A insistência do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em emplacar o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega no comando da Vale transformou a sucessão da mineradora numa novela que terá capítulos decisivos nos próximos dias. A companhia foi privatizada há quase três décadas, mas Lula faz questão de interferir em seus rumos.
O mandato do atual presidente, Eduardo Bartolomeo, acaba somente em maio. Mas, pelo estatuto da empresa, o conselho de administração deve anunciar a permanência ou não do CEO com pelo menos quatro meses de antecedência. No próximo dia 31, o colegiado analisa se reconduz Bartolomeo ou se abre processo para escolher outro executivo.
O governo não tem poupado esforços para emplacar o nome de Mantega. A intenção, conhecida há mais de um ano, teve momentos de maior ou menor empenho, mas nunca saiu do radar.
Na primeira tentativa, em 2023, a reação do mercado foi imediata e ações da empresa despencaram na B3, a Bolsa de Valores. Agora, com a proximidade do fim do atual mandato, a pressão do Planalto se intensificou.
Segundo o jornalista Lauro Jardim, do jornal "O Globo", o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, estaria ligando para acionistas da companhia e avisando que Lula não abre mão de ver Mantega no comando da mineradora. Em público, porém, Silveira disse dias atrás que o governo "tem juízo" para não tentar impor o nome do ex-ministro.
“Nós não faremos nada que possa desrespeitar a governança da empresa. Nós não fazemos isso com a Petrobras, em que somos controladores. Mas nós vamos participar da discussão da maior mineradora do país, e queremos que ela volte a ter o posto de maior do mundo”, afirmou Silveira durante o Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça.
Bartolomeo assumiu em 2019, após o afastamento de Fabio Schvartsman depois do colapso da barragem de rejeitos de Brumadinho (MG). A tragédia motivou indenizações de R$ 38 bilhões, que ainda estão sendo pagas às famílias dos 270 mortos.
Bartolomeo foi reeleito em 2021. Segundo informações de bastidores, o conselho está dividido sobre sua continuidade. No governo federal e no PT, o executivo é alvo de críticas por sua postura discreta e distante do governo, empenhado na gestão profissional.
Estratégia do governo passa por indicação de Mantega ao Conselho
Por conta das resistências impostas pelas regras e políticas corporativas, a possibilidade de Mantega assumir a presidência são baixas. Ele teria de ser indicado por uma consultoria de headhunters independente, o que é pouco provável.
Por isso, uma das hipóteses ventiladas foi a de uma indicação ao conselho de administração, para posterior caminhada rumo à presidência. Nesse caso, seria necessária a renúncia de algum dos atuais conselheiros, o que também exigiria uma boa dose de interferência por parte do governo – que, vale destacar, não é acionista da empresa.
Caso aprovado, Mantega teria remuneração anual de R$ 1,34 milhão, valor médio pago aos 13 conselheiros da empresa. Segundo rumores, no entanto, Mantega não se contenta em ser "copiloto" na Vale e insiste no cargo de presidente.
Em qualquer das hipóteses, o caminho não será fácil. O ex-ministro teria de ser aprovado pela área de compliance da mineradora. Seu nome precisaria passar pelo conselho de nomeação, composto por três integrantes, depois ser referendado pelos próprios conselheiros e ainda pelos demais acionistas em assembleia geral.
Mantega, que comandou a Fazenda de 2006 a 2015, foi um dos atores da implementação da nova matriz econômica, responsável pela crise econômica sem precedentes desencadeada no governo de Dilma Rousseff (PT). Também presidiu o Conselho de Administração da Petrobras entre 2010 e 2015, época de decisões de negócio desastrosas e da manipulação populista de preços que trouxe prejuízos bilionários à estatal.
Contra ele também pesam uma ação ainda não julgada no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), com sede em Brasília, sobre supostos caso de corrupção relacionado à construtora Odebrecht (hoje Novonor) e ao governo federal. A denúncia envolve o repasse de propina para a edição de medidas provisórias de parcelamentos de dívidas em 2008 e 2009.
"Será um teste para a governança da empresa", diz Alexandre Oliveira, conselheiro de administração e membro da comissão de estratégia do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC). "Os acionistas têm interesses próprios e os mecanismos existentes visam exatamente equilibrá-los, além de blindar a companhia de interferência políticas", diz.
Vale tem controle pulverizado e decisões são do conselho de administração
A Vale deixou de ser estatal em 1997, num movimento que o PT e a esquerda nunca engoliram. Houve protestos e campanhas contra a venda da mineradora. O governo manteve sua influência por meio de ações pertencentes ao BNDES e a fundos de pensão de estatais, como a Previ, do Banco do Brasil.
Em 2020, com a política de desinvestimento das estatais do governo de Jair Bolsonaro (PL), o BNDES vendeu suas participações, promovendo uma nova configuração na Vale. Com a pulverização das ações, a empresa adotou o modelo de corporation, sem controlador definido, comum nos EUA.
O fundo americano BlackRock se tornou sócio nessa leva. Segundo a informação mais recente disponibilizada no site da Vale, o fundo tinha 5,83% da companhia em 31 de outubro de 2023. O maior acionista individual da empresa é a Previ, com 8,71% do capital, e a japonesa Mitsui tem 6,31%. Nenhum dos demais acionistas tem mais de 5% das ações.
O primeiro conselho de administração, responsável pela indicação do CEO da companhia, foi criado em abril de 2021. Os mandatos são de dois anos e, em 2023, houve a escolha dos atuais conselheiros que vão definir o destino de Bartolomeo na Vale. Dos 13 conselheiros, cinco são indicados pelos acionistas, e oito são independentes, ou seja, sem vínculo com os controladores.
A influência do governo é indireta e se dá por meio dos dois assentos pertencentes à Previ, maior acionista da Vale. Um deles é do atual presidente do conselho, Daniel André Stieler, e o outro de João Fukunaga. O próprio presidente Bartolomeo também foi indicado pelo fundo de pensão do BB.
Outras cadeiras no conselho de administração são da Bradespar, controlada pelo Bradesco, da Mitsui e da Cosan, gigante brasileira do açúcar e do etanol. Controlada pelo empresário Rubens Ometto, a Cosan, que atua em distribuição de combustíveis e logística ferroviária, adquiriu 4,9% das ações da Vale no ano passado.
Na época, Ometto conseguiu colocar no conselho da Vale Luís Henrique Guimarães, então presidente da Cosan. O movimento deu margem a especulações de que o grupo trabalharia por sua indicação para a presidência da Vale.
Negociações com a Cosan e a Mitsui são apostas do governo para emplacar Mantega. Num movimento considerado explícito nos bastidores do empresa, o governo designou interlocutores para articular a indicação do ex-ministro com os acionistas.
Há vários interesses em jogo. Entre eles, a concessão de licenças ambientais para atuais e novos projetos; renovações de contratos de ferrovias; e também as negociações de reparação de danos ambientais e sociais da Vale. São discussões que envolvem dezenas de bilhões de reais e órgãos de governo, Justiça e Ministério Público.
Para o economista Samuel Pessôa, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), o governo tem instrumentos para pressionar a indicação.
"O Poder Executivo no país é muito poderoso. Se quiser, pode usar todo o pode dele de chantagem para influir nas decisões. Membros do conselho têm outros interesses e é sempre importante manter uma boa relação com o governo", diz.
Governo segue roteiro de influência e reabilitação de aliados
O xadrez do governo para o comando da Vale segue o roteiro de recuperação da influência das empresas que já pertenceram ao Estado, mas foram privatizadas.
É o que Lula tentou fazer em relação à Eletrobras, sem sucesso até agora, e nas refinarias vendidas pela Petrobras.
Lula também decidiu retomar uma prática de suas antigas gestões, destinando recentemente R$ 8 bilhões do BNDES para a compra de participação em empresas, como parte do programa Nova Indústria Brasil.
Para analistas do mercado, ao tentar emplacar Mantega na maior empresa privada do país, além de transformá-la em uma parceira estratégica a serviço de interesses e projetos federais, Lula também segue a estratégia de reabilitar nomes históricos e fiéis a ele e ao PT.
Foi assim com a ex-presidente Dilma Rousseff (PT), hoje na presidência do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), o "Banco dos Brics". Está sendo assim com ex-ministro da Casa Civil José Dirceu e o ex-deputado federal José Genoino, que começam a ter mais espaço no partido e caminham para o ressurgimento na vida pública.
No caso da Vale, o desfecho da novela pode ser um divisor de águas para o futuro da companhia. "Nada indica que o conselho vá abrir mão de sua liberdade de escolha, preservando os interesses da empresa. Resta esperar que o governo pratique a autocontenção e não tente forçar um nome, independente de quem seja", resume Pessôa.
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