A atratividade do Brasil para o investimento estrangeiro direto não está relacionada apenas a questões conjunturais, como o ambiente macroeconômico, ou estruturais, como o custo Brasil. Questões institucionais também pesam, dizem especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo. E a constatação é de que o país não está fazendo a lição de casa.
Por uma série de questões, a imagem do país no exterior se deteriorou muito a partir dos primeiros anos da década passada. E esse processo ainda está em curso, envolvendo questões como retrocessos no combate à corrupção e na agenda do meio ambiente, que vão muito além da clássica preocupação com a sustentabilidade das contas públicas.
Melhorar essa imagem é um dos desafios do governo federal, que nesta segunda (31) e terça-feira (1.º) organiza a quarta edição do Fórum de Investimentos Brasil (BIF, na sigla em inglês). O evento busca mostrar oportunidades de investimento no país e repassar a investidores do mundo todo informações sobre o ambiente de negócios no país.
"O Brasil está, mais do que nunca, preparado para oferecer oportunidades únicas a investidores de todo o mundo por suas potencialidades, assim como por sua segurança jurídica e econômica, que busquei fortalecer durante meu governo", disse Bolsonaro na abertura do evento. No discurso, ele enfatizou que a economia brasileira é uma das dez maiores receptoras de investimentos estrangeiros diretos do mundo e que já retomou crescimento e geração de empregos.
No mesmo evento, o ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmou que a vacinação em massa e a retomada das reformas econômicas fazem do Brasil o melhor horizonte de investimentos da economia global.
Imagem de estabilidade começou a se deteriorar a partir de 2013
“Desde o Plano Real e até 2013, o Brasil passava uma certa imagem de estabilidade, mostrando uma continuidade nas políticas econômicas e de Estado”, explica Adriano Laureno, economista sênior da Prospectiva Consultoria.
Menos de quatro anos se passaram entre duas capas icônicas da revista britânica "The Economist", uma das principais representantes do pensamento econômico liberal. Em novembro de 2009, a publicação afirmava em letras grandes, sobre a imagem de um Cristo Redentor "decolando" como um foguete espacial: "Brazil takes off" ("O Brasil decola"). Em setembro de 2013, o Cristo aparecia "desgovernado" sob a pergunta: "Has Brazil blown it?" ("O Brasil estragou tudo?"). A reportagem falava em economia estagnada, estado inchado e protestos em massa.
Essa percepção de estabilidade começou a perder força com as manifestações de junho de 2013, e o declínio se acentuou com a polarização eleitoral no ano seguinte – quando Dilma se reelegeu ao derrotar Aécio Neves (PSDB) – e com o descrédito em relação às contas públicas, especialmente após a revelação das "pedaladas fiscais".
O país teve dois anos de profunda recessão (2015 e 2016) e, depois do impeachment de Dilma, o sucessor Michel Temer (MDB) fez acenos ao mercado financeiro com uma tentativa de política econômica liberal e austeridade nas contas públicas, mas seu governo chegou ao fim sem grandes avanços nessa seara e enfraquecido por suspeitas de corrupção e baixíssimos índices de popularidade.
A eleição de 2018 e o governo de Jair Bolsonaro reforçaram a polarização política, aprofundando divisões que acabaram por afetar até o combate à pandemia de Covid-19. O país tem hoje um ministro assumidamente liberal conduzindo a economia, que conseguiu reformar a Previdência em 2019 mas depois teve dificuldades para implantar sua agenda e perdeu parte do entusiasmo do mercado em meio a uma série de gambiarras para não violar regras fiscais como o teto de gastos.
O país também retrocedeu no combate à corrupção, e isso ficou muito claro aos olhos de instituições como a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que o governo deseja integrar. No ano passado, a Transparência Internacional denunciou o que classificou de desmonte do arcabouço institucional para a luta anticorrupção e apontou o presidente Bolsonaro como um dos responsáveis pelos retrocessos.
A recente anulação, pelo STF, da condenação do ex-presidente Lula parece ter sido o ápice desse desmanche do combate à corrupção, prejudicado por iniciativas do próprio Supremo mas também pelos poderes Executivo e Legislativo. Entre outras questões, o ex-juiz federal Sérgio Moro, responsável pela condenação de Lula, deixou o governo há pouco mais de um ano, acusando Bolsonaro de tentar interferir na Polícia Federal; a Operação Lava Jato foi encerrada, após sofrer uma série de investidas do Procurador-Geral da República, Augusto Aras; e o Congresso toca vários projetos para afrouxar o combate à corrupção.
Ainda no âmbito da corrupção, até o combate à pandemia envolveu desvio de recursos públicos e há denúncias de irregularidades em vários estados e municípios.
Reconstrução da imagem do país vai exigir tempo
Um dos tantos reflexos dessa deterioração da imagem do Brasil no exterior pode ser vista na forte volatilidade do real em relação à moeda norte-americana. Apenas nos últimos 24 meses, a cotação oscilou entre o mínimo de R$ 3,74 e o máximo de R$ 5,94, segundo o Banco Central.
Em 2020, a moeda brasileira foi uma das que mais se desvalorizaram no mundo, e só passou a recuperar valor com mais consistência a partir de meados de abril deste ano, reagindo à alta da taxa básica de juros (Selic) – que atrai capital estrangeiro para aplicações em renda fixa – e à solução do imbróglio orçamentário. Nos últimos dias, o dólar comercial foi negociado abaixo de R$ 5,30.
Reconstruir a imagem do país lá fora vai exigir tempo, aponta Laureno, da Prospectiva. Em 2015, o país era o sexto mais atraente para o investimento estrangeiro direto, segundo a consultoria internacional Kearney. No ranking deste ano, é o 24.º de 25 países.
A questão da atratividade se agravou com a pandemia. O economista lembra que em muitos países desenvolvidos, como os Estados Unidos, a vacinação está ocorrendo em um ritmo muito rápido, o que favorece a recuperação econômica. “É preciso olhar além do macro.”
Segundo o site Our World in Data, ligado à Universidade de Oxford (Reino Unido), até o dia 29, 49,98% da população norte-americana tinha recebido, pelo menos, uma dose da vacina contra a Covid-19. No Reino Unido, esse percentual era de 57,83%. No Brasil, de 21,15%.
Em seu discurso na abertura do Fórum de Investimentos Brasil, nesta segunda, Bolsonaro afirmou que "há solução positiva" diante dos desafios que o país enfrenta na pandemia. "O Brasil já aplicou mais de 65 milhões de doses de vacina, mais de 20% da população já recebeu ao menos a primeira dose de imunizante contra a Covid-19", disse.
No mesmo fórum, o ministro Paulo Guedes disse que não faltarão recursos para a vacina. "Liberamos R$ 20 bilhões para a compra de vacinas, e já temos comprometidos mais R$ 14 bilhões esse ano", disse.
Rodrigo Franchini, sócio da Monte Bravo Investimentos, aponta que o crescimento das principais economias mundiais, em 2021, será uma devolutiva da recessão de 2020. O Fundo Monetário Internacional (FMI) projeta um crescimento de 6,03% para a economia mundial neste ano, contra uma queda de 3,27% no ano passado.
Em 2021, a economia brasileira encolheu 4,1%. Na última década, o país cresceu muito abaixo da média mundial – o crescimento do PIB global foi de nove vezes o brasileiro.
Para este ano, o FMI projeta expansão de 3,7% para o Brasil, acima da previsão do governo federal (3,5%) e abaixo do ponto médio das projeções para a economia nacional coletadas pelo Banco Central (3,96%). As expectativas, no entanto, melhoraram rapidamente nas últimas semanas, e muitas instituições já preveem avanço acima de 4% – que, se confirmado, será o maior em 11 anos.
Grande discrepância no desempenho dos setores
Outro agravante, segundo Laureno, é a heterogeneidade setorial. Há grande discrepância no desempenho dos setores econômicos. Há um agronegócio pujante, beneficiado pela retomada da economia mundial. A mineração também vai bem. “Mas a indústria está mal”, diz Laureno. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que a produção industrial encolheu em seis dos últimos dez anos.
Também há uma certa desconfiança em relação às estatais. Wilson Ferreira Júnior renunciou ao comando da Eletrobras em janeiro. Ele era um dos principais defensores do plano de privatização da estatal – processo que só foi avançar após a saída do executivo, quando o governo decidiu editar uma medida provisória para acelerar o processo.
Em fevereiro, depois das sucessivas altas nos preços da gasolina e, principalmente do diesel, o presidente Jair Bolsonaro anunciou a troca na presidência da Petrobras. Saiu Roberto Castello Branco e entrou o general Joaquim Silva e Luna.
Também houve substituição no comando do Banco do Brasil depois que Bolsonaro mostrou contrariedade com um plano que previa o fechamento de agências. A troca no comando foi seguida da renúncia do presidente do conselho de administração e de dois vice-presidentes do BB, e nesta semana quem deixou o cargo foi o presidente da Previ, o fundo de pensão dos funcionários da estatal.
Por outro lado, o economista sênior da Prospectiva aponta que o programa de concessões está tendo bons resultados e atraindo capital externo. É o caso do mais recente leilão de aeroportos. O grupo brasileiro CCR e a francesa Vinci Airports vão administrar 22 terminais nos próximos 30 anos, com investimentos estimados em R$ 6,1 bilhões. O ágio na outorga foi de R$ 3,3 bilhões, 3.822% a mais do que o lance mínimo previsto pelo governo federal.
Cenário nublado para além do curto prazo
Apesar de, economicamente, o Brasil não ter ido tão mal no primeiro ano da pandemia, quando foram adotados instrumentos de socorro como o auxílio emergencial e o programa de crédito voltado a pequenas empresas Pronampe, Laureno destaca que o cenário para além do curto prazo está nublado.
Dois pontos de atenção são as incertezas em relação à política fiscal, que tem pressionado o câmbio, e a falta de um plano sólido de recuperação para o pós-pandemia. “A discussão orçamentária foi muito truncada”, exemplifica. E lembra que é exatamente o contrário da política monetária, conduzida pelo Banco Central: “Ela é muito clara”, diz.
O economista-chefe da MB Associados, Sergio Vale, diz que a solução da equação dos problemas brasileiros não é muito simples. “É preciso conciliar o ajuste fiscal com o gasto social.”
Uma prova das incertezas do público externo em relação à política fiscal brasileira veio nesta terça-feira (27), quando a agência de classificação de risco Fitch manteve a nota de crédito brasileira em BB-, com perspectiva negativa – que indica a possibilidade de rebaixamento do "rating" do país em algum momento mais adiante.
"As pressões sobre os gastos públicos persistem e um apoio fiscal adicional para enfrentar as consequências da pandemia não pode ser descartado. Fragilidades fiscais contínuas, bem como vencimentos de dívidas encurtados, tornam o Brasil vulnerável a choques", disse a Fitch, em nota. Por outro lado, a agência ponderou que o "colchão de liquidez" do Tesouro Nacional é robusto. "Uma base diversificada de investidores institucionais e seu viés doméstico mitigam os riscos de rolagem [da dívida]."
A Fitch também mostrou desconfiança em relação ao progresso das reformas tributária e administrativa. Ela afirma que não está claro o quanto elas poderão avançar antes das eleições presidenciais de 2022, considerando-se a pressão dos lobbies envolvidos e a incerteza em torno da pandemia de coronavírus, que pode ocupar a agenda de deputados e senadores.
Questão ambiental é outro foco de preocupação
Outro foco de preocupação, de acordo com Vale, é a questão ambiental, que pode se tornar um complicador para o avanço do investimento estrangeiro direto no Brasil e para o comércio exterior. Ele ressalta que empresas e mesmo economias desenvolvidas vêm dando mais valor a critérios como meio ambiente, questões sociais e de governança, trio conhecido pela sigla em inglês ESG.
“A situação do meio ambiente tem reflexos sobre as relações institucionais. A diplomacia do ex-ministro Ernesto Araújo ajudou a desconstruir a questão ambiental. Isto contribuiu para travar acordos como o da União Europeia com o Mercosul e a entrada do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Sem solução nas questões institucionais não há investimento”, diz Adriano Laureno, da Prospectiva Consultoria.
A controversa atuação do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, contribui para as desconfianças lá fora. A desregulamentação do setor, que ele conduz com o argumento de reduzir a burocracia e facilitar a exploração sustentável dos biomas, é alvo de processos no Judiciário – decisões dele chegaram a ser anuladas pelo STF. Neste mês, Salles e o presidente do Ibama, Eduardo Bim, estiveram entre os alvos de operação da Polícia Federal que apura suposto esquema criminoso de facilitação ao contrabando de madeira.
Um dos principais termômetros do mal-estar com o Brasil no exterior é a ameaça de boicotes a produtos nacionais, principalmente na Europa. Segundo “O Globo”, uma série de grandes varejistas europeias, como as inglesas Tesco e Marks & Spencer e a alemã Aldi, cogitam a possibilidade de restringir as compras do Brasil.
Na avaliação de Laureno, ações como essas têm impacto limitado, uma vez que a China é o principal comprador mundial de commodities e não há players com grande oferta: “O Brasil tem grande participação”. Mas ele vê espaço para outras medidas que podem ser tomadas contra o Brasil, principalmente no âmbito do comércio exterior, como perdas de certificação e estabelecimento de barreiras fitossanitárias.
Esta é a terceira reportagem da série Passaporte Carimbado, que mostra os motivos para a saída ou reestruturação de multinacionais do Brasil nos últimos anos. Acompanhe a série neste link.
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