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Justiça do Trabalho desafia STF e manda aplicativos contratarem trabalhadores

Trabalho por aplicativo
Entendimento do STF sobre vínculo de trabalhadores por aplicativo é ignorado pela Justiça do Trabalho. (Foto: Ilustração/Gazeta do Povo com DALL-E)

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Uma onda de decisões da Justiça do Trabalho tem colocado em xeque o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a inexistência de vínculo empregatício entre trabalhadores e plataformas de aplicativos.

Desde a regulamentação da atividade, em 2018, o STF tem consistentemente decidido sobre a não aplicação das regras da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) nos casos julgados. Em dezembro de 2023, após várias decisões monocráticas, a 1.ª Turma do STF decidiu por unanimidade pela inexistência do vínculo.

Os magistrados entenderam que a relação entre motoristas e aplicativos é caracterizada pela autonomia e flexibilidade, o que permite aos motoristas escolher seus horários, aceitar ou recusar corridas e utilizar múltiplas plataformas simultaneamente.

Apesar disso, o tema permaneceu controverso e os Tribunais Regionais do Trabalho (TRT) continuaram proferindo sentenças em direção contrária. Houve divergência de entendimento até entre turmas do Tribunal Superior do Trabalho (TST) no ano passado.

Mais recentemente, em setembro, a 2.ª e a 14.ª turmas do TRT da 2.ª Região (SP) reconheceram, em ações individuais, a existência do vínculo empregatício entre trabalhadores e as plataformas Rappi e Levoo Tecnologia, ambos aplicativos de entregas.

O mesmo TRT-2 iniciou, em novembro, o julgamento de duas Ações Civis Públicas (ACP) movidas pelo Ministério Público do Trabalho contra as plataformas 99, de transporte, e o iFood, de entregas.

Em relação à 99, a relatora da 1.ª Turma do tribunal, desembargadora Maria José Bighetti Ordoño Rebello, já deu parecer a favor do vínculo. Faltam ainda quatro votos. O julgamento está marcado para esta terça-feira (3).

Na próxima quinta-feira (5) será retomado o julgamento da ACP contra o iFood. A ação, que estava parada desde 2019, não havia sido acatada pela primeira instância. O recurso ao TRT-2 começou a ser julgado pela 14.ª Turma em 20 de novembro e já tem dois votos contrários ao aplicativo, ou seja, pelo vínculo. O terceiro desembargador pediu vistas.

Caso seja confirmado o entendimento das ações individuais, será mais um capítulo de decisões conflitantes que geram incompreensão das partes e insegurança jurídica.

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“Essas decisões tumultuam muito mais do que ajudam”, diz André Porto, diretor executivo da Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), que representa o setor. “Estamos falando de trabalhadores que, eles próprios, reconhecem e valorizam a autonomia e flexibilidade.”

Para Juliano Barra, doutor em Direito pela Universidade de Paris e sócio do escritório Barra, Barros & Roxo Advogados, além da confusão criada pelas decisões, a ação civil pública não é o instrumento adequado para uma definição porque os casos devem ser tratados de forma individual e não coletivamente.

“Chega a ser irresponsável você reconhecer vínculos de prestadores de serviços de plataforma por meio de ação civil pública neste momento”, diz, lembrando que está em tramitação no Congresso um projeto de lei (PL 12/2024) que trata dos direitos de motoristas de aplicativos. Além disso, a própria legitimidade da ACP está sendo julgada no TST, por meio da ação chamada de Tema 27.

Decisão da Uber terá repercussão geral

André Porto destaca que o movimento do TRT-2 acontece às vésperas de uma audiência convocada pelo ministro Edson Fachin, do STF, para discutir a possibilidade ou não do reconhecimento de vínculo de emprego entre motoristas e a Uber do Brasil.

Marcada para a próxima segunda-feira (9), a discussão deve subsidiar o julgamento do recurso da plataforma de transporte, que deve ocorrer no início de 2025 e terá repercussão geral, ou seja, será aplicada para todos os casos semelhantes.

No recurso, a Uber questiona decisão do TST que entendeu que a relação de um motorista com a plataforma cumpria os requisitos da CLT para o reconhecimento do vínculo de emprego.

Fachin, que é o relator da ação, ainda não externou uma posição definitiva sobre o reconhecimento do vínculo. Mas alertou, na justificativa da audiência, que o debate “se revela um dos temas mais incandescentes na atual conjuntura trabalhista-constitucional, catalisando debates e divergências consistentes”.

Para o presidente da Anobitec, que participa como amicus curiae (amigo da Corte) do processo, a entidade pretende, na audiência, ratificar a posição de que a obrigatoriedade do vínculo não é adequada.

“Participamos ativamente dos diversos ambientes de discussões no Executivo, Legislativo e Judiciário para esclarecer que o formato tradicional de emprego estabelecido pela CLT não se aplica à realidade das plataformas de intermediação”, diz. “Vai ser um momento rico para apresentar dados e informações para o debate público de uma regulamentação definitiva.”

Imbróglio revela disputa entre STF e Justiça do Trabalho

O pano de fundo do imbróglio traduz uma disputa de visões entre o STF e os tribunais inferiores. O ministro Gilmar Mendes, do STF, chegou a criticar, em outubro do ano passado, o desrespeito dos tribunais regionais à jurisprudência consolidada do STF sobre o tema.

“É inadmissível que tribunais inferiores insistam em reconhecer vínculos empregatícios em situações onde o STF já firmou entendimento contrário, criando insegurança jurídica e desrespeitando a autoridade desta Corte”, disse o magistrado.

No xadrez do jogo de forças entram também a atuação do Ministério Público, por meio das ACPs, e do Legislativo, onde a tramitação do projeto de lei está emperrada. “O Congresso tem demorado a dar resposta e o Judiciário, por meio desse ativismo, acaba querendo tomar para si uma atividade do regulador", diz outra fonte integrada como amicus curiae do processo.

Segundo José Pastore, especialista em relações do trabalho e autor de um estudo sobre ativismo judicial na área trabalhista, em fase de publicação, o cenário brasileiro tem se caracterizado por decisões tomadas pelo Poder Judiciário com base em "interpretações voluntaristas das leis, no vácuo delas, ou até contrárias a elas".

Um dos exemplos são as decisões contrárias às flexibilizações aprovadas na reforma trabalhista de 2017, entre elas a terceirização. “Mesmo as leis mais claras estão sujeitas a interpretações voluntaristas”, diz Pastore.

Esse ativismo judicial, destaca, "gera um clima de medo e cautela entre os agentes econômicos, o que inibe os investimentos de criação e expansão de empregos de boa qualidade". "Com isso, o país cresce bem abaixo das suas potencialidades", diz.

Ideologias embasam sentenças de trabalho por aplicativo

Segundo Pastore, as decisões da Justiça do Trabalho costumam ser marcadas por concepções humanistas, invocadas em associação com o princípio da dignidade humana, e paternalistas.

"Ao considerar os trabalhadores como a parte vulnerável nas relações de trabalho, os juízes os tratam como ‘hipossuficientes’ que precisam de proteção das leis trabalhistas, da fiscalização, do Ministério Público do Trabalho e da Justiça do Trabalho", explica. "Esta teria como função principal reduzir as injustiças sociais.”

Embora “compreensível” que em um país com tantas desigualdades, como o Brasil, magistrados "busquem fazer justiça social para corrigir o sofrimento dos vulneráveis”, o especialista alerta: “Por mais nobre e humano que seja o propósito dos magistrados nesse campo, é clara a limitação das suas ações para corrigir distorções cujas soluções dependem da implementação contínua de políticas públicas aprovadas pelo Poder Legislativo e executadas pelo Poder Executivo.”

Para Juliano Barra, no caso dos aplicativos, o cenário é “mais grave” do que simples ativismo judicial. “É muito sério que alguns magistrados comecem a julgar contrariamente as decisões vinculantes do STF”, diz. “É o descumprimento de uma obrigação por parte do juiz."

O advogado acredita que parte da indisciplina judiciária por alguns integrantes dos tribunais inferiores se deva a questões ideológicas. “A partir do momento em que você começa a tratar a questão de maneira ideológica, o juiz vai se afastar do texto legal para começar a julgar conforme princípios e valores, que são subjetivos", afirma.

Pastore também cita a ideologia como determinante em muitas decisões. “Alguns juízes relutam em equilibrar os princípios do valor social do trabalho e da dignidade da pessoa humana com os da livre iniciativa, do sistema concorrencial ou do regime capitalista que marca muitas sociedades”, explica.

“Para os que assim pensam, qualquer forma de socialismo é melhor do que o quadro acima descrito quando se quer evitar ou reparar as injustiças sociais", diz Pastore. "Nesse sentido, os princípios do mérito individual e da livre concorrência perturbam bastante a visão desses magistrados que gostariam de ver um mundo mais igualitário e dominado pela equidade e não pela saudável competição entre as pessoas e o mercado.”

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