O surgimento e popularização de plataformas de streaming e VOD (video on demand, ou “vídeo sob demanda”, em tradução livre), como Netflix, HBO Go e Amazon Prime, parecia ter dado o golpe fatal no mercado de mídia física, de DVD e Blu-Ray. No entanto, cabe uma experiência: busque em um aplicativo para celular voltado ao consumo de audiovisuais o termo “Charlie Chaplin”. Um dos nomes mais reconhecíveis da história do cinema e sequer um título aparece.
Se aparecer alguma ocorrência, provavelmente serão os filmes mais populares de Chaplin, como Tempos Modernos, O Garoto ou Luzes da Cidade. Quem tiver interesse em outras obras, como os curtas-metragens realizados no começo da carreira, no drama social Casamento ou Luxo ou ainda na comédia romântica A Condessa de Hong Kong terá bastante dificuldade de encontra-los. Vale também para os filmes de John Ford, Alfred Hitchcock, Andrei Tarkovski ou Vittorio de Sicca, alguns dos mais importantes nomes da história do cinema.
Isso para nem falar de diretores mais exóticos, como os cineastas Yasujiro Ozu e Kenji Mizogushi, ou chineses como King Hu ou Hou Hsiao-hsien. Nem mesmo o download ilegal seria uma alternativa viável para o aficionado, com seus links quebrados, baixa qualidade de imagem e legendas pouco confiáveis. A única solução, hoje, é buscar por um DVD. Por mais anacrônico que pareça.
“Uma coisa que é importante destacar é que ao mesmo tempo que o streaming deixou terra arrasada para as locadoras e afetou o faturamento das majors com os blockbusters, ele deixou uma janela aberta ao colecionismo. É uma demanda reprimida, na verdade”, conta Fernando Brito, curador da Versátil Home Vídeo, distribuidora que hoje é especializada em lançamento de clássicos inéditos no Brasil ou em relançamentos de títulos esquecidos pelos grandes estúdios.
Sua aposta, que até então vem sendo recompensada, é de que há toda uma geração de cinéfilos, a que cresceu com o hábito de frequentar locadoras, que “não se vê representada, acolhida, no mercado de streaming ou VOD”.
Frederico Machado, da Lume Filmes, concorda: “As pessoas que assistem essas plataformas procuram por produtos badalados na maioria das vezes. Filmes que têm hype, que têm um marketing forte”. A distribuidora, especializada em “filmes potentes, que expressam um cinema extremamente forte em obras, muitas delas esquecidas e marginalizadas”, é vista pelo empresário como parte de uma missão civilizatória.
“É no diferencial é que há possibilidade de termos uma sociedade justa e equilibrada. Daí a importância de termos filmes diferentes. De termos pensamentos diferentes. E que haja diálogo. O cinema de arte possibilita um aprimoramento do pensamento. Acredito muito no papel da arte para isso”, reflete.
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Não que seja tudo um mar de rosas. As distribuidoras precisam trabalhar muito no valor agregado do produto final, caprichando principalmente na seleção de títulos. “Temos um perfil de distribuir filmes de qualidade, com qualidade. Por isso continuamos. Atingimos um respeito raro nos dias de hoje, respeito tão difícil hoje em qualquer área. Isso sem desvirtuar o que sempre quisemos. Distribuir filmes de arte desconhecidos e descobrir os filmes. Acho que esse é o principal papel de uma distribuidora”, conta Machado.
Brito, além da seleção caprichada, aposta no que chama de aparato crítico: “Cada coleção temática é uma pequena mostra em casa. Você tem acesso a uma mostra de cineclube na sua casa com conteúdo diferenciado. A gente oferece um serviço a mais. Eu faço a curadoria então eu pesquiso cada gênero, cada diretor, para oferecer um recorte”.
Guerra dos formatos ainda não matou o DVD
O DVD se estabeleceu no Brasil na segunda metade dos anos 1990 pelo salto qualitativo em relação ao VHS. O mesmo não aconteceu com o Blu-Ray. “Muitos clientes nossos não têm aparelho de Blu-Ray, apesar de serem cinéfilos, colecionadores. Não houve uma progressão geométrica do Blu-Ray como houve do DVD. O que ocasiona a situação do Brasil. O mercado de home vídeo sobrevive como nicho e quase exclusivamente com o DVD”, conta Brito. Para o curador, o público não viu uma diferença tão grande no som e na imagem que justificasse os preços altos da nova mídia, que chega a custar três vezes mais do que um título semelhante no formato anterior.
A isso se junta a faixa específica do público brasileiro que se interessa em comprar os títulos lançados por empresas que apostam no mesmo segmento, como as já citadas Versátil e Lume, mas também como a Obras Primas do Cinema ou a ClassicLine, entre outras dedicadas a lançamentos de clássicos ou de filmes de arte.
São geralmente pessoas de mais de 30 anos, com certo poder aquisitivo e adesistas da cinefilia, que não apenas cresceram com as locadoras, como também acompanharam sua transição do VHS para o DVD ao longo da segunda metade dos anos 90 como uma forte explosão de acesso a títulos.
“Muitos filmes básicos da história do cinema nunca tinham sido lançados em VHS no Brasil, com quase 20 anos de mercado. Em 1995, quando DVDs começam a ser lançados, começa um fenômeno que chamamos de Cinemateca em Casa, que vem acontecendo até hoje. Falo pela Versátil, mas há outras distribuidoras, como a Lume e a Obras Primas do Cinema. A gente vem preenchendo lacunas mensalmente de importantes cinematografias e diretores”, diz Brito, que calcula que nem mesmo 5% deste acervo se encontra disponível em plataformas de streaming ou VOD.
Ele completa: “essa geração que frequentou locadora e que tem apego à mídia física, que tem a cinefilia como valor, não vai renegar tudo o que lhe é caro de repente para poder se atirar ao VOD. Ela vai consumir, como eu consumo séries, mas há toda uma área que não é contemplada”.
Este é, claro, um momento de acomodação. Dois dos filmes do ciclo de premiação do último ano, exemplifica Brito, não foram lançados em mídia física: Até o Último Homem, filme de guerra dirigido por Mel Gibson, e, mais surpreendente ainda, Moonlight – Sob a Luz do Luar, de Barry Jenkins, o grande vencedor do Oscar 2017. Eles estão disponíveis na Netflix, mas só enquanto durar o contrato. Se não houver interesse posterior, simplesmente não haverá forma legal de se encontrar estes filmes no Brasil.
Ops. Streaming de clássicos está ganhando espaço
Brito e Machado concordam que o mercado de nicho é eminentemente geracional. Os mais jovens não apenas não se interessam muito pelo passado do cinema mundial, como têm pouco apreço pela dimensão física. Ou pelo menos não encontram no DVD uma diferença de qualidade significativa em relação ao streaming, como acontece com os discos em vinil na música.
Há quem aposte contra esta tendência, porém, como conta Manoel Ramalho, gerente comercial do Oldflix, serviço de streaming dedicado a clássicos do cinema. A plataforma surgiu por acaso. “Na TV União tinha uma sessão de clássicos. E muita gente pedia para colocar na internet. E começamos a ver que tinha essa necessidade. Aí fizemos uma ampliação no contrato do fornecedor de conteúdo para colocar na internet”, diz.
Um blogueiro reparou que estes filmes estavam no acervo e publicou uma nota. Foi o suficiente para a notícia se espalhar, levando ao colapso do sistema graças ao número expressivo de acessos. A equipe, toda baseada em Natal (RN), reformulou o site, que já conta com aplicativo para celulares, agora acompanha o crescimento gradual dos acessos.
Ramalho pensa que o Oldflix é parte de um caminho natural para a segmentação, apontando como diferença principal em relação aos concorrentes do streaming a perenidade do acervo: “como trabalho com clássico, que é sempre clássico, o meu caso é ter muito título toda vida. Por exemplo, um título de 1930 vai ser sempre um clássico. Minha plataforma é mais fixa, ou seja, a gente pretende colocar lá uns 4 ou 5 mil clássicos e deixar lá. A proposta é o antigo estar lá”.