O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) adiou para março o anúncio do fracasso da meta de déficit zero em 2024, mas está distante de demonstrar disposição para ajustar as contas ou aprender com os erros do passado.
A resistência pode ser observada não apenas pela falta de austeridade fiscal e a intenção declarada de Lula de não contingenciar gastos em ano de eleições municipais, mas também pela insistência em políticas populistas e insustentáveis.
Na fila de tais iniciativas estão desde a retomada do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), políticas protecionistas aos estaleiros nacionais e do fim do desinvestimento em refinarias, além de medidas pontuais como o reajuste de salário mínimo acima da inflação.
"A profunda crise econômica que vivemos traduz o esgotamento de um modelo errado que combinou uma dinâmica de deterioração das contas do governo com projetos de investimentos públicos mal formulados", diz o economista Samuel Pessôa, do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da Fundação Getulio Vargas.
Para ele, a decisão do presidente Lula de começar o governo com o "pé no acelerador dos gastos", com a PEC da Transição, traduziu a conhecida concepção do gasto público como motor do crescimento.
"É uma visão ideológica, natural num governo de esquerda. Eles acham que a Coreia [do Sul] é rica porque tem um banco de investimento centralizando tudo e promovendo a riqueza. Esquecem os níveis de educação, de produtividade e de poupança interna de uma população inteira", afirma Pessôa.
Um dos maiores problemas, acredita o economista, é a falta de aprendizado com os erros cometidos.
"Ao longo de 2006 a 2014, o governo petista foi ampliando a crise fiscal, com piora do déficit primário a cada ano, especialmente no governo Dilma. A balança comercial piorava e a inflação subia paulatinamente, os salários cresciam acima da produtividade do trabalho e a rentabilidade das empresas caía, numa trajetória desequilibrada e de pilares insustentáveis. Essa crise fiscal profunda que ainda vivemos foram eles [o PT] que criaram", afirma Pessôa.
PT nunca fez autocrítica, mas não consegue reabilitar Dilma
Embora o Partido dos Trabalhadores nunca tenha feito autocrítica do período, o governo atual tem tido dificuldade na defesa do legado da ex-presidente Dilma e na sua reabilitação. Já na apresentação do arcabouço fiscal, em março, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT) omitiu dados das contas públicas do governo Dilma.
A curva de receitas e despesas trouxe apenas dados de 1997 a 2010, escondendo o rombo histórico nos governos petistas seguintes. No detalhamento da nova regra, que substituiu o teto de gastos, o ministro se limitou a dizer que "os últimos dez anos foram muito difíceis para este país".
No entendimento de Pessôa, embora Haddad tente demonstrar aos agentes econômicos alguma preocupação com o equilíbrio das contas, o partido nunca aceitou a crise existente como fruto dos equívocos da política econômica nos seus mandatos.
"Para o PT, a origem do desajuste foi a crise política precedente, 'culpa' do PSDB, que não aceitou o resultado das eleições em 2014 e enfraqueceu a governabilidade de Dilma. Também citam o cenário externo ruim, com o fim do ciclo de commodities. No máximo, admitem uns errinhos em desonerações. No fundo, acham que tiveram azar", diz Pessôa.
Repetição dos erros e perda de oportunidades marcam o governo
Para a economista e advogada Elena Landau, não é novidade o petismo atribuir a culpa dos seus erros aos outros. "No passado, o partido conseguiu emplacar a versão da herança maldita... Fui contra o afastamento de Dilma exatamente por isso. Seu governo deveria ter ido até o fim para ficar clara a sua responsabilidade pela década perdida", escreveu em artigo no jornal "O Estado de S. Paulo".
O atual governo, afirmou Landau à Gazeta do Povo, repete o erro de "gastar na frente" antes de garantir receita, como ilustra o movimento incansável de Haddad para aprovar medidas que aumentem a arrecadação dos cofres públicos. "É um erro brutal que compromete o resultado. A base deles é a filosofia de que despesa gera receita. Dá muito errado", afirma.
A economista e consulta Zeina Latif acredita que o maior problema da repetição dos erros é a perda de oportunidades. "Temos o mau hábito de não aproveitar os períodos melhores, quando o cenário interno ou externo é mais favorável, para dar andamento às reformas necessárias", diz.
Segundo ela, o relaxamento fiscal acaba estimulando medidas populistas, que, por sua vez, agravam o déficit fiscal e culminam em nova crise.
Como exemplo, Zeina cita a aprovação da política de salário mínimo acima da inflação. "Não há razão que justifique o aumento sem melhora da produtividade. Nosso salário mínimo não está defasado. E é o indexador de uma série de benefícios que terão impacto fiscal lá na frente", explica.
Políticas industriais ultrapassadas e subsídios permanecem em pauta
Para além da deterioração fiscal, as políticas do atual governo, como no passado, continuam centradas no financiamento público, seja por meio do Tesouro, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) ou de empresas estatais.
"Foi o caso dos investimentos diretos em infraestrutura, dos subsídios do Tesouro para programas como o Minha Casa Minha Vida ou crédito estudantil como o Fies", lembra Pessôa. "Estes programas maturaram mal, não geraram a contrapartida esperada, o que foi realimentando a crise fiscal."
Muitos desses "penduricalhos do passado" estão sendo retomados. Um dos mais emblemáticos, segundo Zeina Latif, é o Programa de Aceleração do Investimento (PAC), relançado em agosto.
"Ainda que preveja a participação da iniciativa privada, por meio de parcerias, o anúncio do programa repete aquela coisa do 'Brasil grande', do Estado indutor, com cifras volumosas a serem celebradas", afirma.
As edições anteriores do programa petista ficaram marcadas por atrasos e superfaturamentos. Um relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) apontou que apenas 9% das obras do programa entre 2007 e 2009 foram entregues pela gestão da época.
Na segunda versão do PAC, encampada pela ex-presidente Dilma entre 2011 e 2014, apenas 26% das obras foram entregues. Além disso, o tribunal apontou irregularidades graves em 32 obras de infraestrutura que receberam recursos federais.
Incentivo à indústria naval e retomada de refinarias
Outro exemplo do atavismo petista é a volta subsídio do BNDES para investimento em construção da indústria naval, anunciada em maio, com a chamada política de conteúdo local (PCL), que prioriza matéria-prima e mão de obra brasileiras na construção de plataformas, navios, sondas e refinarias.
Criticada por estudiosos e analistas do setor, a política adotada nos mandatos anteriores petistas gerou efeitos negativos para o desenvolvimento da indústria. "A evidência de que o programa de construção de navios deu errado é cavalar", destaca Samuel Pessôa.
"Nenhum estudo, de fato, mostra que os estaleiros brasileiros tiveram ganho de produtividade no período. Ao contrário, os investimentos contribuíram para o aumento de custos das petroleiras, em especial a Petrobras. A Petrobras chegou a ser a empresa mais endividada do país em 2014", lembra Pessôa.
O atual governo também suspendeu e revisou todos os processos de venda de refinarias da Petrobras, mantendo apenas aqueles com contratos assinados em andamento.
"Entre 2006 e 2014, as refinarias que o governo tentou fazer aumentaram o rombo da Petrobras. Só com a Comperj [Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro] o prejuízo foi US$ 14 bilhões. Com a refinaria Abreu e Lima, foram mais US$ 10 bilhões. Agora estão falando em retomar. Nunca ouvi uma explicação do porquê ter dado errado e nem como daria certo agora", afirma o professor do Ibre.
Governo fala em "neoindustrialização" com indústria protegida
Para Elena Landau, a retomada de políticas de subsídios a setores industriais escolhidos a dedo é "toda errada e ultrapassada", mas ainda não está claro se é apenas retórica populista de Lula. "O governo Lula tem mais discurso do que prática", ressalta. "Vive falando em neoindustrialização, mas a gente não sabe exatamente o que é isso."
A neoindustrialização do país foi um dos pontos centrais do documento que Lula divulgou antes da eleição de 2022, que defendia levar a indústria brasileira para o século 21. Não é exatamente o sentido das medidas anunciadas até agora.
Para a economista, não há nada que indique uma mudança que não repita os erros do passado, ainda que tenha outro nome.
"Enquanto não houver abertura comercial real, sou muito cética do avanço industrial. Temos uma indústria protegida, que não compete com o exterior, não investimos em tecnologia, a mentalidade do governo nesta área é a da Lei de Informática, de reserva de mercado", avalia.
Uma das medidas mais recentes do governo foi retomar a taxação de veículos elétricos importados, a título de impulsionar a indústria automotiva local. Na filosofia do governo, o avanço tecnológico nacional virá do fechamento do mercado.
Landau também critica os incentivos para a transição energética em empresas de grande porte que vem sendo cogitados. "Todas as empresas sabem que precisam ser 'verdes' neste século, com investimentos previstos para isso. O governo acha que precisa do BNDES para tudo", diz.
A economista também destaca a manutenção dos benefícios para Zona Franca de Manaus pela reforma tributária. "Não tem sentido nenhum", diz.
Retrocessos, aparelhamento e hipocrisia sobre privatizações
Para além das repetições de erros, a economista lembra os retrocessos já estabelecidos pelo atual governo. Alguns conseguiram ser barrados pelo Legislativo, como a tentativa de rever o Marco do Saneamento. Outros, no entanto, conseguiram ser devidamente avalizados pelo Legislativo e Judiciário.
Foi o caso da revogação de item da Leis das Estatais que impedia posse de pessoas que tenham exercido função política para cargos de empresas públicas. A mudança permitiu a posse de Aloísio Mercadante à frente do BNDES. Também permitiu nomeações de ministros para conselhos de administração, como forma de complementar salários. O melhor exemplo é o de Carlos Lupi, do Trabalho, e Anielle Franco, da Igualdade Racial, indicados para o conselho da Metalúrgica Tupy.
Landau cita ainda a perspectiva de interferência na política de preços da Petrobras, com atraso na fixação de reajustes, e a investida contra a privatização da Eletrobras, para cujo conselho o governo reivindica mais três assentos. "[Para o governo], capitalizar a Eletrobras é crime de lesa-pátria, mas a destruição da empresa por conta da intervenção de Dilma via MP 579 foi esquecida", resume a economista.
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