Quando você sai do trem aqui e chega à praça ao lado da estação ferroviária, não vê os pináculos da Capela do King’s College ou as torres no topo da Trinity Great Court, pois a Universidade de Cambridge fica um pouco mais afastada — mas verá um edifício comercial com um pátio na cobertura. É aqui que a Amazon desenvolve seus drones.
Descendo o quarteirão, em um edifício próprio, a Microsoft está projetando algum tipo do chip de computador para a inteligência artificial. E se continuar andando, logo chegará a um terceiro prédio, com um logotipo azul da Apple, onde os engenheiros tentam ampliar os limites da Siri, assistente de fala digital incluído no iPhone.
Há anos jornalistas, urbanistas e outros funcionários do governo chamam o local de “Charco do Silício”, vendo a outrora sonolenta periferia de Cambridge como a resposta britânica ao Vale do Silício. O nome, que se refere à planície que rodeia a cidade, não pegou de fato, mas o conceito, sim, tanto que as grandes forças tecnológicas mundiais vieram para cá, contratando engenheiros e pesquisadores, especialmente no incipiente campo da inteligência artificial.
Sua chegada é uma incentivo bem-vindo para a economia britânica que, acredita-se, poderá se enfraquecer com a saída da União Europeia. A Apple, a Amazon e o Google estabeleceram centros de pesquisa e engenharia no Reino Unido através da aquisição de empresas surgidas das universidades locais, gastando milhões ou mesmo centenas de milhões de dólares.
Há mais de 4.500 empresas de alta tecnologia em Cambridge, empregando cerca de 75 mil pessoas, muitas delas morando em outras comunidades, de acordo com o grupo de negócios local Cambridge Network.
Em frente à sede da Amazon Cambridge, a ARM, empresa de chips de computadores de propriedade do SoftBank, gigante da tecnologia japonesa, recentemente instalou uma equipe de engenheiros em uma série de escritórios temporários. E um novo edifício está sendo construído nas proximidades, onde a Samsung, o conglomerado de tecnologia sul-coreano, em breve abrirá outro laboratório de inteligência artificial, contratando cerca de 150 pesquisadores, engenheiros e outros funcionários.
“Quem não vem para cá há 20 anos não reconhece mais o lugar de onde saiu”, afirmou Claire Ruskin, executiva-chefe da Cambridge Network, enquanto dirigia pela cidade em uma tarde recente.
Mas os edifícios ao lado da estação ferroviária são lembretes de que o Reino Unido — e a Europa em geral — não tem potência própria de internet, um poder corporativo capaz de levar o mundo para novas direções técnicas, culturais e políticas. A empresa de maior potencial era a ARM, adquirida pelo SoftBank em 2016.
Em Londres, a 45 minutos de trem de Cambridge, encontra-se o DeepMind, talvez o laboratório líder mundial de IA. Ele está na vanguarda de uma revolução tecnológica que muitos acreditam deve mudar as normas econômicas e sociais em todo o mundo, e foi adquirido pelo Google em 2014.
“Damos boas-vindas às grandes empresas, mas estamos determinados a garantir que a próxima geração seja construída aqui”, disse Matthew Hancock, o secretário de Estado britânico que supervisiona a política digital.
Legado britânico
Em uma manhã recente, Chris Bishop, responsável pela Microsoft Research Cambridge, olhou pela janela do quinto andar de seu escritório, com vista panorâmica da cidade, e apontou para os pináculos da Capela do King’s College surgindo por entre as árvores à distância. “Alan Turing era do King’s”, disse ele.
Em 1950, com seu ensaio “Computing Machinery and Intelligence” (Maquinário e Inteligência Computacional), Turing, o matemático, criptoanalista e pioneiro britânico da computação, questionou se as máquinas algum dia pensariam por conta própria. Bishop, pesquisador de IA que estudou em Oxford e lecionou na Universidade de Edimburgo antes de vir para Cambridge, vê seu trabalho como parte de um longo legado britânico.
Bishop veio para o laboratório em 1997, logo depois da inauguração. Naqueles dias, a Microsoft era a única gigante da tecnologia pagando altos salários para atrair os melhores acadêmicos para esse tipo de pesquisa corporativa. Agora que a IA ocupa o centro do palco nas principais empresas, acadêmicos ganhando muito bem é algo comum.
Muitos desses pesquisadores, como vários outros grandes pesquisadores de IA na Inglaterra, nasceram fora do país. Ainda assim, os políticos locais se preocupam com o talento local se mudando para empresas estrangeiras.
“Temos alguns dos principais pesquisadores de IA do mundo aqui no Reino Unido. Como podemos evitar a fuga de cérebros para os EUA – ou para empresas de lá?”, disse Dame Wendy Hall, professora de Ciência da Computação da Universidade de Southampton.
No ano passado, o governo britânico encomendou um relatório sobre a cena de IA do país, que seria feito por Hall e Jerome Pesenti, o CEO da BenevolentAI, startup de inteligência artificial com sede em Londres. Após algumas semanas da divulgação do relatório, Pesenti mudou-se para o Facebook. Ele é agora vice-presidente de inteligência artificial no escritório da empresa em Nova York.
“Esse é um bom exemplo da questão. Uma vez que você chama a atenção nesse mundo, atrai o interesse das grandes empresas, particularmente as do Vale do Silício”, disse Hall.
O relatório pedia um aumento do financiamento para as universidades, e nos meses seguintes o governo respondeu, dizendo que financiaria 200 novos doutorados em inteligência artificial e campos relacionados até 2020, e investiria um total de US$ 500 milhões em matemática e educação digital e técnica em todo o Reino Unido.
A fronteira entre academia e indústria
Em Cambridge, há grandes questões sobre a fronteira entre a academia e a indústria. Mesmo aqueles que prosperaram financeiramente com essa dinâmica não têm muita certeza desses limites.
Zoubin Ghahramani, professor de Cambridge que vendeu uma startup para o Uber e agora é o cientista chefe da empresa, mas mantém seus laços com a universidade, se preocupa com uma fuga de cérebros de IA da Europa. Ele pediu a criação de um instituto de pesquisa europeu para recrutar pessoas na região que, do contrário, poderiam acabar indo para uma empresa do Vale do Silício.
Seu colega em Cambridge, Steve Young, respeitado pesquisador de reconhecimento de fala que vendeu empresas para a Microsoft, o Google e a Apple, observou que era “quase impossível” para a universidade competir com as empresas de tecnologia pelos profissionais, limitando o número de pessoas que vão ensinar a próxima geração de alunos. “Isso pode ter consequências muito severas”, disse ele.
Seu comentário veio acompanhado de uma risada. Young divide o tempo entre a universidade e a Apple, onde uma parte importante de seu trabalho é o recrutamento para a empresa. “Eu não recruto de Cambridge”, brincou ele.
Ian Hogarth, pesquisador de aprendizado de máquina em Cambridge, fundou o aplicativo de música ao vivo Songkick e agora é um investidor-anjo no Reino Unido. Ele argumentou que se o DeepMind tivesse permanecido independente, poderia ter se tornado a primeira superpotência tecnológica do país.
Seguindo um caminho semelhante estão startups como a VocalIQ (adquirida pela Apple) e a Evi, a empresa que a Amazon comprou em 2013 como parte da tentativa de construir a assistente digital Alexa. A Evi foi o começo da operação da Amazon em Cambridge.
Muitos aplaudiram a enorme mudança econômica que essas aquisições trouxeram para Londres e Cambridge, mas nem todos pensam assim.
No ano passado, aqui na cidade, um novo projeto imobiliário foi vandalizado com um grafite escrito em latim: “Locus em domos loci populum”. Como informou a BBC, a tradução aproximada é “casas locais para pessoas locais”. Como os trabalhadores da tecnologia recebem grandes salários, o preço dos imóveis está subindo rapidamente, e os habitantes estão sendo forçados a sair. É mais um exemplo da semelhança entre o Vale e o Charco do Silício.