Vitória de Javier Milei nas eleições argentinas animou libertários brasileiros.| Foto: Enrique García Medina/EFE
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Embalado pelos ventos da eleição do presidente Javier Milei, na Argentina, o movimento libertário brasileiro aposta no aumento da representação legislativa a partir das próximas eleições.

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A visibilidade proporcionada pela eleição do mandatário do país vizinho é festejada pela maior parte da comunidade que, apesar de ter na extinção do Estado seu princípio fundamental, defende a destruição das amarras estatais "por dentro" do sistema.

"A ideia é ser um Cavalo de Troia", explica o deputado Gilson Marques (Novo-SC), único parlamentar assumidamente libertário no Congresso, que está no segundo mandato.

Sem lideranças orgânicas, já que se opõem a centralizações por princípio, os libertários brasileiros veem no partido Novo, de orientação liberal, um espaço confortável de atuação.

"Na eleição de 2022, tínhamos um grupo com cinco candidatos a deputado estadual e federal em todo o país. Para as próximas, minoritárias, já temos mais de 25 nomes até agora. A ideia é fazer vereadores nas principais capitais e preparar terreno para as eleições majoritárias de 2026", diz Gabriel César, assessor parlamentar que concorreu ao Legislativo de Santa Catarina, também pelo Novo.

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Movimento teve explosão nos últimos dez anos

Espalhado em organizações, institutos, think tanks e partidos políticos, o movimento libertário teve um "boom" de crescimento nos últimos dez anos, na esteira dos protestos de 2013.

"Alguns movimentos de dentro de universidades começaram a levantar bandeiras pelas liberdades individuais. Cartazes de 'Menos Marx e mais Mises' [em alusão aos teóricos do comunismo e do liberalismo] ganharam repercussão nas ruas", lembra Dennys Xavier, professor de Filosofia Antiga na Universidade de Uberlândia e referência acadêmica sobre o libertarianismo no país.

Desde então, os libertários passaram a ter na internet um canal importante de interação. Pipocaram youtubers, grupos de estudos e instituições voltadas à promoção do ideário. Uma das mais representativas é o Studentes for Liberty (SFL), organização mundial de desenvolvimento e formação de "líderes da liberdade" espalhada por 110 países.

Criada nos Estados Unidos, chegou ao Brasil em 2012 e funciona como um guarda-chuva para ideias liberais, conservadoras e, especialmente, libertárias.

"Entre os alunos estão desde liberais clássicos, que acreditam na importância do Estado para esferas de justiça, educação, segurança, até anarcocapitalistas, os 'ancaps', que acreditam que o Estado é uma tecnologia ultrapassada, um tratado social que deveria caminhar para o fim", explica Nycollas Liberato, diretor executivo da organização.

Não existem dados consolidados, mas pesquisas informais estimam a existência de 500 mil libertários no país, a maioria constituída de jovens entre 20 e 30 anos.

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"Isso considerando aqueles que se identificam como tal", explica Liberato. "Houve um crescimento expressivo, Em 2012, éramos um grupo pequeno, que cabia talvez em uma Kombi. Eu conhecia praticamente todos pelo nome. Hoje isso é impossível. No mínimo, já enchemos um estádio de futebol", diz.

A representação parlamentar, segundo ele, é apenas um dos braços da organização, que funciona numa estratégia batizada de "estrela-do-mar" por Hélio Beltrão, fundador do Instituto Mises Brasil, também referência na difusão de ideias liberais desde 2007.

"A estrela-do-mar é um desenho de nossa atuação em várias pontas. Assim, se um dos braços é atingido, os outros continuam. A ideia é difundir e explicar os ideais de liberdade para fazer uma mudança cultural, uma transformação da sociedade a partir do indivíduo em diversas esferas da sociedade", explica Liberato.

Liberais, libertários e anarcocapitalistas

A visão liberal contempla, de forma geral, todas as vertentes que defendem o protagonismo do indivíduo na organização da sociedade e no funcionamento da economia. O pensamento sempre esteve presente no Brasil desde o Império, mas voltou a ter mais visibilidade, na história recente, a partir do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

No governo Jair Bolsonaro (PL), teve seu ápice de representação institucional com o ministro Paulo Guedes à frente da Economia. Com ele, quadros ligados à "escola de Chicago", que tem como ícone o economista liberal Milton Friedman, povoaram gabinetes ministeriais e influenciaram políticas públicas.

Por definição, liberais clássicos aceitam dar "um passo de cada vez" na redução do Estado. Defendem a privatização de empresas e as parcerias público-privadas, com o Estado servindo de garantidor de regras e fiscalizador de serviços.

Libertários e anarcocapitalistas são considerados subgrupos, uma franja mais radical na defesa dos direitos indivíduos em relação ao poder estatal. Adeptos da Escola Austríaca, que tem como referências maiores os economistas Ludwig von Mises (1881-1973) e Friedrich Hayek (1899-1992), representam a antítese de utopias estatizantes e coletivistas, como o socialismo e o comunismo. Também se contrapõem ao anarquismo de esquerda, embora encontrem alguns ecos no pensamento.

Os "austríacos", apesar de terem diferentes nacionalidades, mantiveram o nome do local de origem das teorias. Para eles, a liberdade individual é a base do progresso econômico e as decisões devem ser tomadas por indivíduos e não pelo Estado ou qualquer outro poder central.

Defendem um mundo de comunidades autônomas com serviços organizados por instituições e pela esfera privada, sem a intervenção de um Estado central, que, segundo eles, espolia o cidadão por meio de impostos. "Imposto é roubo" e "o Estado não é uma instituição moralmente defensável", são algumas das premissas basilares difundidas.

De Hayek a Rothbard, ecos da liberdade

O pensamento dos austríacos ganhou evidência após Friedrich Hayek receber o Prêmio Nobel de Ciências Econômicas em 1974. Paralelamente, os conceitos elaborados de um de seus grandes expoentes, o norte-americano Murray Rothbard (1926-1995), ganharam visibilidade no debate.

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Para ele, é falsa a acepção hobbesiana (de Thomas Hobes) de que o Estado é um contrato social. “Ele sempre nasceu da conquista e da exploração”, escreveu. A Rothbard é atribuída a criação do termo "anarcocapitalismo", ainda na década de 1950. Em 1971, fundou o Partido Libertário americano.

Suas frases lapidares e diretas circulam cada vez mais na internet, seduzindo os amantes da liberdade individual. Uma delas: "O Estado é, e sempre foi, o grande inimigo único da raça humana, sua liberdade, felicidade e progresso". Outra: "⁠O resultado inevitável da ação fiscal desigual do governo é dividir a comunidade em duas grandes classes: (…) pagadores de impostos e (…) consumidores de impostos".

Seus seguidores, que se contrapõem ao keynesianismo que dominou as últimas gerações, estão longe de ser irrelevantes no cenário mundial. Entre as referências atuais está o economista espanhol Jesús Huerta de Soto, criador de um mestrado em economia sobre a Escola Austríaca na Universidad Rey Juan Carlos, de Madri. O presidente argentino, Javier Milei, fez questão de citá-lo em sua posse como um de seus gurus.

Atuação dos libertários encontra resistência na academia e apoio na sociedade

Entre as diversas pontas de atuação do movimento libertário, a academia, segundo Liberato, é o foco de maior resistência. "Devido ao modelo da ditadura militar, tivemos um espalhamento da esquerda coletivista nas universidades, com professores que acabam colocando as ideias aos alunos de uma maneira cada vez menos imparcial", afirma.

Dennys Xavier, pós-doutor em Historia da Filosofia, confirma a dificuldade. "Na verdade, eu entrei na academia porque passei abaixo do radar. Na época, a patrulha não era tão intensa. Hoje, com meu currículo de livros e artigos sobre o tema, minha chance de passar num concurso para a universidade seria menor que zero", acredita.

Para Liberato, o caminho para quebrar a hegemonia esquerdista é intensificar grupos de estudos dentro das universidades. Como exemplo, cita movimentos jovens dentro dos partidos políticos e organizações como a União Juventude e Liberdade (UJL), formada por representantes do partido Novo, Podemos, União Brasil e PL, que, apesar da resistência, continuam avançando.

Recentemente, integrantes da UJL foram hostilizados durante 4.ª Conferência Nacional de Juventude, que ocorreu em Brasília. O relato foi de socos, empurrões, água no rosto e hostilizações por parte de lideranças do outro espectro político durante as discussões de propostas como a revogação da CLT e a criação de um ICMS educacional. Registros da confusão foram compartilhados nas redes sociais e o episódio terminou em investigação policial.

Sob ferrenha oposição nos círculos acadêmicos, as ideias têm mais aceitação na sociedade civil, onde o movimento aposta em atividades e políticas com foco em valores libertários.

"Temos pessoas trabalhando em todas as áreas, especialmente dentro das empresas, nos negócios e em iniciativas de empreendedorismo. Há pessoas discutindo a ausência do Estado completo em seus empreendimentos, na vida daquele momento, pessoas que querem acabar com o Estado por dentro. Estamos trabalhando para que a sociedade consiga se desenvolver na ausência de políticas estatais. Eu vejo que é muito disseminada e não tem como dar errado", aposta Liberato.

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Internet, seara de difusão, sonhos e inspiração

A internet é uma seara mais fértil e um capítulo à parte na difusão da visão libertária. Influencers fazem barulho nas redes com discussões da pauta política e de assuntos do dia a dia.

Um dos temas de maior engajamento são o bitcoin e demais criptomoedas, considerados pela comunidade como uma ferramenta de proteção da própria riqueza fora do controle do Estado. A história do misterioso criador do bitcoin, Satoshi Nakamoto, que desapareceu do mapa após fazer fortuna com a moeda virtual, embala a imaginação dos internautas.

A princípio tido como uma excentricidade, o bitcoin já se tornou relevante na econômica mundial, sendo incorporado a ETFs (Exchange Traded Funds) e diversos fundos de investimentos. Tentativas de regulação das criptos aparecem a todo momento, mas libertários apostam na supremacia da moeda, que ignora fronteiras e prescinde do sistema bancário internacional.

Há várias histórias sedutoras envolvendo a moeda. Um dos precursores do assunto no Brasil, o libertário Daniel Fraga, se tornou uma lenda da comunidade por lutar contra o Estado brasileiro graças à criptomoeda.

Após acumular vários processos de políticos, juízes e autoridades por conta de seus vídeos denunciando descasos, incompetência e desmandos do Estado, Fraga também desapareceu sem deixar rastros, deixando as contas bancárias vazias, e levando com uma "wallet" carregada de criptos.

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Personagens extravagantes e polêmicos também inundam as redes. Paulo Kogos, um dos anarcocapitalistas mais famosos do Brasil, fez muito barulho nas redes ao se candidatar para deputado estadual pelo PTB nas eleições de 2022, com propostas arrojadas, entre elas a possibilidade de pagar impostos usando ouro e bitcoin.

O ativista Raphaël Lima, fundador do Canal Ideias Radicais, no YouTube, com mais de 600 mil seguidores, é outro expoente. Seguindo os passos de seus antecessores, Lima se destacou abordando temas do cotidiano sob a visão libertária. Além de dar consultoria e treinamento na formação de lideranças libertárias dentro do Partido Novo, é a principal aposta do movimento para a Câmara de Vereadores de São Paulo, no próximo ano.

"A minha ideia é me eleger e ajudar o maior número de representantes libertários. Para começar a mudar por dentro. Porque não basta só a gente falar, a gente também tem que entregar resultado, né? Para não vir gente falar: 'olha, muito bonita a sua ideia realmente. Mas e daí?' Então a gente precisa entrar no jogo para mostrar que conseguimos melhorar 30%, 40% as coisas. Para as pessoas verem que é possível melhorar", afirma.

Rodrigo Marinho, diretor executivo da Frente Parlamentar do Livre Mercado e membro fundador do Mises Brasil, tem expectativas grandes em relação ao aumento da participação parlamentar. "Não existe botão mágico para destruir o Estado. Tem que ser por dentro", diz.

Dennys Xavier ressalta que mais importante que eleger o presidente do país, como aconteceu na Argentina, é ter uma base parlamentar sólida no Legislativo para respaldar as decisões.

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"A ideia de parte da comunidade libertária de não querer fazer parte do sistema é terrivelmente equivocada. É certo que quando você entra no jogo, as pressões se tornam muito mais complexas. Mas você tem gente dentro combatendo contra a máquina. O próprio Gilson [Marques] é um exemplo disso. Você tem um político libertário dentro das comissões, enterrando uma lei obsoleta atrás da outra, então faz uma diferença brutal", afirma o acadêmico.

O mesmo otimismo é compartilhado pelo diretor do IFL. "Esperamos que os libertários aumentem sua representação parlamentar, ao lado dos demais braços de atuação do movimento. Nossa certeza é que o libertarianismo veio para ficar", conclui.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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