Nos últimos três anos, a coordenadora do curso de Administração da UFPR, Natália Rese, observou em sala de aula um forte aumento no interesse dos alunos pela colaboração. Para ela, trata-se de um afastamento voluntário da competição destrutiva rumo a modelos de negócio alternativos, em que conta mais uma cultura ética da empresa do que o lucro a qualquer custo – e a competição interna que ela acarreta.
Em alguns casos, confiar no próximo é simplesmente uma necessidade. “Algumas áreas, como a da inovação, requerem um ambiente colaborativo”, pondera Natália. “Mas as iniciativas de cooperação estão se espalhando. Negócios entre empresas que apostam na colaboração mudam a base de uma rede econômica maior”, explica.
Estimular mudanças como essa é a missão da campanha internacional Unashamedly Ethical, criada na África do Sul por um empreiteiro corrupto que mudou de lado. Batizada no Brasil de “Corajosamente Éticos”, já reúne 540 empresas que assinaram um termo de compromisso em que concordam com dez boas atitudes, como não cobrar nem receber propina, prover “informações precisas e acessíveis em tempo oportuno” e “colaborar com os colegas para impactar a sociedade e a nação”.
Cantina pague você mesmo
Uma prática simples baseada na confiança e inspirada em pontos de venda europeus chama a atenção no Paraná: empresas com cantinas no modelo “pague você mesmo”, com total acesso ao caixa, sem controle. Na fabricante de portas Pormade, de União da Vitória, a ideia surgiu há dez anos por motivos prosaicos: não havia padaria próxima e todo mundo queria um doce ou lanche de tarde. Resultado: durante algum tempo, os próprios funcionários passaram a trazer comida para vender, e a situação trouxe perda de concentração, além de uma ou outra desavença por dívidas contraídas uns com os outros.
Uma cantina se fazia necessária, mas seria impossível contratar alguém só para cuidar do caixa. Seguindo exemplos observados por membros da equipe na Europa, em que produtos são deixados à venda na beira da estrada ou em praças, com uma caixinha para se depositar o dinheiro, surgiu a Cantina da Confiança.
Os doces e bebidas foram espalhados por três ambientes da Pormade, que tem 590 funcionários, incluindo fábrica e áreas administrativas. A demanda foi crescente, e hoje em dia são adquiridos R$ 1.150 em produtos para as cantinas por semana. Dinheiro que passa pela mão dos funcionários sem controle, mas também sem desfalques. Nos seis anos em que o diretor de recursos humanos Rafael Jaworski está na Pormade, houve apenas dois casos de calote na caixinha – os funcionários acabaram demitidos.
O voto de confiança contribuiu para criar um clima de mais liberdade no dia a dia. Um exemplo: os funcionários não precisam de autorização para todas as decisões que tomam. “Quando a pessoa recebe confiança, começa a cuidar de outras coisas também, evitar desperdício e a deterioração de máquinas”, exemplifica Jaworski.
Ideia se espalhou
A ideia da cantina sem controle se espalhou por várias empresas da região de União da Vitória e chegou a pelo menos uma da Cidade Industrial de Curitiba. Uma funcionária da transportadora Cargolift participou de uma visita de benchmarking na Pormade, onde se encantou com a Cantina da Confiança. Na empresa dela, a ideia não só foi aceita, como ampliada.
O espaço vende não só cafés, doces e lanches, mas também material de papelaria e souvenires com a logomarca da empresa. Ou seja, há balas de R$ 2, mas também cadernetas de R$ 25 e até livros. Os cem funcionários da Cargolift podem comprar esses produtos e pagar num caixa aberto, onde eles mesmos fazem o troco, ou numa máquina de débito e crédito, sem controle.
O local ganhou projeto de decoração e investimento de R$ 50 mil, já que funciona também como espaço de divulgação da campanha “Corajosamente éticos”. “Foi um sucesso. Já estamos com o espaço aberto há quase 60 dias e não tivemos nenhum desvio de dinheiro”, comemora a supervisora de Marketing Renata Anile Santos.
O coordenador operacional da Cargolift, Vagner Barbosa da Silva, conta que se sente orgulhoso pelo voto de confiança. “Precisamos começar a acreditar em nós mesmos”, diz. “Infelizmente hoje é um diferencial não ter a cultura de explorar os outros”, lamenta o supervisor Fabio Nunes Moreira.
Outros exemplos de confiança europeus, como os self check-outs, ou caixas de supermercado em que o cliente passa os produtos e paga sozinho, até existem por aqui – mas com um supervisor do lado. É assim em dez lojas da rede de supermercados Muffato, que implantou o sistema por agilidade, não como um experimento de ética.
Honestidade se aprende?
Dar um voto de confiança na honestidade estimula as pessoas a agirem corretamente? No ambiente corporativo é tudo mais controlado, e dificilmente alguém estará passando por graves restrições – a carência é um fator apontado desde Aristóteles como complicador para a vida ética.
Para Natália, coordenadora do curso de Administração da UFPR, “você não se transforma em outra pessoa porque viu um bom exemplo – mas pode passar a ver as coisas de maneira diferente”. Autor do best-seller Justiça – O que é fazer a coisa certa, o filósofo Michael Sandel declarou à revista Exame quando veio ao Brasil no início deste ano que “empresários e executivos têm se dedicado a estabelecer regras claras e códigos de conduta para seus funcionários. Mais importante é cuidar da cultura da empresa. Muita gente ainda diz que o importante são os resultados, não o caráter dos funcionários. As companhias devem ser ponto de referência em ética nos contatos com outras instituições e também internamente. O local de trabalho é um espaço fundamental para que as pessoas sejam incentivadas a fazer a coisa certa”.
Mais cético, o juiz federal Anderson Furlan, que pesquisa o elemento patológico em meio à corrupção, ou seja, predisposições ao comportamento não ético, cita a necessidade da dobradinha “consenso e coerção”. “É preciso haver educação familiar e escolar sobre o tema, mas também exemplos de punição que desestimulem más práticas.”
O filósofo e professor da UFPR Vinicius de Figueiredo não vê um “déficit de honestidade” no Brasil. Ele acredita que “o maior desafio não é saber como tornar as pessoas honestas, mas gerar as condições para que possam negociar entre si seus interesses de modo mais seguro”. Para ele, a imprevisibilidade dos acordos e a ausência de garantia de direitos é que enfraquece a confiança e as relações no país.
Seria preciso uma reforma das consciências no Brasil?
Tem se falado muito que o Brasil está tomado pela corrupção. Será mesmo? Pense na quantidade de coisas que dependem da confiança mútua entre as pessoas numa sociedade complexa como a nossa, tais como o cumprimento de regras mínimas no trabalho por parte do empregado e do empregador, a realização de operações de crédito entre consumidores ou a simples execução de um orçamento nos serviços, etc. São coisas que fazemos diariamente no Brasil.
Elas só permanecem sendo feitas, porque existe, em algum grau, a crença de que os agentes envolvidos irão cumprir a parte que lhes cabe nas negociações que fazemos dia a dia. Outro exemplo é o trânsito. Circular nas cidades depende do fato de que indivíduos que não conhecemos irão comportar-se conforme certas regras, como parar no sinal vermelho, não conduzir na contramão, etc. Sem isso, deslocar-se seria impossível. É verdade que o Brasil exibe números muito ruins no trânsito. E não só no trânsito.
Para mudar, porém, precisamos não tanto de mais honestidade, mas, sobretudo, do respeito às regras que tornam possíveis nossos acordos e nossas práticas. Em um mundo no qual acordos são descumpridos a todo tempo, ninguém irá arriscar-se a negociar posições. Nem mesmo pessoas honestas. As iniciativas que fortalecem acordos são educação, respeito e a execução de sanções previstas para quem transgredi-los. Não é necessário fazer uma reforma das consciências, mas assegurar que as instituições funcionem bem.
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