Popularizada pelo presidente argentino Javier Milei, a "motosserra" se tornou símbolo mundial do movimento pela redução do Estado e da burocracia, em prol da eficiência administrativa dos governos. O bilionário Elon Musk, à frente do Doge, departamento criado para cortar gastos e desregulamentar a economia americana, empunhou o símbolo presenteado por Milei num evento em fevereiro, endossando a ideia.
Não se trata, no entanto, de uma iniciativa isolada, na esteira das disrupções impostas pela administração de Donald Trump. É uma tendência global, adotada por governos de variados espectros políticos, que visa cortar as amarras que enredam as máquinas públicas e emperram o crescimento econômico. A edição de fevereiro da inglesa The Economist traz exemplos de administrações que buscam revisar suas regras de planejamento, de “Buenos Aires e Déli a Bruxelas e Londres”.
“Os movimentos de desburocratização, transformação e redução do Estado fazem parte do debate em diversas partes do mundo”, diz Wagner Lenhart, CEO do Instituto Millenium. “Em muitos lugares, também vêm sendo executados, vistos com bons olhos. Talvez não de forma tão incisiva ou disruptiva como nos Estados Unidos e na Argentina, mas estão em andamento.”
O movimento, no entanto, não encontra eco no Brasil e no Palácio do Planalto. O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), por definição, defende mais Estado, e não menos. Mas o equilíbrio das contas e a eficiência dos serviços, segundo Lenhart, são demandas apartidárias e que deveriam ser priorizadas.
“Seria importante modernizar o Estado”, diz. “Temos um sistema muito arcaico, muito rígido, inflexível e burocrático, que não dialoga com o mundo atual, onde você precisa ter mais agilidade, mais flexibilidade, estruturas mais horizontais, mais descentralizadas e capacidade de resposta mais rápida, características que o governo brasileiro hoje não possui.”
Redução do Estado brasileiro não será via "motosserra"
Para a economista Cristiane Schmidt, consultora da Fundação Getulio Vargas e consultora sênior para o Banco Mundial, o caminho da redução do Estado brasileiro não passará pela "motoserra de Milei". Será institucionalmente longo e desafiador.
“Se você quer, de alguma maneira, sair cortando gastos que de fato precisam ser cortados, não pode fazer isso via canetada [como fizeram Trump e Milei]”, afirma. “Você precisa de mudanças nas leis. Muito do que temos é constitucional, devido à Constituição Cidadã de 1988.”
Segundo ela, os gastos públicos reconhecidamente altos e crescentes se somam à rigidez do orçamento público e à má qualidade de alocação, inviabilizando investimentos necessários ao crescimento sustentável.
A economista destaca que o governo federal dispõe de menos de 10% de recursos livres para despesas discricionárias. O restante é consumido por gastos obrigatórios, que, até 2027, deverão abocanhar a totalidade dos recursos da peça orçamentária, segundo estudo publicado em fevereiro pela Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira (Conof) da Câmara dos Deputados.
“O Executivo tem se tornado um carimbador de despesas obrigatórias”, diz a economista. “Se as regras atuais permanecerem, mais de 100% do recurso federal primário estará pré-definido, o que é inconcebível em uma democracia.”
Regulamentação de emendas não avançou
Entre os gastos obrigatórios, segundo Schmidt, a redução da despesa com pessoal é prioritária, mas também enfrenta entraves. “Está na Constituição, por exemplo, que a União, os estados e os municípios devem gastar uma proporção definida do PIB [Produto Interno Bruto] com saúde e educação”, explica.
“Isso inclui a folha de pagamento de professores. Então, a pergunta é: poderia haver cortes de servidores da noite para o dia? Não, pois isso violaria a Constituição.”
Schmidt também lembra que emendas constitucionais para reduzir gastos e implementar uma reforma administrativa, votadas desde o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), permanecem à espera de regulamentação do Congresso.
Na época, emendas constitucionais foram promulgadas modificando o capítulo da Constituição que trata da administração pública. Elas apresentavam alternativas para aumentar a produtividade do serviço público, melhorar a qualidade das entregas e diminuir o custo da folha no Orçamento. Mas, sob pressão do funcionalismo, não avançaram.
“O que aconteceu desde então é que nenhuma regulamentação foi aprovada”, afirma. “Portanto, algumas mudanças constitucionais aprovadas não foram regulamentadas por leis complementares ou ordinárias.”
Gastos do governo pressionam a dívida pública
Mauro Rochlin, economista da FGV-RJ, destaca que a necessidade de modernização e redução do Estado no Brasil está fundamentalmente ligada ao aspecto fiscal. As contas do governo no vermelho pressionam o aumento da dívida pública, que fechou janeiro em 75,3% do PIB, de acordo com o Banco Central, e pode alcançar 81,4% do PIB até o fim do ano, segundo projeções da Instituição Fiscal Independente (IFI), ligada ao Senado Federal.
“Além do crescimento muito preocupante da dívida pública, um gasto público pressionando a inflação, temos uma dívida que já é muito grande”, diz Rochlin. “Se compararmos com países emergentes, a dívida brasileira é quase o dobro, o que a torna insustentável. Os juros estão altos porque a dívida é alta. O dólar está pressionado porque a dívida é alta. Pagamos quase R$ 1 trilhão por ano de juros porque a dívida é alta.”
Para ele, as comparações feitas com os números de outros países, inclusive da dívida americana – que ultrapassa os 100% do PIB – são falaciosas. “Muita gente costuma dizer: ‘Ah, mas os Estados Unidos têm uma relação dívida/PIB de 100%, o Japão de 250%.’ É verdade, mas qual é a taxa de juros nos EUA? 4,5%. E no Japão? 0,1%. E, nos últimos 20 anos, foi zero; aliás, foi negativa”, afirma.
“Um país que tem uma taxa de juros negativa pode se dar ao luxo de ter uma dívida alta, porque o peso do serviço da dívida no orçamento é zero. Mas nós temos uma dívida de 80% do PIB e uma taxa de juros de quase 15%, o que é insustentável”, completa.
Estabilidade do servidor deveria ser revista
Para Lenhart, além do ponto de vista fiscal, a reforma da administração pública brasileira é importante para a oferta de serviços públicos mais adequados às demandas da população. “O Estado não deve apenas gastar menos, deve gastar melhor", defende. "Isso inclui não só as despesas com pessoal, mas também a forma como contrata, como faz a gestão dos seus contratos e como executa obras e serviços."
“Se analisarmos o Brasil hoje, vemos que áreas que deveriam ser prioritárias, como segurança, educação e saúde, não são eficientes. Quando as famílias têm recursos, a primeira coisa que fazem é buscar alternativas privadas, em vez das públicas”, diz.
Para o CEO do Instituto Millenium, não basta realizar ajustes pontuais, mas sim promover uma reforma profunda que torne o sistema público mais descentralizado, revisitando inclusive a estabilidade do funcionalismo.
“Só para dar um exemplo: quando você contrata um servidor hoje via concurso, essa pessoa fica vinculada à administração pública até o fim da vida, independentemente de a atividade para a qual foi contratada ser ou não necessária daqui a cinco anos", afirma. "Hoje o servidor tem uma estabilidade plena e absoluta, mesmo que a atividade se torne obsoleta. Isso é disfuncional e injusto, pois quem paga essa conta, no final das contas, é o mais pobre.”
PEC 32 sobre a reforma "não está morta"
Embora não esteja no radar do governo e do Legislativo, uma proposta de emenda constitucional para a reforma administrativa (PEC 32), que o governo de Jair Bolsonaro (PL) encaminhou ao Congresso em 2020, poderia ser votada a qualquer momento. No início de 2024, o texto chegou a ser defendido com vigor pelo então presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e entrou na lista de prioridades também do Senado.
Como previsto, enfrentou forte oposição do atual Executivo federal. A ministra da Gestão e Inovação, Esther Dweck, chegou a dizer que a proposta era “punitiva” e focava apenas na questão fiscal.
Em agosto de 2024, Dweck admitiu ao site Jota que a proposta não “está morta,” mas que o Congresso não a levaria adiante sem diálogo com o governo. “Se o Congresso resolver votar, não será o texto que está lá”, disse.
Desde então, não há sinais de que possa avançar, especialmente agora, sob a nova direção legislativa. “Mesmo com este debate mundial, o enxugamento da máquina do Estado e a reforma administrativa dificilmente serão discutidos no governo Lula, tanto por questões ideológicas ou eleitorais", afirma Rochlin. "E dificilmente teria apoio maciço no Congresso.”
O economista da FGV defende, no entanto, que a bandeira – inspirada nas ideias de Trump e Milei – deveria ser levantada pela oposição para as próximas eleições.
“Talvez fosse um bom discurso para a oposição”, diz. “Pegaria bem falar em redução do tamanho do Estado, corte de privilégios e de ganhos indevidos. Temos, no funcionalismo público, algumas ‘castas’ muito bem remuneradas e com privilégios, o que é mal visto pela população. Isso pode dar o empurrão para outros cortes de gastos necessários.”
Lenhart, do Millenium, acredita que, cedo ou tarde, o debate público sobre o tema deverá ser retomado. “Mas com o Congresso participando, fazendo as alterações constitucionais e legais que precisam ser feitas”, diz.
“Qualquer movimento mais abrupto em relação à administração pública, como nos EUA e Argentina, geraria uma crise institucional e jurídica, muito grande. Haveria, sem dúvida nenhuma, uma enxurrada de ações. E a tendência, julgar pelas características do nosso Judiciário e pela jurisprudência, é que as medidas fossem impugnadas”, conclui.