificação não só tributária, mas de apresentar uma proposta mais básica com mais chance de aprovação. Exemplo disso é não ter incluído outros impostos de competência federal – como o IPI (Imposto sobre Produto Industrializado) e IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) – para apostar na tramitação mais veloz.
No caso da discussão sobre o ICMS, Gomes defende que a inclusão do imposto em eventual reforma tributária vai demandar discussão com os estados sobre suas arrecadações e sobre o próprio pacto federativo. “A proposta de divisão é a mesma estabelecida em 1988, quando o Poder Legislativo aprovou a Constituição e analisou um cenário de estados já consolidados – como São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul –, outros recém-criados – como Tocantins e Mato Grosso do Sul – e ainda alguns que já existiam, mas precisariam de mais esforço para se desenvolver”, relembra.
Para ele, aí entra a discussão sobre repasses e, em especial, o ICMS interestadual, em que estados mais novos ou que precisassem de mais impulso ficariam com uma parcela maior. “É a realidade de estados como o Mato Grosso do Sul, que se desenvolveu com o agronegócio, do Tocantins, de algumas regiões do Espírito Santo, por causa do complexo portuário. São estados que se desenvolveram significativamente, aumento de população. A repartição tributária favorece mais a eles”, aponta. Gomes ainda lembra que na discussão do ICMS, cada estado defende seu lado do ponto de vista da arrecadação e nenhum quer dar o braço a torcer.
Disputa fiscal entre União e estados
Se o ICMS é comumente associado à guerra fiscal entre estados, o que dizer de uma eventual “disputa” da União e esses entes na arrecadação? O advogado tributarista Renato Gomes lembra que isso já existe. Ele explica que quando o governo federal cria um novo imposto, uma parcela dele precisa ser dividida entre estados e municípios. Quando é criada uma contribuição, a arrecadação fica integralmente com a União.
No caso da CBS, que é a unificação de duas contribuições, não há qualquer alteração para estados e municípios. “Mas isso reflete esse esforço de criar contribuições, e nunca no sentido de criar imposto. Não tem criação de imposto federal desde 1988, mas um número sem fim de contribuições foram criadas e até extintas, como a CPMF”, pondera.
Esse é um caminho mais simples, que terá um resultado efetivo de aumento da arrecadação federal. Nesse sentido, essa pode até ser uma estratégia do governo com o fatiamento da reforma, na opinião de Charles Dutra, do Canal Tributário. “O governo está preparando um colchão justamente para compensar uma eventual perda ou uma distribuição maior para estados e municípios, que o deixe com a parte menor nos impostos federais”, avalia.