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Uma série de declarações e desmentidos sobre temas sensíveis nos primeiros dias do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tiveram impacto negativo no mercado financeiro. Nos três primeiros pregões do ano, o Ibovespa, principal indicador da Bolsa brasileira, chegou a cair quase 4%. E o dólar se valorizou 3% frente ao real, para R$ 5,45. O contrato de Depósito Interfinanceiro (CDI) para janeiro de 2024 – um termômetro do comportamento dos juros – passou de 13,41%, na virada de ano, para 13,75%, na última quarta-feira (4).
Um sinal de alento veio na quarta com a declaração do futuro presidente da Petrobras, Jean Paul Prates, de que não haverá intervenção direta nos preços dos combustíveis da estatal e nem a desvinculação dos preços internacionais. Uma conta de estabilização é cogitada pelo ex-senador. "O mercado reduziu receios em torno do novo governo", cita relatório da XP Investimentos divulgado nesta quinta.
A notícia da convocação de uma reunião ministerial para sexta-feira (6) e declarações do secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, de que o governo está preocupado em reduzir o déficit este ano e que as operações de financiamento do BNDES com a dívida pública não devem se repetir também contribuíram para aliviar os ânimos do mercado.
Mas os impactos da declaração do ministro da Previdência, Carlos Lupi (PDT), sobre a necessidade de rever a reforma da Previdência; a manutenção da desoneração de tributos federais sobre os combustíveis; a declaração de Lula na posse de que o teto de gastos, a âncora fiscal brasileira, é uma “estupidez” e as incertezas sobre o marco regulatório do saneamento já tinham suas consequências.
“Dessa forma, o governo segue na linha de reverter as reformas liberais adotadas pelos últimos dois presidentes”, informou a Guide Investimentos em relatório, nesta quarta.
A tendência do mercado para os próximos dias é ficar de olho nos próximos passos do governo. Analistas do banco Travelex apontam que, com receio fiscal, dúvidas no cenário doméstico e temores sobre revogação de leis e reformas deixam os investidores cautelosos a respeito das primeiras medidas tomadas pelo atual governo.
“O noticiário político segue adicionando pressão no cenário doméstico – com dúvidas na dinâmica da dívida pública nos próximos anos e temores sobre eventual revogação de leis e reformas”, cita relatório da XP Investimentos divulgado na manhã de quarta-feira (4).
Críticas à reforma da Previdência
Lupi foi empossado na terça-feira (4) e em seu discurso fez críticas à reforma da Previdência, aprovada no início do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. O ministro se referiu às regras aprovadas em 2019 como uma antirreforma.
"Quero formar comissão quadripartite, com uma representação dos sindicatos patronais, com sindicatos dos empregados, com sindicatos dos aposentados e com governo, nós precisamos discutir com profundidade o que foi essa antirreforma da Previdência, discutir com números e com profundidade", disse Lupi na ocasião.
Segundo ele, a reforma só foi feita para tirar direitos e a maioria tem de ser protegida, não só a minoria. Uma de suas teses é de que a Previdência não é deficitária.
No dia seguinte, Lupi foi desautorizado pelo ministro da Casa Civil, Rui Costa, que afirmou que o governo petista não estuda nenhuma proposta para alterar a reforma da Previdência. “Não há nenhuma proposta sendo analisada ou pensada neste momento”, disse em declarações feitas após a posse de Geraldo Alckmin no Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços.
Costa também enfatizou que qualquer discussão sobre o tema só será feita após o aval do presidente Lula. A reunião ministerial convocada por Lula para a próxima sexta-feira servirá para alinhar o discurso e evitar anúncios sem o aval do Palácio do Planalto.
Manutenção da desoneração sobre os combustíveis
Outra ação que teve reflexos negativos no mercado foi a manutenção da desoneração de tributos federais sobre os combustíveis. A MP foi assinada no domingo por Lula e mantém a isenção de PIS/Cofins e Cide sobre gasolina, diesel, GLP e outros combustíveis.
A medida valerá até 31 de dezembro deste ano para óleo diesel, biodiesel e gás de cozinha. Já alíquotas para gasolina e etanol ficam zeradas até 28 de fevereiro próximo.
O objetivo é segurar o preço nas bombas e tem um impacto de R$ 25 bilhões nos cofres públicos. Ela vai contra a ideia de responsabilidade fiscal do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que quer mostrar ao mercado financeiro que o PT não tem um programa de governo que prioriza os gastos.
A assinatura da medida provisória foi um dos fatores que contribuiu para a queda de 3% na bolsa no primeiro pregão do ano, na segunda-feira.
Mas não foi só o mercado financeiro que ficou insatisfeito com a decisão de Lula. Críticas vieram do setor sucroalcooleiro, que tem um bom relacionamento com Alckmin. Segundo a União da Indústria da Cana de Açúcar e Bionergia (Única), o governo atuou como “cúmplice de um atentado” com a decisão, pois tinha se comprometido com um novo padrão de combate às mudanças na Cúpula do Clima das Nações Unidas (COP 27).
A medida também foi vista como inconstitucional. Uma emenda à Constituição aprovada no ano passado prevê que o governo deve garantir, a partir deste ano, uma alíquota menor para o etanol em relação à gasolina.
Segundo os analistas Christopher Garman e Daniela Teles, da consultoria política Eurasia, isso levanta a possibilidade de uma batalha judicial sobre a redução de impostos. Mas, do ponto de vista político, apontam eles, esse debate joga a favor da equipe econômica, que busca restabelecer os impostos federais sobre a gasolina o mais rápido possível.
Críticas ao teto de gastos
Durante a posse, no domingo, o presidente Lula criticou duramente o teto de gastos, a âncora fiscal brasileira, qualificando-a como uma "estupidez" e que irá revogá-lo. O novo governo deve apresentar um novo modelo de arcabouço fiscal para substituir o teto até agosto deste ano, conforme prazo estabelecido pela PEC fura-teto aprovada pelo Congresso no fim do ano passado.
A fúria de Lula contra o teto se choca com o discurso apaziguador de posse de Haddad no Ministério da Fazenda. Haddad prometeu trabalhar duramente nos primeiros meses do governo para reduzir o déficit no orçamento – que deverá voltar em 2023 – e harmonizar as políticas monetária e fiscal. “Os investidores não devem esperar uma bala de prata.”
O ministro destacou que pretende promover o crescimento sustentável por meio da reforma tributária, as parcerias público-privadas, as medidas de expansão do crédito e uma política comercial ativa. E também se comprometeu com uma nova âncora fiscal até a primeira metade do ano.
Os analistas da Eurasia apontam que haverá uma intenção séria de reduzir as preocupações dos investidores em relação à política fiscal e à sustentabilidade da dívida. “Mas Haddad não tem o mesmo grau de autonomia que Paulo Guedes, ex-ministro da Economia, tinha (o que era inusual). Isto afetará a capacidade de fornecer detalhes sobre os planos de reforma tributária e a questão fiscal.”
Segundo Garman e Teles, a comunicação clara e detalhada dos planos de Haddad será crucial para melhorar as expectativas do mercado e mitigar o impacto das altas taxas de juro em uma economia que mostra sinais de desaceleração.
Economistas, entretanto, mostram-se cautelosos. Sílvia Matos, coordenadora do Boletim Macro do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV Ibre), disse, no final do ano passado, que sua preocupação era sobre como será o entendimento do novo governo sobre o cenário macroeconômico.
Insegurança sobre o marco legal do saneamento
Outra preocupação do mercado foi em relação a mudanças no marco legal do saneamento, sancionado em julho de 2020. Um dos primeiros atos do governo Lula foi a edição da MP 1.154, que define as atribuições dos 37 ministérios, e um decreto que detalha a estrutura do recém-criado Ministério das Cidades. Isto ampliou o temor de retrocessos.
As medidas vinculam a Agência Nacional de Águas e Saneamento (ANA) a duas pastas diferentes (Meio Ambiente e Cidades) e retiram do órgão o papel de editar normas de referência para o segmento de água, esgoto e resíduos, o que contraria a legislação em vigor.
A situação poderia gerar insegurança jurídica e afastar investimentos, uma vez que o marco legal do saneamento foi construído a partir do papel da ANA como agente regulador e o que a lei estabelece continua em vigor e não pode ser sobreposto por um decreto.
O governo acabou voltando atrás, diante da reação negativa do mercado. A secretária-executiva da Casa Civil, Miriam Belchior, disse à GloboNews que o governo vai rever a medida provisória que tirava a regulação de saneamento da ANA. Ela disse ainda que o órgão irá para o guarda-chuva do Ministério do Meio Ambiente. "Vamos fazer uma discussão sobre o marco de saneamento com o setor privado, com as empresas estaduais de saneamento, com todo o setor, para verificar quais os ajustes que o modelo precisa", afirmou.