Faltava uma hora para a meia-noite, já computando três horas do turno da noite, ou seja, ainda faltavam mais nove horas. Em sua estação de trabalho, em uma sala pequena e iluminada pelo fluorescente dos monitores em Nanjing, na China, Li Qiwen sentava-se sem camisa e fumando um cigarro após o outro, com os olhos fixos e compenetrados no jogo de computador on-line à sua frente.
Na tela, uma área montanhosa com algumas florestas, habitada por ruínas de castelos e animais pastando, por onde vagavam os monges guerreiros. Li, ou seu personagem armado, está matando monges inimigos desde as 20h, clicando com o mouse em um cadáver após o outro e, a cada clique, acumulando algumas dúzias de moedas virtuais e talvez uma ou duas armas mágicas em um saco cada vez mais carregado.
Doze horas por noite, sete noites por semana, com apenas duas ou três noites de folga por mês, esse é o ganha pão de Li. Nesta noite de verão em 2006, o jogo em sua tela era, como não podia deixar de ser, World of Warcraft, um jogo on-line de caráter fantástico em que os jogadores, com a aparência de avatares criados por eles mesmos elfos noturnos, orcs guerreiros e outros personagens bem ao estilo de ficção Tolkien batalham entre si para a invasão do reino fantástico de Azeroth, ganhando pontos a cada monstro morto e subindo, ao longo de muitos meses, do nível mais baixo do jogo no quesito habilidade de matar (1) até o mais alto (70).
Mais de oito milhões de pessoas no mundo todo jogam World of Warcraft cerca de uma em cada mil no planeta e sempre que Li está conectado, há milhares de outros jogadores conectados também. Eles compartilham o mesmo mundo vasto e virtual do jogo com ele, convergindo em suas cidades para comercializar objetos pilhados ou aparecendo de tempos em tempos no território de Li, em busca de inimigos para matar e moedas para recolher.
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Todo jogador do World of Warcraft precisa dessas moedas, e principalmente por um motivo: pagar pelos apetrechos virtuais para lutar contra monstros a fim de ganhar pontos e ir subindo de nível. E existem apenas duas maneiras de os jogadores obterem esse montante de dinheiro virtual exigido pelo jogo: eles podem passar horas recolhendo-o ou podem pagar alguém com dinheiro real para fazê-lo.
Salário real
Ao final de cada turno, Li reporta a quantia obtida na noite ao seu supervisor, e ao final da semana ele, assim como seus nove colegas de trabalho, recebem o pagamento integral. Para cada 100 moedas de ouro virtuais que ganha, Li recebe 10 yuan, ou cerca de US$ 1,25 [cerca de R$ 2,50], recebendo um salário real de 30 centavos por hora, mais ou menos. O chefe, por sua vez, recebe US$ 3 ou mais vendendo essas mesmas moedas a um comprador on-line, que as venderá para o cliente final (um jogador americano ou europeu) pelo valor de US$ 20 [pouco menos de R$ 40].
A saleta comercial onde Li e seus colegas trabalham duas salas, uma para os funcionários e outra para o supervisor além de um dormitório improvisado para os funcionários, a meia hora de ônibus de distância, constituem-se nas instalações físicas desse modesto negócio que lucra US$ 80 mil ao ano [o equivalente a cerca de R$ 13 mil por mês].
Estima-se que existam milhares de empresas como essa em toda a China, sendo que nenhuma é propriedade ou é administrada pelas fabricantes de jogos pelas quais elas ganham dinheiro. Ao todo, empregam cerca de 100 mil funcionários, que geram o maior volume de todas as mercadorias dentro do que se tornou um negócio mundial de US$ 1,8 bilhão em itens virtuais. O nome polido dessas operações é "youxi gongzuoshi" ou "workshops de jogos", mas entre os jogadores do mundo todo, são mais conhecidas como "gold farms", fazendas de ouro.
Embora a internet tenha produzido novas descrições de emprego bastante esquisitas ao longo dos anos, é difícil pensar em alguma mais surreal do que gold farmer chinês.
Mercado
O mercado de "massively multiplayer online role-playing games" (jogos RPG on-line com enorme quantidade de jogadores), conhecidos como M.M.O.s, expande-se rapidamente, com pelo menos 80 títulos, entre tantos outros em desenvolvimento, todos destinados a uma população de jogadores que totaliza cerca de 30 milhões no mundo inteiro.
O World of Warcraft, produzido em Irvine, na Califórnia, pela Blizzard Entertainment, é um dos jogos de computador mais lucrativos da história, rendendo quase US$ 1 bilhão por ano em assinaturas mensais e outras fontes de receita.
Em um M.M.O. típico, como em RPGs clássicos pré era digital como o Dungeons & Dragons, cada jogador conduz seu personagem fantástico em uma jornada de combates e aventuras em jogos que podem demorar meses ou até anos para serem concluídos. Como também se sabe desde o D. & D., porém, o romantismo dessa vida imaginária se coloca em rígido contraste à precisão laboriosa e matemática que o viabiliza.
Os jogadores de M.M.O.s são, sem dúvida, jogadores obsessivos, quase sempre dedicando mais tempo às carreiras de faz-de-conta de suas personagens do que aos seus empregos reais. Na verdade, não seria exagero afirmar que os M.M.O.s são tanto economias quanto jogos. Em cada um deles, existe algum tipo de dinheiro em circulação, sendo que a sua obtenção e o seu gasto invariavelmente requerem o máximo de atenção: em World of Warcraft, a moeda é de ouro genérica; no popular jogo coreano Lineage II, é a "adena"; no sucesso japonês Final Fantasy XI, chama-se "gil". E em todos esses jogos, é preciso muito desse dinheiro virtual em moeda local para comprar os equipamentos e outros apetrechos bélicos necessários para que o jogador pelo menos considere entrar em uma briga com os monstros.
Para obter esse dinheiro, os jogadores lançam mão de uma série de atividades virtuais de geração de renda à sua disposição: podem coletar objetos saqueados de monstros mortos, é claro, mas podem também fabricar armas, poções e itens de mesma utilidade para vender a outros jogadores ou mesmo reunir ervas e couros e outros recursos que são a matéria-prima usada pelos artesãos. Essas e outras atividades repetitivas e demoradas, são conhecidas em conjunto como "grind" (tarefas árduas).
Semelhanças
Em rápida análise, há pouca diferença entre gold farming e produção de brinquedos ou fabricação de tecidos ou qualquer outra manufatura que tenha se espalhado pela China para atender as necessidades do consumidor ocidental.
Os salários, as margens, a habitação dos trabalhadores, os turnos longos e as semanas de trabalho ininterrupto tudo isso já faz parte da prática padrão. Assim como muitos trabalhadores na China hoje, a maioria dos gold farmers é de migrantes. Li, por exemplo, veio à Nanjing, na região costeira de intensa atividade industrial do país, fugindo de regiões mais pobres.
Aos 30 anos, está velho para o serviço e sente por isso. Ele diz que espera se casar e constituir família, mas não vê perspectivas disso com o salário que recebe, que não é muito melhor do que o que recebia em seu emprego anterior como mecânico. A habitação paga pela empresa faz com que suas despesas não sejam elevadas, limitando-se a alimentação, cigarros, passagem de ônibus, taxas de conexão no wang ba (ou internet café) aonde vai para relaxar, mas mesmo assim, como Li contou, é difícil economizar. "É possível", disse ele, "mas é preciso economizar muito".
Esse é, porém, um panorama sucinto desse emprego, que desconsidera muitos fatores. Sentar-se ao lado de Li por uma ou duas horas, no ambiente lúgubre e funcional do seu local de emprego, enquanto ele navega pelo mundo fantástico em tecnicolor no qual ganha a vida, nos faz compreender que gold farming não é apenas mais um emprego terceirizado.
Quando termina o turno da noite e raia o sol, Li e seus colegas de trabalho só percebem que amanheceu pelas fendas de luz que escapam pelas frestas do plástico preso à janela para barrar a claridade. Enquanto Li se prepara para ir embora, outro trabalhador se senta em seu lugar, assume o controle de seu avatar e dá continuidade às mesmas rígidas rotinas em meio aos magos guerreiros de Azeroth.
Na maioria dos dias, o substituto de Li é Wang Huachen, de 22 anos, que trabalha nesta gold farm há um ano, desde que concluiu o curso universitário em direito. Em breve ele fará as provas de certificação para a prática da advocacia, mas não parece ter pressa nenhuma para fazê-lo. "Vou sentir falta esse emprego", disse ele. "Pode até ser entediante, mas ainda conservo uma veia brincalhona. Por isso acho que vou sentir saudade dessa sensação".
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