A revista The New Yorker descreveu bem o procedimento que Rana el Kaliouby usa para mostrar o seu software. A doutora em ciências da computação liga a câmera de um iPad comum e aponta para o rosto de alguém. Pontos na tela começam a varrer cada movimento de sobrancelhas, boca, testa. Em tempo real, uma barra de status crava: “feliz!” (ou “desgostoso”, “surpreso”, “confuso”). Se as máquinas já sabem quase tudo o que você faz, agora elas querem acesso a algo bem mais íntimo: seus sentimentos.
O campo na tecnologia de análise sentimental em que a Affectiva, empresa de Rana, e várias outras startups se debruçam está em alta. A criação de softwares e algoritmos capazes de descobrir (ou tentar) o que estamos sentindo é uma mina de ouro -- tanto que a empresa recebeu um aporte milionário em setembro e sua principal concorrente, a Emotient, foi comprada pela Apple no início do ano, segundo o Wall Street Journal. O New York Times exemplificou o porquê da frenesi: “Se a câmera de um computador detectar a expressão de confusão de um aluno, a escola poderá fornecer explicações extras da matéria. Os videogames com câmeras poderão movimentar o jogo se o jogador parecer entediado”.
Dá para ir além: “um agente que vai conceder crédito a alguém faz uma análise de forma inconsciente. Esse gerente de banco faz as perguntas e nesse processo vai alinhando o nível de risco. Esses sistemas vão permitir que certos componentes que hoje são invisíveis a esse gerente sejam melhorados”, exemplifica Claudio Pinhanez, gerente de Análise de Dados do Laboratório de Pesquisas da IBM Brasil. Em outros termos, tais algoritmos ajudariam a descobrir, avaliando as reações, se a pessoa está mentindo sobre a capacidade de pagar o crédito. É uma aplicação rentável, diga-se...
Voz, texto e rosto
O reconhecimento facial proposto pela Affectiva e Emotient -- bem como outros peso-pesados notáveis, RealEyes e Sension – é só uma das maneiras de mergulhar neste confuso universo dos sentimentos. Há outras. A própria IBM Brasil usou um software de análise da percepção da Copa do Mundo 2014 pelas postagens nas redes sociais. Um grupo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), capitaneado pelo professor Fabricio Benevenuto, tem trabalhado desde 2013 em outro algoritmo de análise de texto. O IFeel, que tem fins exclusivamente acadêmicos, unifica uma série de métodos existentes para classificar se uma frase escrita tem viés otimista ou pessimista.
“Um outro aluno tem trabalhado em um método que combina análise facial com textual e de reconhecimento de voz. Ele aplicou esta análise a telejornais”, destaca Benevenuto.
Essa onda dos softwares que analisam as emoções atingiu os desenvolvedores básicos. Há três ou quatro anos, era preciso um doutor para elaborar este tipo de algoritmo. Mas, agora, com projetos de open source [empresas abrem seus códigos para que outras pessoas ajudem a desenvolver a tecnologia], isso se tornou disponível de qualquer profissional da programação
Óbvio que essas tecnologias não foram criadas apenas para que um vendedor te empurre o produto mais caro da loja ao usar um gadget que identifique sua “alegria” em comprar. Há o viés comercial, claro, mas muitos benefícios são evidentes. A citada Affectiva surgiu como uma ferramenta para ajudar autistas a “lerem” os sentimentos das pessoas (uma das dificuldades para quem tem esse distúrbio). Outros entusiastas idealizam aplicativos capazes de monitorar o que faz alguém feliz -- assim, o usuário poderia replicar estes momentos.
É um cenário promissor. Mas, ainda que muitas das ferramentas tenham tido bons resultados, há um longo caminho. “É difícil [colocar em porcentagem os acertos do sistema] porque depende da entrada de texto. O IFeel é baseado em métodos não supervisionados. O que encontra é algo entre 70% e 80% de acerto. Se puder treinar o algoritmo, essa taxa pode passar dos 80%”, diz Benevenuto. Da mesma forma, um software de reconhecimento facial do pesquisador Xiaobai Li, da Universidade de Oulu, na Finlândia, causou furor ao superar a capacidade humana de reconhecer microexpressões que revelam traços de sentimentos.
Ambos trabalham em cenários controlados, porém. O cérebro humano é bem mais complexo, e isso é unanimidade.
Sentimentos expostos
Um sentimento que estes softwares terão de lidar, no fim das contas, é o do medo de perder a privacidade. Afinal, não há uma pessoa no mundo que nunca tenha preferido esconder algum sentimento. Mas essa é uma discussão ainda vaga – como é praxe nas novas tecnologias (carros sem motoristas, drones...) – e, talvez, não muito diferente de hoje. “Se as máquinas chegarem a uma capacidade sobre-humana, vamos ter que discutir a transparência de como isso foi feito. Como esses algoritmos estão atuando? Qual é o potencial disso? Vamos ter uma situação de desconforto”, diz Pinhanez.
“Uma tecnologia como a do IFeel vai dizer se uma frase é positiva ou negativa. O que a pessoa fará com esse dado, se ela vai obter informações sensíveis ou se vai fazer uso político, é uma questão ética de quem está por trás da ferramenta”, pondera Benevenuto.