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Agronegócio

Milei promete libertar o agro, gigante argentino amarrado pela esquerda; como fica o Brasil?

Javier Milei deve pôr fim ao imposto das retenciones, que se apropria de 33% do valor de venda da soja argentina. (Foto: Juan Ignacio Roncoroni/EFE)

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Ao cumprimentar Javier Milei pela vitória na corrida à Casa Rosada, o ex-presidente americano Donald Trump disse esperar que o futuro mandatário possa causar uma reviravolta nos pampas e “tornar a Argentina grande novamente”, parafraseando o slogan da campanha republicana à Casa Branca, MAGA – Make America Great Again.

O caminho para essa almejada virada argentina, se houver, exigirá muito suor e lágrimas. A inflação do país neste ano já chegou a 140%, o peso perdeu mais de 70% do valor no período e a pobreza atinge 40% da população, sendo 20% em situação de insegurança alimentar. O pesquisador Mauro Osaki, do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea-Esalq/USP), aponta um grande risco para Javier Milei: gastar o mandato tomando medidas impopulares para pôr a casa em ordem e depois entregar o país “de bandeja” para a esquerda novamente, "se não aparecerem logo resultados palpáveis para a população".

Dentre os setores econômicos argentinos, analistas ouvidos pela Gazeta do Povo consideram que nenhum se equipara ao agro no potencial de contribuir mais rapidamente para uma arrancada no desenvolvimento. E essa eventual arrancada terá impactos significativos no agronegócio brasileiro, que ainda tem pela frente três anos de um governo de esquerda com forte tentação intervencionista.

O caso da soja argentina é emblemático. Os produtores de lá conseguem se manter competitivos no mercado global mesmo recebendo apenas um terço dos dólares pagos a seus colegas brasileiros ou americanos, os principais concorrentes. Terras entre as mais férteis do mundo e logística favorável para escoamento das safras por hidrovias dão resiliência aos hermanos. O que poderão fazer caso não tenham que pagar imposto de exportação (as chamadas retenções) de 33% e recebam pela cotação real do dólar, e não por um câmbio artificial que reduz o valor pela metade?

Fundação Fada prevê que produção de grãos na Argentina pode aumentar 56% em dez anos. (Foto: Albari Rosa / Arquivo Gazeta do Povo)

Argentina pode dobrar produção de grãos e carnes

Dá para se ter ideia desse potencial argentino pelos números de um estudo do Cepea, que avaliou a competitividade entre Brasil, Argentina e Estados Unidos para produzir soja entre 2017 e 2021. O custo operacional efetivo médio de produção de soja na Argentina naquele período foi calculado em US$ 269,3 por hectare, o mais baixo de todos; em seguida aparecia a Ucrânia (antes da guerra), com custo de US$ 315,5/ha. Nos EUA, esse custo saltava para US$ 508,3/ha e, no Brasil, o mais alto, para US$ 551,7/ha – o dobro do custo da Argentina.

Outro estudo, da Fundação Agropecuária para o Desenvolvimento da Argentina (Fada), aponta que a unificação cambial e a eliminação das retenções e dos limites à exportação podem levar a um crescimento de 56% nos embarques agrícolas nos próximos dez anos, com maior parte dos impactos nos primeiros quatro anos. O salto seria de 136 milhões de toneladas para 213 milhões, agregando US$ 30 bilhões. Em carnes, o crescimento seria de 35% no volume produzido e de US$ 4 bilhões em divisas.

Outros analistas são ainda mais otimistas. “Se tirarem esses pesos das costas do produtor, que são as diferenças de câmbio e as retenções, calculo que podemos dobrar a produção de grãos em um tempo relativamente curto, em não mais do que cinco ou seis anos”, avalia Diego de La Puente, diretor da Nóvitas, uma das principais consultorias agropecuárias de Buenos Aires.

Na safra deste ano, assolada por forte seca, a produção da Argentina despencou para 80 milhões de toneladas. Para o ciclo seguinte, no entanto, o fenômeno El Niño deve trazer mais chuvas ao cone sul e, com isso, a previsão é de que a safra 2023/24 alcance 136 milhões de toneladas. Em termos de dólares, significa 50% a mais para os cofres do governo, um acréscimo de US$ 10 bilhões.

Carnes vão sentir mais o preço dos ajustes necessários

Essa dependência do Tesouro argentino dos dólares confiscados dos produtores via retenções não permitirá que Milei tome nenhuma atitude drástica, como cancelar o imposto sobre direitos de exportação da noite para o dia. Após eleito, ele já afirmou que a eliminação das retenções será gradual e que, antes, pretende diminuir o tamanho do Estado argentino, solucionar a rolagem de dívidas do Banco Central e acabar com as múltiplas cotações de dólar do país.

Num sistema político que ficou viciado em sugar o agronegócio, qualquer mudança estrutural terá custos pesados. Quem mais poderá sofrer inicialmente com medidas liberalizantes de Milei será a pecuária. É que o milho, que paga 12% de retenções na exportação, ficará mais caro no mercado doméstico com o fim desse imposto e a liberação do câmbio.

“A questão é que 70% da carne bovina fica no mercado interno, 90% do frango e quase 100% da carne suína. E o mercado doméstico está empobrecido, com perda de poder aquisitivo. Então, as cadeias pecuárias vão sofrer num primeiro momento, mas depois vão começar a tracionar a exportação, tracionando os preços e a produção nessas cadeias”, prevê David Miazzo, economista-chefe da Fada.

Milei quer pôr fim às restrições para exportação de cortes de carne argentina. (Foto: Michel Willian / Arquivo Gazeta do Povo)

Conter inflação é o maior desafio imediato de Milei

O tal slogan “Make Argentina Great Again”, para se tornar realidade, exigirá sacrifícios que os brasileiros conhecem bem.

“O problema número 1 que Javier Milei terá de resolver é a inflação. Se puxar pela memória, foi também o nosso grande inimigo. Tivemos os planos Cruzado, Verão, Collor 1 e Collor 2 e fracassamos. A gente só foi começar a vencer este monstrinho no Plano Real. Não sei qual será a força que a motosserra dele vai ter agora no curto prazo", diz Felippe Serigati, pesquisador do Centro de Estudos do Agronegócio da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

"Acho que se tiver que escolher entre vencer a inflação e colocar as finanças públicas minimamente em ordem, ele vai atacar a inflação”, prevê.

Se acabar logo com o controle estatal dos volumes de milho e trigo autorizados para exportação, Milei já terá dado um passo importante para estimular os produtores. Os governos peronistas impunham cotas nos embarques por temer a falta desses produtos “culturais” no mercado doméstico.

“Todo mundo sabe que esse controle, além de não ajudar a reduzir a inflação, limita a produção e a geração de renda, ao desestimular a ampliação da área plantada”, observa Daniele Siqueira, analista da agência AgRural, de Curitiba.

Só o fato de o governo eleito assegurar que desregulamentará o agro já traz efeito positivo para o setor, mesmo que pouca coisa possa ser feita a curto prazo.

“É como se o universo agro lá na argentina dissesse: não sei exatamente como essa turma vai fazer a lição de casa, mas pelo menos estão dizendo que não vão rasgar o caderno. O outro lado estava rasgando persistentemente o caderno, mudando a regra do jogo, cometendo algumas barbaridades. E isso não foi durante um ou dois anos, foi um longo processo”, sublinha Serigati, da FGV.

Duas décadas de estagnação lá e desenvolvimento aqui

Não sem motivo, os últimos 20 anos de retenções na Argentina coincidiram com um período de grande crescimento do agro no Brasil e estagnação no país vizinho. Osaki, do Cepea, observa que o produtor argentino simplesmente não tinha estímulo para investir.

“O setor público é um sócio majoritário, leva 33% do que você ganha, é como se você trabalhasse à toa. É taxado pela sua competência. E ainda temos alguns ‘lúcidos’ brasileiros achando que taxar o agro é interessante. Só se for para gerar emprego em outro país, e não aqui”, pondera.

Osaki prevê desafios à competitividade do milho e do trigo brasileiros, caso a Argentina realmente se erga. “Eles vão disputar o milho diretamente conosco, com os Estados Unidos e com a Ucrânia. E no trigo, não temos competitividade para produzir no nível de preço deles. Nosso custo é muito elevado e nossa competitividade nem sempre é boa. Pega uma chuva como a que tivemos agora no Paraná, quase no fechamento da safra, e das 4 toneladas por hectare que estavam estimadas, você vai colher 1 tonelada, se colher alguma coisa”, sublinha.

Com tantos fatores favoráveis à produção agropecuária, os produtores argentinos não pedem muita coisa de Milei. “O campo não pede ajuda, pede apenas que não o moleste”, diz Sebástian Oliveros, analista da StoneX em Buenos Aires.

“O custo da Argentina é um dos mais competitivos do mundo, poderíamos semear mais, aproveitar a terra, o clima, a proximidade dos portos, toda a infraestrutura e a agricultura feita de forma muito profissional. Tirando os freios, podemos perfeitamente dobrar a produção de grãos e de carne. Durante muitos anos vínhamos com governos jogando contra o setor, e o produtor se manteve na defensiva, tratando de sobreviver e não de se desenvolver”, argumenta Oliveros.

Argentina forte trará benefícios para o Brasil

Se o gigante vizinho acordar, é consenso que os reflexos vão transbordar as fronteiras. “O Brasil terá que suar mais a camisa para assegurar sua fatia nas exportações de milho, derivados de soja, carnes e outros produtos. Isso pode parecer ruim para o Brasil, mas não é”, diz Daniele Siqueira, da AgRural.

“Livre comércio, competição leal, concorrentes fortes, tudo isso cria um ambiente de negócios mais saudável, que vai forçar o Brasil a continuar melhorando e superando suas próprias deficiências para ser mais competitivo. Comemorar recordes de exportação alcançados por nosso mérito apenas é melhor do que comemorar recordes de exportação que também se deveram a desgraças enfrentadas pelos concorrentes, como crise econômica e quebra de safra na Argentina, guerra na Ucrânia, etc. E o Brasil tem capacidade para continuar no topo pelos próprios méritos. A concorrência mais acirrada vai nos ajudar a nos tornarmos ainda melhores”, assegura.

Na mesma linha segue Osaki, do Cepea: "A agricultura argentina indo bem, a economia deles indo bem, é bom também para nós. Por que eles vão começar a comprar mais bens duráveis do Brasil".

Um ponto de atrito, ainda a ser trabalhado, está no tratado Mercosul-União Europeia, que o governo brasileiro tem pressa de assinar, mas Milei vê como um estorvo e preferiria negociar de forma individual com outros países. Seja como for, em relação ao agro, o recado é claro: o gigante vizinho está acordando, e o gigante de cá não pode cochilar, justo agora.

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