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Shirky: mudança política é a principal marca desta geração | James Duncan Davidson
Shirky: mudança política é a principal marca desta geração| Foto: James Duncan Davidson
  • A ascensão da Wikipedia e do software livre oferecem uma oportunidade de criação coletiva. Ninguém está no comando e ninguém tem a garantia de que sua contribuição será aceita, mas em algum lugar entre esses dois polos há uma cultura de compartilhamento
  • O Brasil é o primeiro país a se alinhar inteiramente a um modelo de compartilhamento como forma de progresso econômico, cultural e social. E isso aparece desde a cultura do funk de favela até o presidente Lula dizendo que prefere soluções open source

Entrevista com Clay Shirky, jornalista e escritor americano

São Paulo - "O poder de organizar sem organizações". O subtítulo da principal obra do jornalista e acadêmico Clay Shirky – Here Comes Everybody (ainda não publicado no Brasil) – anuncia não apenas seu tema como explica, em poucas palavras, o conceito de crowdsourcing.

O termo junta as expressões "multidão" e "fonte" em inglês para designar a produção coletiva de conhecimento na era digital e é o mote para decifrar o que o autor considera como sendo a principal transformação que estamos vendo hoje: como a cultura humana está às vésperas de uma mudança tão – ou talvez mais – radical do que a da invenção da cultura impressa. Falando sem parar com a clareza de um bom professor, ele conversou com a reportagem sobre estas mudanças e o papel do Brasil neste cenário.

Como diferenciar a cultura tradicional da cultura da era digital?

Quando terminei de escrever meu livro Here Comes Everybody (algo como "Aí vem todo mundo", em inglês), tinha a impressão de que o comportamento determinava aquilo a que chamamos de cultura. Mas "comportamento" pode ser traduzido como motivação filtrada pela oportunidade. O que a cultura digital faz é pegar motivações ancestrais – "quero estar conectado a pessoas de que gosto", "quero ter mais autoconfiança", "quero ser autônomo" – e apresentar a elas um monte de novas oportunidades. Tanto a ascensão da Wikipedia ou da comunidade de software livre oferecem uma oportunidade da criação coletiva. Ninguém está no comando e ninguém tem a garantia de que sua contribuição será aceita, mas em algum lugar entre esses dois polos há uma cultura de compartilhamento, de combinação e de progresso. A pergunta a ser feita é: "Qual valor conseguimos extrair destas oportunidades?" ou "como temos que mudar a cultura para ter vantagem com isso?".

Dá para comparar as mudanças que vemos hoje com alguma outra mudança histórica?

Sim, com a invenção da cultura impressa, outro período em que o enorme acesso à informação mudou tudo. E quando ela apareceu, havia o temor de que ela centralizaria a cultura. A nova tecnologia permitiria que todos pudessem ter acesso a livros, mas sempre aos mesmos títulos, e a noção de cultura se tornaria mais massiva, ainda mais porque era controlada a pela Igreja Católica. O que aconteceu foi o contrário – e até hoje eu fico impressionado como a Elizabeth Ein­seins­­tein fala bem sobre essas mudanças sociais em seu livro A Revolução da Cultura Impressa (Ática, 1998). Em vez de um mesmo livro ser lido por milhares de pessoas, uma pessoa po­­dia ler milhares de livros. E o cho­­que da diversidade – de for­­mas de pensar e viver - virou –o mundo de cabeça para baixo. A internet é uma ferramenta para acessar informação, isso é óbvio, mas é uma ferramenta muito mais importante para conectar uns aos outros. E a variedade de formas de pensar e viver está apenas começando a crescer porque, de re­­pente, a ideia de nicho – você achava que era a única pessoa do mundo que gostava de de­­terminada coisa ou que fazia uma atividade de um jeito diferente – pode ser expressa so­­cialmente. Antes da consolidação da internet assistimos a diferentes movimentos, como a questão ambiental, a luta pe­­los direitos civis ou os direitos do consumidor, que começaram localizados e se tornaram globais.

Essa mudança poderia acontecer sem a invenção da internet?

Perceba o seguinte: embora a revolução científica não fosse possível sem a invenção da cultura impressa, ela não foi a causa da revolução científica. O que vemos com a internet é a ascensão de uma plataforma que permite o pensamento global numa época de problemas de escala global. Esse foi o ponto da revolução científica: não foi que os cientistas descobriram que havia a mídia impressa em que eles poderiam publicar suas descobertas, mas o fato de eles perceberem que precisavam de uma cultura em que uns lessem o que os outros estavam fazendo e em que pu­­dessem se desafiar uns aos ou­­tros. O foco agora deve ir para es­­sas normas culturais que po­­dem mudar a forma como usamos a internet.

Há algo em andamento hoje que seja semelhante àquela revolução científica?

A mudança política vai ser a revolução científica desta geração. Precisamos pensar em um conjunto de normas culturais que nos permita lidar com questões que afetam todo o planeta. Não temos isso ainda. Transformar o mundo inteiro em um só país com um único governo não é a forma correta de lidar com isso, pois é um retrocesso colocar o controle do mundo na mão de um grupo de líderes, mas os modelos que temos hoje também não são apropriados. Temos que pensar em formas de lidar com o engajamento político global. Algumas das principais transformações hoje são em países em desenvolvimento.

Marshall McLuhan dizia que a cultura digital é mais próxima da oral do que da escrita. Países menos alfabetizados têm mais facilidade de compreender a cultura digital?

Para isso precisríamos que as possibilidades de participação coletiva que vivenciamos principalmente online se tornassem disponíveis não de forma escrita, mas através da voz; não através de computadores, mas de telefones. O telefone é o principal dispositivo de contato para a maior parte do planeta; 4,5 bilhões de pessoas usam o telefone, enquanto outros 3 bilhões usam celulares. Vi­­vemos num mundo em que é muito comum acessar a rede global. O que essas pessoas fazem na internet – se escrevem, leem, tiram fotos ou fazem filmes – é o de menos. A oportunidade e o desafio é como iremos fazer que a motivação social da internet esteja disponível para qualquer um que tenha um telefone, e não só para quem tem computador. E tem coisas que você pode fazer no telefone que não dá para fazer na web. E não estou falando de um iPhone, mas de aparelhos que façam apenas telefonemas e enviem SMS. Acho que é um gran­­de desafio pensar nesses sistemas de organização social.

Você acha que o Brasil é um agente desta mudança?

Claramente. O Brasil é o primeiro país a se alinhar inteiramente a um modelo de compartilhamento como forma de progresso econômico, cultural e social. E isso aparece em diferentes níveis, desde o mais baixo – como a cultura do funk de favela, que pressupõe o com­­­partilhamento em sua essência – até o mais alto, com o presidente Lula dizendo que prefere soluções open source para os problemas do país. Há outros países que estão se de­­­senvolvendo desta forma, mas nenhum outro está tão à frente quanto o Brasil. E é por isso que eu acho que o Brasil é um dos países mais importantes do mundo hoje.

E o resto do mundo percebe isso?

O mundo não percebe isso co­­mo um todo, apenas como exem­­plos que se desenvolvem isolados uns dos outros. Não há a consciência de que essas iniciativas façam parte de um todo, mas que há, de fato, uma cultura brasileira que está sendo desenvolvida ao redor desses modelos. E isso é a coisa mais importante – não só em relação ao País, mas à forma como encaramos cultura digital no planeta.

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