Londres, uma cidade fundada pelos romanos, reinventada por comerciantes holandeses e enriquecida por banqueiros franceses e judeus, está diante de um teste potencialmente perigoso: será que a sua capacidade de atrair talentos e riqueza internacionais sobreviverá a um Brexit “completo”?
A cidade de quase 9 milhões de habitantes é “a capital do poder brando do mundo”, tendo criado 235 mil empregos de alta qualificação só entre 2014 e 2015, segundo um estudo da firma de contabilidade global Deloitte, feito pouco antes do referendo sobre a situação da Grã Bretanha como membro da União Europeia. Ela atrai executivos de uma vasta gama de países, mais do que qualquer outra cidade. Até mesmo Nova York fica num segundo lugar distante.
A preocupação é que um divórcio completo da Grã Bretanha em relação à União Europeia e seu mercado único poderia fazer a metrópole globalizada engatar a marcha à ré – rumo a um passado recente no qual ela foi a capital despovoada de um império perdido, mais conhecida pelo punk rock, pelas revoltas raciais e por uma infraestrutura arruinada.
Essa preocupação paira não só nas mentes de banqueiros, mas também de todos que tiveram um papel na revitalização da cidade, desde reitores universitários até empreendedores de tecnologia e os chefs de cozinha de restaurantes do guia Michelin.
“Não há dúvida de que a grandeza de Londres foi construída historicamente pela imigração”, disse Jerry White, historiador e autor de vários livros sobre Londres. Ele descreveu o que parece ser a marcha do governo rumo ao Brexit à qualquer custo como uma “bizarrice”.
Os proponentes do Brexit dizem que a separação da UE libertaria Londres para que a cidade se tornasse um centro verdadeiramente global e não apenas europeu. E, dizem eles, a imigração é precisamente aquilo que os eleitores queriam controlar quando votaram para sair da UE em 23 de junho, visto que é por causa dela que os preços das propriedades no centro de Londres vêm subindo, a ponto de chegarem a valores tão altos que os londrinos nativos estão sendo obrigados a ir embora.
A maioria das pessoas que tiveram algum investimento no sucesso recente da cidade, porém, diz que ela sofreria seriamente se o governo – como vem indicando parte da recente retórica anti-imigração – interpretasse o resultado do referendo como um voto a favor da insularidade. Londres prosperou justo por ser mais convidativa para estrangeiros do que as cidades rivais.
A Londres moderna tomou forma entre os séculos 17 e 18, nas mãos de huguenotes protestantes refugiados da França, comerciantes holandeses que chegaram à Grã Bretanha junto com Guilherme de Orange, e depois judeus em fuga das zonas de assentamento do continente, segundo White, o historiador. O primeiro presidente do Bank of England, John Houblon, era neto de um refugiado huguenote. O atual é canadense.
Paraíso de startups
Mais recentemente, a atratividade de Londres para estrangeiros também tem sido crucial em trazer mais startups digitais à cidade do que qualquer outra na Europa. A Inglaterra, Londres, em especial, “no momento tem todas as vantagens” para tentar atrair investimentos e negócios em tecnologia, disse James Wise, parceiro da Balderton, uma firma de capital de risco que conta com fundos de US$ 2,3 milhões. Segundo ele, pouco menos da metade dos fundadores de startups inglesas arrecadaram seus fundos em 2015 a partir de dinheiro estrangeiro, como descobriu um estudo ainda inédito da Balderton.
“Por causa do modo como funciona o software, o recurso natural são recursos humanos, não algo tipo petróleo, que sai do chão”, disse Wise. “E, se existe um jeito de ameaçar esse recurso natural, é fazendo as coisas que o Brexit completo propõe”.
A mera perspectiva do Brexit já abalou uma das vantagens de que Londres desfrutava em atrair equipes qualificadas – os salários antes eram 27% mais altos do que em Berlim e 18% acima dos de Paris, segundo Wise. Essa diferença salarial sofreu um duro golpe com a desvalorização da libra neste ano.
Há também a corrosão da confiança, dada a retórica política que vem dominando desde o Brexit. A ministra do Interior Amber Rudd propôs que as companhias deveriam ser obrigadas a publicar listas com os estrangeiros que elas contratam. A ideia viria depois a ser abandonada pelo governo, após protestos.
Para os europeus nas indústrias criativas de Londres que têm outras opções, as exigências de um visto de trabalho – que porá fim ao direito de ingleses e cidadãos da UE de trabalharem nos países um do outro – e a imagem de hostilidade já seriam suficientemente desencorajadoras.
“Para ser honesto, eu vim para a Inglaterra, porque era mais fácil para mim”, disse Claude Bosi, um dos chefes franceses que vieram para Londres nas últimas décadas, desencadeando uma proliferação de restaurantes do guia Michelin. Havia 66 em Londres este ano, mais do que quatro vezes o número de 1985. “Se eu tivesse que solicitar um visto à época, é provável que eu tivesse ido para os Estados Unidos”.
Ensino superior
O medo de que o processo do Brexit poderia afastar talentos estrangeiros também está causando perturbações no ensino superior. O cenário universitário de Londres é o maior de todas as cidades no mundo, também ao mesmo tempo beneficiário e motor do sucesso da cidade desde a década de 1980.
“O internacionalismo é uma parte profundamente arraigada da natureza dessa instituição, e a Europa tem uma parte imensa nisso”, disse Michael Arthur, reitor da University Colledge London, que atribui a ascensão da universidade até a sétima posição nos rankings das ligas acadêmicas globais à política de fronteiras abertas e às redes de pesquisa transnacionais.
Arthur passou muito do seu tempo desde o referendo tentando garantir à sua equipe de pesquisa acadêmica, 20% dos quais são de outros países da UE e estão bastante preocupados, de que seus empregos, suas bolsas e seu acesso às redes acadêmicas altamente desenvolvidas da UE estão seguras. Só em termos financeiros, os cidadãos estrangeiros, que constituem 42% do corpo discente da universidade, equivalem a 200 milhões de libras (US$ 245 milhões) em renda anual, segundo Arthur.
“Jeremy Bentham”, diz Arthur, se referindo ao filósofo inglês do século 19 cujo corpo mumificado se encontra do lado de fora do seu escritório, “foi quem cunhou a palavra ‘internacional’”.
Segundo Ben Rogers, diretor de um “think tank” chamado Centre for London, quando a economia global começou a pender para os serviços móveis, na década de 1980, a rede universitária da cidade também foi um dos fatores que fizeram com que Londres estivesse bem posicionada para se beneficiar dessa nova tendência. Foi nessa época também que outro acadêmico, Joseph Nye, de Harvard, cunhou o conceito de “poder brando” para descrever a capacidade dos países de “cooptar as pessoas, em vez de coagi-las”.
Centro financeiro
Outros ingredientes londrinos incluem o chamado pacote “Big Bang” de desregulamentações para a indústria financeira proposto pela ex-primeira-ministra Margaret Thatcher em 1986, que abriu a cidade de Londres aos bancos dos EUA e do mundo. O outrora adormecido distrito financeiro de Londres agora é lar de mais de 250 bancos estrangeiros.
O National Lottery Fund, lançado em 1994, havia injetado em Londres mais de 6 bilhões de libras em lucro com loterias, revitalizando as galerias e museus da cidade e ajudando a atrair indústrias criativas.
A inauguração da ferrovia Eurostar que ligou Londres a Paris e a Bruxelas também teve um papel nisso e foi acompanhada pelo crescimento de linhas aéreas de baixo custo que a conectaram até mesmo cidades pequenas da Europa. Por volta de 1996, a revista Newsweek já podia declarar que “Londres domina”. Um ano depois, a Vanity Fair diria que a “Swinging London” dos anos 60 estava de volta.
O outro lado do sucesso
Não surpreende muito, então, que a maioria dos londrinos – 60% contra 40% – tenha votado a favor de permanecer na UE no referendo do Brexit. Que essa diferença não tenha sido maior mostra como a história do sucesso estrondoso de Londres pode por vezes ignorar os lados negativos e as pessoas que saíram perdendo nela. E algumas das maiores vantagens da cidade – o idioma, o fuso horário e a aptidão do setor terciário causada pela desindustrialização precoce – não seriam afetadas pelo Brexit, não importa o quanto a separação seja definitiva.
A recuperação populacional dos 2 milhões de habitantes que Londres perdeu entre 1939 e 1981 se deu quase que inteiramente graças à imigração, um fato muitas vezes ignorado, como comenta Ian Gordon, professor emérito de geografia humana da London School of Economics. Mesmo o aumento extraordinário na proporção de londrinos nascidos no estrangeiro – de menos de 5% em 1961 para 37% hoje – subestima a mudança e o deslocamento envolvidos, porque o crescimento na taxa de natalidade se deu principalmente entre imigrantes, segundo ele.
A maioria dos ingleses que votou a favor do Brexit, diz Gordon, também o fizeram em protesto a Londres – não como um lugar, mas em relação a tudo que ela representa. A população nativa e sem ensino superior de Londres foi deixada para trás, incapaz de competir pelos empregos com bons salários ou pelos imóveis numa cidade que parece dominada por pessoas de fora.