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Um alerta vem soando cada vez mais forte entre os economistas e o mercado financeiro: o risco da economia do país entrar em “dominância fiscal”. O termo é complexo e desconhecido da maioria dos brasileiros, mas seus efeitos, caso o cenário se concretize, serão fortemente sentidos.
Na prática, o conceito traduz uma situação em que o Banco Central (BC) perde a capacidade de conter inflação por meio da política monetária. Ou seja, mesmo com fortes e frequentes aumentos da taxa de juros, a Autoridade Monetária não consegue conter a demanda interna e a aceleração dos preços, com reflexos no câmbio e nas contas públicas.
Mais do que apenas de estourar a meta de inflação, como já começa a acontecer, significa perder a eficácia dos instrumentos de controle, o que desancora as expectativas do mercado e realimenta a inflação.
José Julio Senna, ex-diretor do BC, explica que o conceito foi cunhado há mais de 40 anos, quando economistas classificaram os regimes do mundo em dois tipos, o da dominância monetária e o da dominância fiscal.
“Na dominância monetária, que deve ser a normal, o BC usa seus instrumentos para manter a valorização da moeda; na dominância fiscal, a eficácia da política monetária é subjugada e não consegue mais conter a subida dos preços”, explicou à CNN.
Discussão traduz crise de confiança no governo
No centro da discussão, que ganhou holofotes na última semana, está a crise de confiança na capacidade do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) lidar com o problema das contas públicas, fruto do aumento dos gastos da União.
No acumulado de 12 meses até setembro, o déficit do setor público consolidado – formado por União, estados, municípios e estatais – foi de R$ 1,065 trilhão, segundo relatório divulgado pelo BC em novembro.
Ao mesmo tempo, há dúvidas se o governo vai conseguir manter o volume de cortes no orçamento, de R$ 70 bilhões em dois anos, previsto no pacote fiscal que está sendo votado no Congresso.
Desde que foi apresentado, o valor foi considerado insuficiente para impedir a explosão dívida pública - que atingiu o recorde da série histórica de R$ 9 trilhões em outubro, segundo o BC. Agora, o mercado teme que as medidas saiam do Legislativo – onde precisam ser aprovadas até sexta-feira (20) – ainda mais desidratadas.
“Não houve um empenho [do governo] para aprovação do pacote, que começou a ser votado agora na última semana do ano”, afirma Cristian Pelizza, economista-chefe da Nippur Finance. “Não há convicção do Executivo sobre o ajuste.”
"Pancada" dos juros não ancorou expectativas
Em meio às incertezas, a “pancada” que o Comitê de Política Monetária (Copom) deu nos juros na semana passada - com aumento de 1 ponto percentual e contratação de mais duas altas da mesma intensidade para as próximas reuniões - não conseguiu ancorar as expectativas de câmbio, juros e inflação, que se mantiveram em alta nas projeções do Boletim Focus, a sondagem semanal do BC.
O dólar, por sua vez, que tem renovado máximas históricas, encerrou a quarta-feira em valor recorde de fechamento, aos R$ 6,267 na venda. Durante o pregão, a moeda chegou a bater nova máxima, de 6,271. Foi o quinto dia de alta consecutiva.
Na expectativa de conter a disparada, o BC tem realizado leilões diários desde a última quinta-feira (12). Já são mais de U$ 12,75 bilhões vendidos - ou "torrados" - em reservas cambiais.
Na terça-feira (17), mesmo com intervenção do BC, que leiloou U$ 1,270 bilhão, a cotação havia chegado aos R$ 6,20 pela manhã. O BC foi novamente ao mercado vendendo mais de U$ 2 bilhões à vista e o câmbio fechou em R$ 6,09.
Cenário é de aversão a risco
O recorde desta quarta teve componente extra da redução de juros pelo banco central americano, o Federal Reserve (Fed), que valorizou a moeda americana no mundo todo. Mas traduz principalmente o cenário de aversão ao risco por parte do investidor estrangeiro, que vem “exigindo mais prêmio” para financiar a dívida pública.
“A falta de compromisso com a pauta fiscal está gerando a forte deterioração das expectativas, aumentando os juros futuros”, diz Pelizza.
O mercado financeiro tem vivido dias de pânico, com forte volatilidade nas negociações de câmbio e de títulos do Tesouro Nacional. Na venda de títulos da dívida pública, o governo aceitou pagar as maiores taxas reais de juros em 16 anos – e mesmo assim não conseguiu vender tudo o que pretendia.
Os níveis altos das taxas futuras fizeram com que o site do Tesouro Direto saísse do ar várias vezes, nos dois últimos dias. As negociações foram interrompidas pelo circuit breaker duas vezes na última segunda-feira (16) e quatro vezes na terça-feira (17).
O circuit breaker é mais comumente usado para interromper negociações na B3 em momentos de quedas acentuadas, mas no Tesouro Direto funciona como medida de segurança para conter a volatilidade extrema nas taxas.
Para o governo, mercado faz "ataque especulativo"
O presidente Lula e seus aliados têm atribuído o mau humor do mercado financeiro a um “ataque especulativo”. Lula resistiu o quanto pôde ao corte de gastos, priorizando uma estratégia expansionista, visando sua reeleição em 2026.
No domingo (15), Lula voltou a criticar a política monetária e disse que a única “coisa fora de lugar nesse país é a taxa de juros”. “Vou repetir: ninguém nesse país, do mercado, tem mais responsabilidade fiscal do que eu”, afirmou em entrevista à Rede Globo.
Também disse que a população vai colher, nos próximos dois anos, os resultados da reestruturação e políticas retomadas no seu governo. O Planalto tem se ancorado nos números do crescimento do PIB e baixo desemprego e minimizado o cenário de juros altos e aumento da inflação.
Para Senna, a atitude é temerária. “O que parece para mim é que o governo vai colher justamente o contrário do que ele está pensando”, afirma. “Ele vai se prejudicar politicamente, porque eu não consigo ver outra saída para o que está acontecendo a não ser um aumento da taxa de inflação, que já está em trajetória ascendente.”
Nos últimos 12 meses, o IPCA acumula uma alta de 4,89%, a maior desde setembro de 2023. Pelo segundo mês seguido, o índice está acima do teto da meta de inflação.
Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgados em novembro mostram que a composição da alta dos preços mudou nos últimos meses. Por conta dos preços dos alimentos, a tendência de alta, antes concentrada nos consumidores mais ricos, agora atinge os mais pobres e já acumula 5,08% de alta nos últimos 12 meses.
Cenário de dominância fiscal está traçado
Não há consenso de que o país já esteja numa situação de dominância fiscal, mas os analistas concordam que o caminho está traçado. “Se a situação de deterioração fiscal tiver sequência, este debate vai se intensificar’, afirma Pelizza.
Para Senna, o país “já andou um bom pedaço” em direção ao perigo. Segundo ele, a média dos juros (descontada a inflação) reais nos últimos dois anos é de 7%. Neste período, os gastos da União subiram aproximadamente 6%.
“Há um cabo de guerra entre o fiscal e o monetário, como afirmou o BC”, afirma. Para ele, o que que importa nessa história é observar o resultado líquido primário das contas do governo. Ou seja, conter o expansionismo fiscal. "Se a gente quer trazer a inflação para baixo, deve olhar o comportamento da demanda”, afirma.
Chamada tecnicamente de “absorção doméstica”, a demanda tem crescido entre 6 e 6,5% ao ano nos últimos dois trimestres. “Em termos reais, a economia brasileira não tem esse potencial de crescimento”, diz Senna. “É uma demanda muito mais pujante, muito superior do que podemos atender com nossa capacidade de produção, nossa tecnologia, nosso ambiente institucional. Então, a pressão inflacionária é muito séria”.
Nesse sentido, o ex-diretor do BC destaca que os sinais do governo são preocupantes, porque não demonstram “nenhuma austeridade”. Um desses sinais foi o anúncio da isenção de Imposto de Renda para salários de até R$ 5 mil, feito junto com o pacote fiscal.
“Já que o governo não tem nenhuma disposição de fazer os ajustes que tem que ser feito, fica tudo nas costas do Banco Central. E o BC já sinalizou que sozinho não consegue resolver essa parada”, afirma.
Prova disso é que, após as duas sinalizações de aumento da Selic para o próximo ano dadas pelo Copom, as apostas do mercado continuam a subir. Ao invés de 1 p.p. de aumento, o mercado está precificando 1,5 p.p.
“Vai chegar um momento em que o BC vai se cansar, porque os aumentos da taxa não vão trazer os resultados esperados”, afirma. “Aí estaremos, sim, na famosa dominância fiscal”.