Uma série de medidas do governo e decisões recentes do Judiciário que modificam regras tributárias tem contribuído para aumentar a insegurança jurídica no ambiente de negócios do país. Além de elevar a carga tributária, gerando prejuízos a contribuintes, as mudanças dificultam as provisões orçamentárias das empresas, o que trava investimentos.
Entre os episódios que têm ampliado a sensação de insegurança estão decretos e medidas provisórias (MPs) editados pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a fim de revogar ou reverter decisões da gestão de seu antecessor, Jair Bolsonaro (PL).
“A insegurança jurídica no Brasil é antiga e enraizada, mas vem à tona especialmente no início de governos, principalmente quando há mudança de diretrizes políticas”, diz o advogado tributarista Dylliardi Alessi, da Peccinin Advocacia.
Uma medida que ilustra bem esse momento se deu justamente na virada do ano. No dia 30 de dezembro de 2022, o então presidente em exercício, atual senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS), assinou decreto que reduzia em 50% duas tributações sobre receitas financeiras de empresas. Com o ato, o PIS/Pasep sobre essa base de cálculo passou de 0,65% para 0,33%, enquanto a Cofins, de 4% para 2%.
No dia 1º de janeiro, recém-empossado, Lula assinou outro decreto revogando o benefício. Uma série de ações foi impetrada na Justiça questionando a validade da medida, porque não se estaria respeitando a regra de anterioridade, que estabelece 90 dias como prazo mínimo para majoração de alíquota.
Houve entendimentos favoráveis e contrários aos contribuintes, até que, em março, o então ministro do STF Ricardo Lewandowski determinou a suspensão da eficácia das decisões já tomadas que tivessem afastado a aplicação do decreto de Lula. No último dia 8, o STF reconheceu a validade da revogação, sem necessidade da noventena. A decisão garante uma arrecadação de R$ 5,8 bilhões adicionais por ano para a União.
Apesar de Lewandowski alegar que, devido ao curto tempo de vigência, a desoneração não tenha chegado a produzir efeitos, apenas expectativa pela medida já pode ter gerado mudanças no planejamento orçamentário de empresas.
“O que a gente vê, principalmente nessa virada de governo é, tanto no âmbito judicial como no do Executivo, uma tendência arrecadatória”, diz Luciano de Biasi, sócio da De Biasi Consultoria, Auditoria e Outsourcing.
“O que a gente observa nesse cenário é que, na ânsia arrecadatória, são tomadas decisões que não estão embasadas na própria lei, na própria norma, na própria Constituição Federal, e, sim, em um cenário econômico ou, muitas vezes, na ideologia do julgador”.
Vaivém em marco legal trava investimentos no setor de saneamento
Serviços públicos essenciais não escapam dos efeitos dessa insegurança. Os decretos assinados por Lula em abril para alterar aspectos-chave do marco legal do saneamento básico são um exemplo. A nova legislação trouxe estímulos à concorrência no mercado de coleta e tratamento de esgoto e de fornecimento de água potável.
Ao reabrir a possibilidade de empresas estatais atuarem no setor sem licitação, as mudanças promovidas pelo novo governo frustraram agentes privados que pretendiam investir em concessões. A própria expectativa de que a nova legislação, aprovada em 2020, seria revertida, já travou investimentos.
“Quando se começou a falar em voltar atrás em tudo o que o marco definiu, os investimentos pararam”, disse Diogo Mac Cord, líder de infraestrutura e mercados regulados na América Latina Sul da EY Brasil. “Os governadores passaram a esperar para ver qual seria a nova sinalização”.
No início de maio, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de decreto legislativo (PDL) para suspender as modificações feitas por Lula no marco do saneamento. O mercado segue em indefinição, uma vez que a decisão ainda precisa ser confirmada pelo Senado, onde ainda aguarda definição de relator na Comissão de Serviços de Infraestrutura.
Mudanças tributárias por medida provisória geram mais imprevisibilidade
A normatização por parte do governo por meio de decretos presidenciais ou de medidas provisórias (MPs) ajuda a fomentar a insegurança jurídica, uma vez que decisões que impactam diretamente o ambiente de negócios podem entrar vigorar sem o amplo debate público que pressupõe o processo Legislativo.
Um exemplo é a alíquota temporária de 9,2% do imposto sobre as operações de exportação de petróleo bruto, anunciado pelo governo federal no dia 28 de fevereiro para vigorar a partir do dia seguinte. Ainda que projetado para durar apenas até o fim de junho, o novo imposto pode gerar consequências de longo prazo para o setor, que, enquanto tenta suspender a cobrança do imposto na Justiça e segura investimentos, considera o risco de vê-lo ser prorrogado e até tornar-se permanente.
Outro exemplo é a MP 1.159/2023, editada em janeiro e que exclui o ICMS da base de cálculo de créditos do PIS/Pasep e da Cofins. A medida remonta a uma decisão do STF de 2021, a chamada “tese do século”, que excluiu o imposto estadual da base dos tributos federais para operações de débito, mas não para as de crédito.
Créditos tributários são valores de impostos pagos a mais ao longo da cadeia produtiva que podem ser devolvidos às empresas ou usados para abater o pagamento de outros tributos. Ou seja, ao retirar o ICMS da base de cálculo de PIS/Cofins no recolhimento, os contribuintes passaram a recolher menos imposto, mas como a decisão não se estendeu aos créditos, a União passou a ter prejuízo nas operações.
Após respeitar o período nonagesimal, a MP 1.159 entrou em vigor no dia 1º de maio e, conforme estimativa do governo, deve gerar um prejuízo de R$ 30 bilhões para as empresas. Mas a MP não chegou a ser transformada em lei pelo Congresso Nacional e, se for rejeitada ou não chegar a ser votada, perde a eficácia no início de junho, após já ter sido prorrogada por 60 dias.
“Imagine que você tem uma indústria e comprou insumos até o final de abril com crédito de ICMS na base do PIS/Cofins. No mês de maio, você compra sem os créditos. Agora você não sabe se em junho a sua matéria-prima vai estar mais cara ou mais barata”, ilustra Luciano de Biasi, da De Biasi Consultoria, Auditoria e Outsourcing. “Cada mudança na legislação exige que as empresas parametrizem seus sistemas de ERP [Planejamento de Recursos da Empresa, na sigla em inglês], o que tem um custo”, diz.
Em uma ação no Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2), o desembargador Willian Douglas Resinente dos Santos entendeu que a MP gera “risco de dano grave, de difícil reparação” ao contribuinte e concedeu liminar autorizando a manutenção do ICMS na apuração de créditos de PIS e Cofins. “Mas a decisão só se aplica à empresa que entrou no Judiciário”, explica Dylliardi Alessi. “Imagine quantas ações judiciais essa decisão não vai gerar”.
Cortes superiores adotam decisões contraditórias
Em outro julgamento, de maneira aparentemente contraditória, em uma chamada tese “filhote” da “tese do século”, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu pela inclusão do ICMS na base de cálculo do IRPJ e da CSLL por empresas que apuram o lucro pelo regime presumido.
A alegação da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) foi de que o STF não retirou o ICMS da receita bruta. Ao adotar a presunção de lucro, as companhias enquadradas no regime aplicam um percentual previsto em lei (que varia conforme o setores) sobre o faturamento, e o resultado serve de base para a incidência dos tributos.
Em uma das mais recentes decisões relativas à esfera tributária, o STJ decidiu, em abril, que devem incidir impostos como IRPJ e CSLL sobre benefícios fiscais de ICMS. O julgamento chegou a ser suspenso pelo ministro do STF André Mendonça, que, na semana passada, recuou da medida.
Na quarta-feira (10), a Receita Federal começou a notificar as primeiras 5 mil empresas com indícios de irregularidades no pagamento dos tributos. O governo chegou a estimar em R$ 90 bilhões o valor que potencialmente será a arrecadado com a mudança na jurisprudência.
Outro tema que empresários acompanham em compasso de espera é o da contribuição previdenciária patronal sobre o terço de férias. Em agosto de 2020, o STF decidiu, em julgamento de repercussão geral, pela tributação sobre o adicional. À época, a decisão surpreendeu, uma vez que, em março de 2014, o STJ já havia firmado posição contrária à cobrança em um julgamento repetitivo.
Houve uma série de pedidos de embargos de declaração por parte de empresas que pediam a modulação dos efeitos da decisão, para impedir cobranças retroativas. Os recursos começaram a ser analisados em 2021, mas foram suspensos por um pedido de destaque do ministro Luiz Fux, após cinco votos favoráveis à modulação e quatro contrários.
A Associação Brasileira de Advocacia Tributária (Abat) calcula que, caso a maioria dos ministros da Corte vote por não modular os efeitos, o prejuízo às empresas ficará entre R$ 80 bilhões e R$ 100 bilhões. A estimativa inclui a cobrança de percentual entre 26% e 30%, dependendo da atividade econômica, sobre o terço de férias dos funcionários de todas as empresas no período entre março de 2014 e agosto de 2020.
Em fevereiro, STF relativizou decisão transitada em julgado
Na esfera do Judiciário, uma das decisões mais emblemáticas no que diz respeito à insegurança jurídica foi tomada no último mês de fevereiro. No julgamento de dois processos de repercussão geral, o STF abriu precedente para a relativização de decisões favoráveis a contribuintes que já haviam transitado em julgado, ou seja, para as quais, em tese, não havia mais possibilidade de recurso.
Ficou entendido que empresas que não recolhiam a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) - com base em sentenças consideradas definitivas - terão de recolher os tributos retroativos desde 2007, quando o STF decidiu pela constitucionalidade do tributo.
Fora os prejuízos milionários a empresas, a decisão do STF pode impactar os 64 tributos que são cobrados no país, segundo o Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT). Entre os principais impostos que são alvo de ações da Justiça, em que as empresas já obtiveram decisões favoráveis, está o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI).
“O caso mais comum é de uma empresa que se considera prestadora de serviço e prova na Justiça que estava recolhendo o IPI indevidamente, de maneira que consegue receber esse valor de volta ou compensá-lo. Pela decisão do STF, isso poderá ser revisto”, explicou João Eloi Olenike, presidente-executivo do IBPT.
Insegurança jurídica ajuda a aumentar Custo Brasil
Um dos principais efeitos direitos da insegurança jurídica na economia é o chamado Custo Brasil. “Quando uma empresa vai definir se vai ou não investir, ela avalia a insegurança jurídica como um possível custo. Quando você tem regras claras, objetivas e um histórico de não alteração dessas regras, certamente isso é levado em consideração pelo investidor”, ressalta Dylliard Alessi, da Peccinin Advocacia.
Em 2023, o Brasil saiu do ranking de confiança para investimento direto estrangeiro da consultoria internacional Kearney, que lista os 25 principais destinos de recursos de empresas com receita anual superior a US$ 500 milhões de diversos setores da economia. O levantamento foi feito em janeiro, em um momento de transição de governo marcado pela polarização política.
Além dos custos retroativos que futuras decisões podem gerar, as empresas passaram, a partir da decisão sobre a “quebra” da coisa julgada, a elevar despesas com o planejamento tributário, diz Luciano De Biasi.
“Uma empresa que tenha ganho de causa, em decisão transitada em julgado, hoje não se sente segura em registrá-la em sua contabilidade, o que coloca as auditorias também em situação difícil: isso é uma contingência ou não? Você tem um problema que vai além, afeta a precificação de produtos e serviços a elaboração de provisões no orçamento”, diz.
“Essas despesas que as empresas têm com a insegurança no cálculo de tributos e obrigações acessórias, elas têm de repassar para o consumidor”, acrescenta. As consequências chegam ao PIB, à balança comercial, à inflação e ao emprego, segundo ele.
“No fim da linha, você acaba jogando lenha na questão inflacionária, faz nosso produto pouco competitivo, e aí tem de gerar barreiras de importação, porque o produto estrangeiro acaba ficando mais barato. O empresário prefere produzir lá fora, o que gera desemprego no Brasil”.
À insegurança jurídica soma-se a complexidade do sistema de impostos do país, que, desde 1988 editou 2,26 normas tributárias por dia, segundo estudo do IBPT. De acordo com levantamento do Banco Mundial lançado em 2021, entre 190 países o Brasil é o líder em tempo gasto por empresas para preparar, declarar e pagar impostos. Conforme o relatório Doing Business, são necessárias entre 1.483 e 1.501 horas por ano nos procedimentos.
Para se ter uma ideia, a média de tempo necessário por ano para o pagamento de tributos nas 34 economias de alta renda da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) é de 155,7 horas. Considerando-se o grupo de 32 países da América Latina e Caribe, o tempo gasto é de 325,3 horas. Já entre os países que compõem o Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), a média é de 437,2 horas.
Além da burocracia, pesa ainda uma sensação de desequilíbrio de forças na disputa entre empresas e o Estado. “Em geral uma decisão do STF contra a União, contra a Receita Federal, tem a chamada modulação de efeitos, ou seja, só vale a partir da sentença ou do momento em que se entrou com a ação”, diz De Biasi. “Quando é contra o contribuinte, uma decisão transitada em julgado retroage”, compara. “Essa situação de injustiça contribui para criar um ambiente de desconfiança.”
O auditor conta que há algum tempo foi procurado por uma multinacional, que o questionou sobre o sistema tributário brasileiro. “Quando a gente explicou, ela desistiu de investir aqui”, conta.
“Imagine que você vai comprar uma empresa em outro país. Se ela tem uma contingência tributária, seu valor cai. É muito difícil explicar para a matriz que uma decisão judicial que você ganhou em 2009 foi revertida, quando você já estava seguro e tinha mandado o lucro para fora, e que essa questão vai afetar também resultados futuros”.
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