O crescente uso de sistemas de reconhecimento facial tem levado a uma forma high-tech de discriminação racial, com os afro-americanos mais propensos a terem suas imagens capturadas, analisadas e pesquisadas nas buscas por suspeitos de crimes, de acordo com um relatório recente baseado em registros de dezenas de departamentos de polícia.
O relatório, recém-divulgado pelo Centro de Privacidade e Tecnologia da Faculdade de Direito da Universidade de Georgetown, descobriu que metade dos norte-americanos adultos têm suas imagens armazenadas em pelo menos um dos bancos de dados de reconhecimento facial disponíveis para a polícia, normalmente com poucas restrições.
A expansão constante desses sistemas levou a um impacto racial desproporcional, pois os afro-americanos estão mais sujeitos a serem presos e terem suas fotos tiradas, uma das principais maneiras com que essas imagens vão parar na base de dados da polícia.
O relatório também descobriu que estes bancos raramente são “limpos”, eliminando imagens de pessoas inocentes, e tampouco os sistemas de reconhecimento facial passam por testes regulares de eficiência, embora alguns lutem até mesmo para distinguir traço em rostos de pele mais escura.
A combinação destes fatores leva os afro-americanos a estarem mais propensos a serem apontados como possíveis suspeitos de crimes -- mesmo sendo inocentes, diz o relatório.
“Este é um problema sério e ninguém está trabalhando para corrigi-lo”, diz Alvaro Bedoya, diretor executivo do Centro de Direito de Georgetown, responsável por produzir o relatório. “Os departamentos de polícia estão tratando como se esse sistema não discriminasse raças, e isso não é verdade”.
O relatório de 150 páginas, chamado “The Perpetual Line-Up”, descobriu um remendo crescente de sistemas de reconhecimento facial em nível federal, estadual e local com pouca regulação e somente alguns padrões legais.
Alguns bancos de dados incluem fotos na delegacia, outros, fotos da carteira de motorista. Alguns estados, como Maryland e Pensilvânia, usam ambos enquanto analisam a cena do crime em busca de potenciais suspeitos.
Pelo menos 117 milhões de americanos têm imagens de seus rostos em um ou mais bancos de dados da polícia, o que significa que a semelhança com imagens captadas nas cenas de crime pode se tornar a base para um acompanhamento dos investigadores.
O FBI lançou um programa piloto neste ano que permite pesquisar bancos de dados de passaportes e vistos do Departamento de Estado com finalidade de investigação criminal. No geral, o Government Accountability Office informou, em maio, que o FBI teve acesso a 412 milhões de imagens faciais para pesquisas; os rostos de alguns americanos apareceram várias vezes nesses bancos.
Várias agências também manifestaram interesse na tecnologia de reconhecimento facial em tempo real, o que poderia dar à polícia a capacidade de identificar instantaneamente, por câmeras colocadas nas ruas, as pessoas que estão caminhando -- ou participando de uma manifestação política monitorada pelas autoridades, diz o relatório.
Uma coalizão de grupos de direitos humanos e de liberdades civis, munidos de cópias do relatório de Georgetown, planeja entregar uma carta com palavras duras para a divisão de direitos civis do Departamento de Justiça pedindo investigação sobre o uso - e eventuais abusos - da tecnologia de reconhecimento facial.
Os grupos apontam que a tecnologia foi usada durante os protestos que se seguiram à morte de um homem negro em Baltimore, em um caso que envolveu um policial, e alertam que o uso desregulado poderia fazer os afro-americanos relutarem em participar de manifestações onde pode haver captura de imagens faciais, congelando seus direitos de expressão e de livre associação.
O relatório diz que manifestantes presos por crimes menores, como transgressão, podem acabar em bases de dados de reconhecimento facial para o seu resto de suas vidas, expondo-os a um maior nível de vigilância policial, mesmo que as acusações sejam retiradas mais tarde.
“A tecnologia de reconhecimento facial está rapidamente sendo interligada às atividades diárias da polícia, afetando praticamente todas as jurisdições nos Estados Unidos. No entanto, as salvaguardas para garantir que esta tecnologia seja usada de forma justa e responsável parecem ser praticamente inexistentes”, escreveram a União Americana pelas Liberdades Civis e a Conferência-Líder sobre Direitos Civis e Humanos, um guarda-chuva que agrupa mais de 200 organizações. Outros 40 grupos de direitos civis também assinaram a carta.
O FBI diz que a tecnologia de reconhecimento facial é uma ferramenta valiosa para combater o crime. A tecnologia fornece pistas que investigadores podem seguir, mas não é só por isso que uma pessoa será presa. A agência também diz que as preocupações sobre as disparidades raciais são equivocadas.
“Algoritmos de reconhecimento facial são desenvolvidos no campo de visão computacional, baseados unicamente em técnicas de correspondência de padrões”, diz o FBI em comunicado. “Os algoritmos de reconhecimento facial não comparam rostos, na verdade, e também não consideram a cor da pele, sexo, idade ou qualquer outra característica”.
Ainda assim, o impacto desigual dos instrumentos de vigilância é uma fonte de crescente preocupação para grupos que defendem as liberdades e direitos civis. Especialistas dizem que uma ampla gama de tecnologias - rastreamento de celular e reconhecimento facial, entre outros - está criando padrões que reforçam e ampliam as formas tradicionais do viés policial.
A polícia do estado de Virginia, por exemplo, pode vasculhar um banco de dados de fotos feitas em delegacias com 1,2 milhão de imagens, a maioria de afro-americanos, já que eles têm duas vezes mais chance de serem presos do que o resto da população do Estado, aponta o relatório.
Maricopa County, no Arizona, usa um banco de dados com todas as carteiras de motoristas e fotos policiais do governo de Honduras, uma das principais origens dos imigrantes no estado.
Em Pinellas County, Flórida, um dos pioneiros a usar os sistemas de reconhecimento facial, o xerife Bob Gualtieri, chamou as alegações de impacto racial e étnico de “um monte de bobagens.”
O banco de dados de 11 milhões de fotos da Flórida, diz Gualtieri, ajudam os oficiais de Pinellas County a identificar ladrões capturados pelas câmeras de vídeos de bancos, pessoas que não cooperam em abordagens policiais de rotina e até mesmo vítimas de acidentes fatais ou homicídios. Todas as imagens são de registro público; a tecnologia de reconhecimento facial só ajuda os investigadores a identificarem as imagens existentes de forma mais eficiente, diz ele.
Quando perguntado sobre as disparidades raciais, Gualtieri respondeu: “Essa é uma discussão bem diferente”. O sistema em seu condado, diz ele, “não está registrando ninguém que não seja acusado de um crime”.
No entanto, ele reconhece que o banco de dados não foi auditado para ajustar a precisão ou disparidades raciais.
Pessoas que têm imagens em algum destes bancos até podem buscar uma ação judicial para ter suas fotos removidas, mas este processo normalmente é árduo.
Pesquisas de especialistas têm cada vez mais encontrado impacto racial desproporcional nas tecnologias avançadas de vigilância. O problema não são as tecnologias em si, mas o viés subjacente na forma como são implantados, defende Sakira Cook, conselheira na Conferência -Líder sobre Direitos Civis e Humanos. Isso é especialmente verdadeiro quando as detenções - em vez de processos judiciais - se tornam os fatores-chave na determinação das imagens que vão parar nos bancos de dados.
A taxa de prisão maior, diz Cook, “não significa necessariamente que os afro-americanos estão cometendo mais crimes. Significa apenas que eles estão sendo mais policiados, vigiados e tendo taxas mais altas de detenção. Isso agrava o problema da discriminação racial”.
Os riscos são mais altos para a liberdade de expressão política. Um ativista, Chris Wilson, foi preso por invasão de propriedade ao bloquear a entrada de uma feira na Flórida em protesto pelo incidente com um homem negro, morto logo depois que foi libertado da custódia policial em uma estrada perigosa. As acusações contra Wilson foram retiradas em troca de serviço comunitário e multa, mas suas fotos foram para o banco de dados de Pinellas County - e potencialmente também para o do FBI.
Isso é preocupante, diz Wilson, que é afro-americano e recentemente protestou em Dakota do Norte contra a construção de um gasoduto. “Preocupa-me tanto ter que cobrir o rosto quando vou protestar”, diz. “É realmente assustador pensar que você está sendo seguido”.