A indústria brasileira está sentindo a crise do coronavírus de forma mais severa do que a esperada por integrantes do setor. Não havia ilusão: sabia-se que o setor industrial brasileiro, já combalido depois da crise de 2015, sentiria o baque da queda na demanda e da necessidade de isolamento social para a contenção do vírus. As previsões, entretanto, eram de que os impactos começassem a aparecer só em abril, depois que os setores de comércio e serviços já tivessem sido atingidos.
Dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no início do mês, porém, mostram como a realidade se impôs. Em março – mês em que metade dos dias foi considerado "bom", já que o isolamento social começou somente a partir da segunda quinzena – a produção industrial caiu 9,1% em relação a fevereiro.
Indústria de bens duráveis tem sofrido mais com o coronavírus
Os efeitos da crise, no entanto, não são homogêneos entre os diferentes segmentos industriais, nem nos diferentes pontos do país – já que as medidas de restrição de mobilidade estão sendo adotadas de forma distinta por estados e municípios. Renato da Fonseca, gerente de pesquisa e competitividade da Confederação Nacional da Indústria (CNI), distingue três grupos de empresas, de acordo com os impactos do coronavírus.
"Há aqueles que foram muito afetados, que envolvem principalmente os fabricantes de bens de consumo duráveis; os que foram mais ou menos afetados, porque conseguiram se manter por meio de exportações, como os setores extrativos minerais); e os que até cresceram, como os setores de higiene pessoal e limpeza", explica.
Os dados do IBGE revelam o tamanho da disparidade entre os setores. Na classificação por grandes categorias econômicas, a produção de bens de consumo duráveis foi a que mais sentiu o impacto, com queda de 23,5% – quase o dobro da retração na produção de bens semiduráveis e não duráveis (-12%).
Considerando os setores industriais, os que mais sofreram foram vestuário (-37,8%); artefatos de couro, artigos para viagem e calçados (-31,5%); veículos (-28%); e móveis (-27,2%). Os fabricantes se produtos como sabões e detergentes, por outro lado, tiveram ligeiro aumento da produção, de 0,7%.
Utilização da capacidade instalada atingiu menor patamar histórico
Outro indicador, o Nível de Utilização da Capacidade Instalada (Nuci), medido pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), é mais um retrato do tamanho do tombo. Em abril, o Nuci ficou em 57,5%, alcançando o menor valor desde o início da série histórica, em 2001. "Isso significa que, em média, o setor industrial operou com pouco mais da metade da sua capacidade total, sendo o menor nível de produção dos últimos vinte anos", explica o texto de divulgação do resultado publicado pelo Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da FGV.
O patamar a que chegou o indicador é 15 pontos percentuais menor do que o Nuci mínimo registrado durante a última crise enfrentada pelo país, entre 2014 e 2016. "Nesse sentido, podemos inferir que, mesmo no pior momento da crise mais longa das últimas décadas, o nível médio da atividade industrial não foi tão comprometido quanto observamos agora", completa o texto.
O dado desagregado por setores mostra, mais uma vez, as empresas veículos automotores (que utilizou apenas 12,5% da capacidade), couros e calçados (24,8%) e vestuário (20,5%) como as mais afetadas.
Pequenas e médias padecem sem liquidez nem acesso a crédito
A diminuição significativa da atividade coloca à prova a sobrevivência de algumas empresas. O período de isolamento social, necessário para o combate ao vírus, implica receita zero para os segmentos mais afetados. Enquanto isso, os custos continuam existindo.
Para mitigar o problema, o governo federal lançou uma série de medidas voltadas, especialmente, à manutenção dos empregos. Entre elas estão o adiamento do pagamento de obrigações trabalhistas, além da possibilidade de suspensão de contrato dos trabalhadores e da redução da jornada e dos salários de funcionários.
Apesar de importantes, essas medidas não são suficientes para negócios que não sabem se irão sobreviver até o final da crise – e, consequentemente, se poderão arcar com as condições para entrar nesses programas do governo (como a estabilidade oferecida ao trabalhador após a suspensão do contrato ou redução da jornada, por exemplo).
"Essas empresas precisam de capital de giro. Acontece que, mesmo com o Banco Central jogando liquidez no sistema bancário [com a redução de compulsórios] e diminuindo a taxa de juros, os bancos estão com medo de emprestar e preferem fazer uma reserva. Nisso, as pequenas e médias empresas estão saindo mais prejudicadas", explica Fonseca.
Nesse caso, segundo ele, a solução é que o Tesouro entre como garantidor ao menos de parte dos empréstimos oferecidos às companhias em necessidade – solução já defendida por outros economistas, como o ex-presidente do Banco Central, Armínio Fraga.
Conforme apurou a Gazeta do Povo, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) está desenhando medidas para socorro às companhias em dificuldade. A expectativa, no entanto, é de que as linhas de crédito sejam lançadas somente agora, em maio, dois meses após o início da pandemia no Brasil.
Já existe uma linha de financiamento criada pelo governo, de até R$ 40 bilhões, para custear a folha de pagamento por pequenas e médias empresas. Mas apenas uma fração ínfima desse total já chegou aos empresários.
O Tesouro Nacional informa já ter pago R$ 17 bilhões dos R$ 34 bilhões que repassaria ao BNDES para esse financiamento (outros R$ 6 bilhões viriam dos bancos envolvidos no programa), mas até o início de maio apenas R$ 413,5 milhões em empréstimos foram aprovados para as empresas, segundo o jornal "O Estado de S. Paulo". Um dos obstáculos seria o fato de que a medida provisória 944, que criou o financiamento, só permite empréstimo a empresas com folha de pagamento processadas por bancos.
Queda pelo coronavírus atinge indústria já combalida
O impacto severo da crise do coronavírus vem no momento em que a expectativa era de que, finalmente, a indústria brasileira engrenasse e crescesse de forma mais robusta. "A indústria já vinha em uma trajetória de crescimento baixo. Em 2019, fechou o ano no negativo de novo [-1,1%]. Agora, temos um resultado negativo com a pandemia. Um resultado tão ruim, analisando uma base de comparação já fraca, é ainda pior", explica Andressa Guerrero, economista da Tendências Consultoria.
Segundo ela, a previsão é de que os próximos meses sejam ainda piores. "Nossa expectativa é de queda de 7,3% na produção industrial neste ano. Para o ano que vem, a gente espera uma retomada perto do segundo trimestre. Mesmo assim, achamos que a indústria ainda terá muitos desafios pela frente", conclui Guerrero.
Solução é acabar com o isolamento social?
Na última quinta-feira (7), um grupo de empresários, incluindo representantes do setor industrial, foi com o presidente Jair Bolsonaro ao Supremo Tribunal Federal (STF), na tentativa de sensibilizar a corte para a necessidade do fim do isolamento social em prol da atividade econômica. O ministro da Economia, Paulo Guedes, também integrava o grupo.
A própria CNI, entretanto, aponta que esse movimento, se for feito precocemente, pode ser ainda mais prejudicial para o setor. "Se não houver cuidado na abertura, o contágio vai explodir novamente, e só vamos saber depois de alguns dias ou semanas. Os trabalhadores também ficam doentes e aí não conseguimos produzir de qualquer forma", diz Fonseca, gerente de pesquisa e competitividade da Confederação.
Entre os próprios economistas, o consenso é de que, como não há meios de testar a população massivamente, nem um conhecimento consolidado sobre o comportamento do vírus, abrir a economia precocemente deve gerar impactos ainda mais profundos do que os advindos do isolamento.
Este texto é o primeiro da série de reportagens "Retratos da economia", que aborda os efeitos da crise do coronavírus nos diversos setores da economia brasileira.
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