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A Petrobras deve realizar neste mês de março a assembleia geral extraordinária para eleger o general Joaquim Silva e Luna como o novo presidente da companhia, em substituição ao economista Roberto Castello Branco. A troca, porém, não foi nada convencional e foi lida pelo mercado como uma interferência indevida do presidente da República na estatal.
A mudança foi anunciada por Jair Bolsonaro em suas redes sociais, em vez do tradicional comunicado ao mercado. O motivo foi uma irritação com os aumentos sucessivos nos preços dos combustíveis, e não por uma eventual falta de resultados do gestor. E o indicado para comandar a petroleira não tem vasta experiência no setor, uma obrigação definida por lei para ocupar o cargo.
Todos esses fatos levantaram a suspeita de desrespeito às leis das Estatais e das S.A. (sociedades anônimas, caso da Petrobras), além do próprio estatuto da petroleira. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) abriu duas investigações para analisar o caso. Ainda não estão disponíveis detalhes sobre essas análises.
Pela lei, empresas listadas em bolsa devem comunicar informações importantes sobre seus negócios por meio de fato relevante, o que não aconteceu. A troca do comando das empresas também só é válida após aprovação do conselho de administração, o que também ainda não houve. Castello Branco tem mandato até o dia 20 de março, podendo ser reconduzido ou não. A assembleia para troca, a pedido do acionista controlador (União), já foi autorizada, mas ainda não tem data.
Relator da Lei de Responsabilidade das Estatais no Senado, o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) afirma que a troca de comando está em desacordo com a legislação, pois não observou as exigências legais para indicação e acesso de um membro da diretoria. Ele também diz que a troca parece visar “objetivos de políticas públicas sem a correspondente compensação”, uma menção ao desejo de Bolsonaro de dar mais previsibilidade a política de preços da Petrobras.
“As razões para essa decisão não parecem visar os interesses da empresa e sim a subordinação desses àqueles do acionista controlador ou, antes, a objetivos de políticas públicas sem a correspondente compensação”, critica o senador em carta enviada à CVM.
O Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU) pediu para a Corte determinar que a Petrobras não faça nenhuma alteração na presidência até que o tribunal julgue se houve ou não interferência de Bolsonaro na empresa. O MP alega que há “indícios de sobreposição de interesses particulares com fins eleitoreiros ao interesse público e desvio de finalidade do ato administrativo, com ofensa aos princípios constitucionais da legalidade e da moralidade”. O TCU ainda não se manifestou sobre o pedido.
A Advocacia-Geral da União (AGU), por sua vez, negou qualquer irregularidade na indicação. O órgão disse que Silva e Luna tem formação acadêmica compatível com o cargo e que não houve qualquer constrangimento ao conselho de administração da Petrobras. A AGU também alega que as decisões da União para a troca do comando possuem uma “subjetividade dentro dos parâmetros da lei”.
O que dizem as leis das estatais e das sociedades anônimas
A Lei das Estatais (13.303) foi criada em 2016, após o escândalo de corrupção na Petrobras. Os seus principais objetivos foram melhorar a gestão das estatais e blindá-las de interferências políticas que trouxessem prejuízos aos seus negócios. Para isso, a legislação estabelece uma série de regras para nomeação de diretores e conselheiros, um rígido programa de regras de conduta, regras para compras e licitações e políticas de auditoria interna e transparência com a sociedade e investidores.
Entre os requisitos exigidos pela lei para o presidente de uma estatal estão experiência de, no mínimo, dez anos na área de atuação ou de quatro anos em empresas com porte ou objeto social semelhante àquele da empresa estatal, no caso de profissionais do setor público e docentes e pesquisadores especializados.
O indicado de Bolsonaro para a Petrobras, o general do Exército Joaquim Silva e Luna, passou para a reserva em 2014. Na sequência, foi secretário de pessoal e depois secretário-geral do Ministério da Defesa. Foi ministro da Defesa por dez meses, no fim do governo Temer, e está há dois anos na direção-geral da Itaipu Binacional.
A lei também diz que é função do conselho de administração aprovar mudanças no comando. E que o acionista controlador (a União, no caso das estatais) deve preservar a independência do conselho no exercício de suas funções e “observar a política de indicação na escolha dos administradores e membros do Conselho Fiscal”. Diz, ainda, que o acionista controlador, em caso de abuso de poder, responderá pelos seus atos.
A lei das S.A. tipifica quais são os casos de abuso de poder. Entre eles, estão: orientar a companhia para fim estranho ao objeto social ou lesivo ao interesse nacional, ou levá-la a favorecer outra sociedade, brasileira ou estrangeira, em prejuízo da participação dos acionistas minoritários nos lucros ou no acervo da companhia, ou da economia nacional; e eleger administrador ou fiscal que sabe inapto, moral ou tecnicamente. A lei também veda trocas que visem o interesse do controlador, e não da companhia.
Por fim, instruções normativas da CVM reforçam o dever do acionista controlador de usar seu poder para atender aos interesses da empresa e sua função social (no caso das estatais), mas sem esquecer dos deveres e responsabilidades em relação aos demais stakeholders da empresa. E reafirma a obrigatoriedade de manter os acionistas informados sobre notícias que podem impactar o preço dos papéis via fatos relevantes emitidos ao mercado.
Sobre obrigações e responsabilidades de uma empresa de economia mista (caso da Petrobras), a lei das estatais diz que quaisquer obrigações e responsabilidades em “condições distintas às de qualquer outra empresa do setor privado em que atua” deverão estar claramente definidas em lei ou regulamento, além de ter seu custo e suas receitas discriminados e divulgados de forma transparente, inclusive no plano contábil.
O presidente Jair Bolsonaro tem pressionado as estatais a ter um “olhar social”. As legislações preveem que as estatais têm função social, que é o objetivo específico que levou à sua criação, seja pelo relevante interesse coletivo ou pelo imperativo de segurança nacional. E dizem que o controlador pode orientar a empresa a “atender ao interesse público que justificou a sua criação", mas sempre cumprindo seus “deveres e responsabilidades”.
A lei 2.004, que criou a Petrobras em 1953, no governo Vargas, foi revogada pela lei 9.478, de 1997, que quebrou o monopólio da estatal no setor de petróleo e gás, no governo FHC. Esta diz que a Petrobras "tem como objeto a pesquisa, a lavra, a refinação, o processamento, o comércio e o transporte de petróleo proveniente de poço, de xisto ou de outras rochas, de seus derivados, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos, bem como quaisquer outras atividades correlatas ou afins".
Essas atividades, diz a lei, "serão desenvolvidas pela Petrobras em caráter de livre competição com outras empresas, em função das condições de mercado". Esses mesmos objetivos, bem como o caráter de livre competição segundo as condições de mercado, também estão descritos no primeiro capítulo do estatuto social da petroleira.
O que dizem os especialistas
Marcelo Trindade, ex-diretor e ex-presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), afirmou em artigo escrito no jornal Valor Econômico que o presidente Bolsonaro violou o direito dos demais acionistas e o interesse público ao intervir na Petrobras.
“Ao afirmar numa 'live' que era excessivo e inoportuno o aumento dos preços dos combustíveis deliberado pela Petrobras de acordo com suas políticas, prometer mudanças e, no dia seguinte, anunciar pelas redes sociais a demissão do principal executivo da companhia, é induvidoso que o presidente Bolsonaro violou tanto o direito dos sócios da empresa quanto da empresa quanto o interesse público”, escreveu.
Daniel Lança, mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa e Sócio da SG Compliance, escreveu em artigo publicado na Veja que Bolsonaro interferiu diretamente na autonomia da empresa petroleira, afrontando a Lei das Estatais, tanto na forma quanto no conteúdo.
Na forma, ao constranger o conselho de administração a trocar o comando por "interesses político-ideológicos em evidente conflito de interesses". E no conteúdo por indicar um general que, na visão do articulista, não cumpre os requisitos previstos em lei para assumir a presidência de uma estatal.
Claudio Timm, advogado especialista em direito administrativo e sócio do TozziniFreire Advogados, lembra que a União, na condição de acionista controlador, indica sete dos 11 membros do conselho de administração da Petrobras. Os outros três nomes vêm dos acionistas minoritários e o último é escolhido pelos empregados. Com isso, a União consegue sempre escolher quem será o presidente da estatal.
“Como o controlador da Petrobras é a União, e ela indica e elege maioria dos membros do conselho de administração, acaba que é ela quem indica quem vai ser o diretor-presidente”, diz Timm. O estatuto da Petrobras permite, ainda, que o controlador destitua os seus conselheiros caso se sinta contrariada, o que reduz em muito as chances de o conselho conseguir ir contra a indicação do presidente da República.
“A União, como acionista controladora, pode fazer essa indicação de troca de comando, mas o certo seria ter feito isso seguindo os ritos cabíveis, e não da forma atabalhoada que foi”, pondera Timm.
Sobre o “olhar social” que o presidente Bolsonaro vem cobrando, Timm não vê irregularidades, pois as legislações impõem que os administradores devem se preocupar tanto com o interesse da companhia em si – entendido, de forma geral, como maximização dos lucros e dividendos – mas também com a função social de sua criação, sem ordem de prioridade.
Porém, ele lembra que isso não é um passe livre para a União fazer o que quiser com a estatal. “A União não pode de forma alguma fazer o que quiser com a companhia. Há uma série de deveres e responsabilidades que o controlador deve ter com a companhia e os acionistas minoritários.”
O ex-presidente da CVM Marcelo Trindade, que considera que houve irregularidades nos atos de Bolsonaro, diz que a única solução para evitar interferências que prejudiquem as estatais e acionistas minoritários é responsabilizar pessoalmente os governantes, quando constatado crime de responsabilidade ao “negligenciar a conservação do patrimônio nacional”.
“Se o caminho não for o da privatização, a única alternativa para resolver de uma vez por todas o drama das estatais brasileiras é responsabilizar pessoalmente os governantes. Só o temor do afastamento será capaz de deter novos desmandos contra o patrimônio nacional", escreveu Trindade.