Luciano Floridi. professor de filosofia e ética da informação na Universidade de Oxford.| Foto: Arthur Bullard/Divulgação.
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A pandemia é um tapa na cara, o divisor de águas entre dois séculos e a alvorada da sociedade "on-life", uma mistura de on-line e off-line. É a análise do italiano Luciano Floridi, professor de Filosofia e Ética da Informação na Universidade de Oxford, no Reino Unido, onde dirige o Digital Ethics Lab.

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Conhecido internacionalmente pelo trabalho pioneiro no campo da filosofia da informação, Floridi acaba de lançar o livro "Il Verde e il Blu" (O Verde e o Azul, sem tradução no Brasil). As duas cores identificam o ambiente em que vivemos, não apenas o meio ambiente, e a tecnologia. O subtítulo da obra é: "Ideias ingênuas para melhorar a política".

A partir do choque pandêmico, Floridi analisa como a sociedade está mudando e aponta os riscos éticos do uso maciço da tecnologia. Confira trechos da entrevista.

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Graças à tecnologia economizamos tempo e dinheiro. Basta um clique para receber as compras do mercado em casa ou para pedir Uber. Com a saúde será o mesmo?

Certamente. Entre os setores importantes que o digital está favorecendo, multiplicando suas vantagens, o da saúde é fundamental. Se eu tivesse que investir dinheiro hoje, investiria na indústria da saúde que aumenta o nosso tempo e o melhora. Ou na indústria do entretenimento, que nos faz passar bem o tempo livre, que é aumentado e melhorado pela saúde, ou na automação que cria tempo livre.

O setor da saúde e do bem-estar cresce enormemente por causa da população mais idosa e que pode gastar um pouco mais em tantas regiões do mundo. A Apple hoje se descreve como uma empresa primeiramente focada na saúde.

O CEO da Apple, Tim Cook, afirmou que nos próximos anos a principal fonte de receita da empresa virá dos serviços na saúde.

A Apple tem um grande perfil do ponto de vista do hardware, desde o iPhone ao Watch, que são ferramentas para a coleta de dados, monitoramento do batimento cardíaco, quantos passos faço, se durmo bem. Em alguns anos a Apple será cada vez mais focada em dedicar recursos e estratégias à saúde.

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Ela se junta a muitas outras empresas, como Microsoft, Google e Amazon, que tenta entrar no comércio online de produtos farmacêuticos. Sem dúvida, essa é uma das fronteiras da competição entre as empresas digitais.

Ninguém duvida da utilidade da tecnologia aplicada à saúde. Mas quais são os riscos quando as big techs entram nesse setor?

Alguns riscos são clássicos e os conhecemos bem, por exemplo, a privacidade. Para cuidar de alguém, você tem que conhecê-lo. Melhor você conhece o paciente, melhor a cura. Então, uma das grandes dificuldades é a gestão dos dados pessoais.

Outro risco mais recente é a autonomia do indivíduo. Imaginamos smartphone ou smartwatch que sugerem quanto devo dormir. Eu vou dormir quanto me sugere um sistema de inteligência artificial? A capacidade "autodecisional" se torna um desafio. Será preciso mais conhecimento, mais inteligência humana e capacidade de usar essas ferramentas para o bem e não para o mal.

Hoje todos os apps de bem-estar não são regulamentados e não fazem parte da tecnologia médica. São considerados como um band aid, inócuos. Mas apps que gerenciam a dieta podem ser muito danosos.

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O terceiro aspecto é esse: se preciso fazer o "training" de um aplicativo sobre dados pessoais e a legislação do meu país não o permite, é possível que eu exporte o meu app em outro país, com uma legislação mais flexível.

Isso já ocorre ou é um risco futuro?

Já acontece. Para criar seus produtos, empresas digitais vão para países onde os dados estão disponíveis. É a racionalidade do mercado.

Isso significa que o "digital divide" (distância digital) entre países ricos e pobres vai aumentar? 

Essa sobreposição entre países ricos e pobres é um clássico, mas é um erro. Na verdade é uma questão de estratificação social. As pessoas ricas de Rio de Janeiro vivem tão bem quanto as de Londres, onde também há pessoas que vivem mal como em São Paulo, por exemplo.

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Quais faixas da população mundial vão gozar dessas tecnologias e quais faixas serão excluídas? O digital divide é entre quem tem e pode, e quem não tem e não pode. É uma questão sociológica e não geográfica.

Todas as grandes companhias de tecnologia foram multadas na Europa e estão sob forte escrutínio das autoridades dos Estados Unidos. Podemos confiar nelas?

O que podemos fazer é convidá-las a agir melhor porque não estão se comportando bem. Se esse convite não tiver sucesso, e não está acontecendo, algumas forças podem fazer a diferença.

A opinião pública, por exemplo. Os consumidores podem deixar de comprar um determinado produto. A competição, que deveria ser mudada, é outra questão gravíssima: os mecanismos do mercado são do século passado.

Enfim a legislação, ou seja, estabelecer padrões abaixo dos quais não é possível descer. As grandes indústrias, como a farmacêutica, petrolífera, automotiva, aeronáutica e da energia, são todas seriamente vinculadas pela legislação.

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Gostaria que as empresas digitais também tivessem o mesmo quadro legislativo. Nos Estados Unidos isso já está começando, porque as grandes empresas têm irritado o poder e o poder tende a se vingar, mas acho que vai acontecer primeiro na Europa.

A pandemia criou um choque na sociedade e impulsionou o uso da tecnologia. Como será a sociedade pós-Covid?

O século 20 não começou no ano de 1901, mas com a primeira Guerra Mundial, o fim dos impérios, as transformações políticas, os milhões de mortos. E não terminou em 1999, mas acabou ontem.

As sementes do novo século já existem há 20 anos, mas a pandemia nos fez entender algumas coisas fundamentais que já sabíamos, mas é só agora que levamos um tapa na cara. Ou seja, temos problemas globais que só podemos resolver todos juntos, como o ambiental. O planeta Terra é um barco e, se afunda, afundamos todos.

A pandemia como divisor de águas?

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Sim, o homem digital nasceu muito tempo atrás, mas está aprendendo a caminhar só agora. O nosso século é o do digital. Os próximos também serão digitais, mas não serão caracterizados pela chegada do digital.

Hoje a combinação de digital e analógico, de on-line e off-line, é o que eu chamo de on-life, em que as duas coisas se misturam. A pandemia nos fez entender que vivemos on-life.

O senhor defende uma maior governança da inovação. A política está atrasada?

A política está atrasada e vai continuar atrasada até quando for feita por políticos que olham apenas para a emergência, sem visão de longo prazo. A política não é ter o pé no acelerador, mas as mãos no volante. A política deve nos dizer onde queremos chegar, não o quão rapidamente. A velocidade cabe ao empreendedorismo, à produção, à indústria, à sociedade civil.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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