Os engenheiros do sexo masculino que trabalham com Lisa Gelobter ficaram surpresos quando descobriram que ela conhecia softwares como Schockwave e Flash. Ela já teve colegas que duvidarem se ela era capaz de participar de uma conversa sobre assuntos técnicos. Quando estava na faculdade de computação, Lisa — e a outra mulher da sua turma — sentiam que precisam provar o valor do seu trabalho muito mais do que os colegas homens.
Quando o movimento #MeToo explodiu, Gelobter, uma executiva de tecnologia com passagem pela BET (Black Entertainment Network) e pela Hulu, teve um clique. Ela queria aproveitar sua familiaridade com o preconceito — "quando você é uma mulher negra na tecnologia ou no entretenimento, é dia sim, dia não" — para criar uma startup, a tEQuitable, para ajudar empresas e empregados a lidar com questões de preconceito, discriminação, assédio e todas as situações desconfortáveis que nascem disso tudo.
"Nós queríamos ser como um ombudsman sigiloso digital", explicou Gelobter, 46, que também foi a chefe do departamento de serviços digitais no Ministério de Educação do governo Obama. "Nós queremos digitalizar o conselho humano".
A tEQitable integra uma onda de negócios emergentes das revelações generalizadas de assédio sexual nos locais de trabalho. As startups, muitas delas com mulheres fundadoras ou co-fundadoras, querem causar mudanças disruptivas para resolver problemas antigos (e muito custosos). Uma pesquisa do WSJ/NBC na última primavera mostrou que quase metade das mulheres já se sentirem assediadas no trabalho. E os custos financeiros disto para os empregadores são substanciais.
O alto custo do assédio
Um estudo da Comissão de Igualdade de Oportunidades no Trabalho dos EUA (EEOC), de 2016, mostra que os empregadores pagaram US$ 699 milhões a trabalhadores em processos de assédio, desde 2010. Além dos custos indiretos como baixa produtividade e alta rotatividade.
É verdade que estas startups entram em um mercado em que há tempos as empresas hesitam em gastar muito dinheiro para prevenir comportamentos errados. Muitas empresas grandes criaram linhas de telefone em que os empregados podem denunciar assédio de forma anônima para um terceiro independente. Por outro lado, as novas tecnologias podem criar dilemas para os gerentes de recursos humanos, que podem não ter as ferramentas para agir em relação às informações que recebem. "Cria um risco — é um território ainda desconhecido", diz Jonathan Segal, um advogado patronal da Filadélfia. "Você recebe a informação de que há um crime em potencial no local de trabalho, e não de que há um crime de fato acontecendo".
Abordagens diferentes
As novas startups têm diferentes abordagens: a AllVoices, como a tEQuitable, ajuda empregados a denunciarem assédio de forma anônima, mas têm uma plataforma pensada para diretorias e CEOs. Foi criada por uma ex-vice presidente da 20th Century Fox. A Bravely, que em novembro teve seus primeiros clientes, trabalha com os empregados para oferecer um "coach" de RH independente, uma terceira parte para quem eles podem ligar para solucionar conflitos ou problemas de comunicação que enfrentam no trabalho, num esforço para preencher a lacuna de confiança que existe entre os funcionários e os departamentos de RH.
A startup Botler AI usa inteligência artificial para cruzar milhares de reclamações e documentos legais sobre assédio sexual, que antecipa se experiência de uma pessoa pode representar uma violação da lei nos Estados Unidos ou no Canadá. BetterBrave, criada por duas engenheiras mulheres do Vale do Silício, oferece um passo a passo para pessoas que foram assediadas no trabalho. E a STOPit Solutions, que começou como um app de denúncias de bullying na escola, começou a vender em locais de trabalho.
"É graças ao aumento da informação", diz Neil Hooper, da STOPit. "As pessoas estão acordando para o fato de que você pode se antecipar a estas situações antes de receber uma reclamação".
Negócios contra o assédio: uma nova tendência
Kat Manalac, que é sócia da proeminente incubadora do Vale do Silício Y Combinator e investidora da tEQuitable, disse por email que vê o crescimento destes negócios como uma tendência. Segundo ela, isto começou no ano passado, depois que Susan Fowler, uma antiga engenheira da Uber, publicou um artigo detalhando o sexismo e assédio que ocorriam na empresa. A coisa tomou corpo com a cobertura da mídia sobre investidores de startups que assediam mulheres fundadoras.
(Há uma conexão entre as duas histórias: a investidora de startups do Vale do Silício e defensora da diversidade Freada Kapor Klein é uma investidora tanto na tEQuitable como no Uber. E já foi consultora para diversidade na companhia de carros compartilhados.)
"Está bem claro que o assédio sexual e o tratamento desigual é um problema que atinge todas as indústrias", diz ela. "Fundadores, CEOs e departamentos de recursos humanos estão procurando soluções, e há uma oportunidade gigantesca aqui para empreendedores que são apaixonados por resolver problemas".
A tendência atual segue uma outra, de startups focadas em resolver problemas de preconceito e diversidade de gênero. A Boardlist, uma plataforma de tecnologia criada para colocar mais mulheres nos conselhos das diretorias, foi lançada no início de 2016. A Textio analisa dados de contratação para ajudar as companhias a criarem anúncios de emprego mais efetivos. Entre outras coisas, ajuda as empresas a fugir de preconceitos ao eliminar frases como "ninja da programação", ou "um ambiente de trabalho com ritmo acelerado", que se mostraram mais atrativas para homens brancos. A startup Blendoor oferece perfis de candidatos sem nomes ou fotos para os empregadores, para preveni-los de agir com um preconceito inconsciente.
Empreendedores sentem um clima de oportunidade
"Depois que o caso Harvey Weinstein veio à tona, e pensei 'uau', isso é um problema muito maior do que eu poderia imaginar", conta Ritika Dutt, uma das co-fundadoras da Botler AI, originalmente criada para ajudar seu co-fundador, Amir Moravej, a filtrar casos legais e informações relacionadas à questão da imigração. Dutt diz que a onda de denúncias fez com que eles passassem a focar em casos de assédio. A ferramenta para usuários atualmente é anônima e gratuita, mas Dutt e Moravej devem criar uma versão paga para clientes corporativos, no futuro.
O tEQuitable, de Gelobter, funciona como uma terceira parte para quem um empregado pode fazer uma reclamação confidencial e receber dicas de como lidar com a situação. Funciona em site e aplicativo. A plataforma reúne dados para mensurar a performance e o progresso da empresa — e revelar padrões sistêmicos. E então compartilha os dados e oferece recomendações de como melhorar a cultura no local de trabalho.
"Nós já ouvimos casos de assédio sexual", contou Gelobter, em entrevista. "Mas começa muito antes, com as microagresões do dia a dia. Se nós pudermos detectar as coisas no começo, podemos reduzir o número de pessoas que precisam ir nas redes sociais escrever uma carta sobre suas experiências".
Uma análise recente de dados, feita pelo Pew Research Center, identificou que mulheres lidam com estas situações desagradáveis, em média, três vezes mais do que os homens, no trabalho. Um total de 16% das mulheres — e 29% entre as que têm cargos mais altos — relata ter passado por assédios variados, ainda que menos graves, no trabalho, frente a somente 5% dos homens. E 33% das mulheres sentem que são tratadas como se fossem incompetentes, em comparação com somente 6% dos homens.
Medo de retaliação
Claire Schmidt, a fundadora da AllVoices, diz que começou a plataforma, que será lançada no primeiro quarto de 2018, depois de conversar com pessoas que "tinham passado por experiências de assédio, mas não se sentiam à vontade para denunciar no trabalho, no RH, para os chefes".
"Elas ficavam com medo de retaliação. Como seriam vistas. E até de que poderiam perder o emprego", conta. É um conceito já antigo: o mesmo relatório da EEOC cita um estudo de 2003 que descobriu que 75% dos empregados que denunciaram condutas erradas no local de trabalho tinham medo de sofrer retaliação.
A AllVoices tem um questionário estruturado que ajuda os empregados a reconhecerem casos de assédio e denunciarem anonimamente. Ele agrega as informações e repassa diretamente ao CEO e ao conselho para ajudá-los a identificar falhas na cultura da empresa.
O uso do aplicativo Blind, em que colegas de trabalho podem conversar de forma anônima, disparou depois que Fowler, da Uber, tornou suas críticas públicas. Antes de fevereiro, o uso médio do aplicativo mal chegava a 20 minutos por dia, segundo a chefe de operações Alex Shin. Desde então passou para 40 minutos por dia.
Ainda focado na indústria da tecnologia, o app pretende expandir para outros setores, em 2018, como startups e empresas de finanças. E está estudando formas de trabalhar com as equipes de RH para repassar as opiniões dos trabalhadores. Tudo de forma muito cautelosa, para não violar a segurança nem a privacidade dos usuários.
A ideia inicial era ser um "Glassdoor melhorado", conta Shin, em referência ao site que publica opiniões dos empregados sobre as empresas, no Brasil representado pela Lovemondays. "Nós não imaginávamos que as equipes de RH iam se interessar, depois que nós tivéssemos tanto empregados dentro do app".
Desafios para os novos aplicativos
Estes novos aplicativos também têm seus problemas. Os executivos podem ficar meio receosos de implantar estes programas e deixar uma mensagem implícita de que o RH precisa ficar de fora do diálogo, ou de que o RH não é confiável. O co-fundador da Bravely, Toby Hervey, que criou a empresa com Sarah Sheehan e Ras Patel, reconhece que pode haver uma "tensão". Mas sua esperança é de que os cursos financeiros e de reputação altos que podem ser gerados de um problema de assédio façam os empregadores se preocuparem e acelerarem o processo.
Outro problema dos aplicativos de denúncias anônimas é a autenticidade. E se trabalhadores descontentes podem usar os programas para atingir outros empregados ou gerentes. Um representante da AllVoices diz que a plataforma ainda está testando a melhor forma de fazer login, mas que a plataforma atualmente não exige nomes e que não há muito espaço para que as reclamações se tornem humilhações públicas do empregado. O que desincentivaria as pessoas a fazerem reclamações falsas.
Alguns especialistas temem que as ferramentas de denúncia ou conversas anônimas podem criar outros desafios.
Segal, que é advogado de empresas, acredita, desde que os empregados tenham outros canais de denúncia e um plano de comunicação forte, estas ferramentas podem ajudar, mas "os empregados precisam pensar antes de agir".
As empresas, diz ele, "podem se ver em um dilema de perceber que há problemas — cujas especificidades elas desconhecem — e não ter habilidade para lidar com isso".
Tradução: Naiady Piva