A política fiscal do Brasil ganhou holofotes nas últimas semanas, quando o debate sobre furar ou driblar o teto de gastos ganhou força em setores do governo. A possibilidade é duramente criticada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, que acabou ganhando apoio público de Jair Bolsonaro, reiterado nesta quinta-feira (20). Fato é que propostas para contornar a regra se acumulam, e são anteriores à pandemia.
Esse é um dos apontamentos do relatório “Considerações sobre o teto de gastos da União”, publicado na quarta-feira (19) pelos economistas Felipe Salto, Daniel Couri e Josué Pellegrini, da Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão ligado ao Senado Federal. Eles listam cinco mecanismos apresentados no passado recente que de alguma maneira buscavam burlar o teto – regra incluída na Constituição em 2016 que, resumidamente, "congela" as despesas da União por até 20 anos, impedindo que subam acima da inflação.
Algumas das ideias listadas são tentativas de realocação de recursos para investimento em infraestrutura. Ainda que haja uma “boa vontade” no teor do gasto, não há margem fiscal para isso.
As tentativas de driblar o teto de gastos
A IFI listou cinco exemplos de ações que podem ser consideradas mecanismos para driblar a rigidez do teto de gastos, e que começaram antes mesmo da pandemia da Covid-19, que forçou a União a gastar mais e até mesmo aprovar um orçamento de guerra, especial para o período. São eles:
Capitalização de estatais
A capitalização de estatais, como a Empresa Gerencial de Projetos Navais (Emgepron), que recebeu aportes de R$ 10,2 bilhões para adquirir equipamentos para o Ministério da Defesa: gastos com aumento de capital de empresas estatais não dependentes não estão sujeitos ao teto, mas não podem ser usados para se reverter em bens para a administração direta, que tem limitação de gastos.
Fundo privado
A criação de um fundo privado para conversão de multas ambientais, pela MP 900/2019: o desenho proposto previa que o patrimônio do fundo seria dissociado do da União, de modo que os recursos não passariam pelo orçamento público e não estariam submetidos ao controle das regras fiscais. A MP caducou em março de 2020.
Fundeb
A tentativa de destinar parte da ampliação do Fundeb ao programa social Renda Brasil, que ainda nem existe: a medida foi discutida em julho, no fim da tramitação do novo Fundeb na Câmara. Recursos de fundos não estão sujeitos ao teto de gastos, mas as despesas com programas de transferência de renda (como o Bolsa Família, que pode ser substituído pelo Renda Brasil), sim. “O voucher para acesso a creches privadas não existe no modelo atual do Fundeb e sua inclusão seria questionável tendo em vista a natureza assistencial e não propriamente relacionada à manutenção e desenvolvimento do ensino”, aponta a IFI.
Investimentos em infraestrutura
A consulta para aumentar os investimentos em infraestrutura: a Casa Civil teria aprovado uma consulta ao TCU para verificar a possibilidade de usar créditos extraordinários, obtidos para o enfrentamento à pandemia, para viabilizar investimentos em infraestrutura. O teto de gastos abre exceção a créditos extraordinários, que são incluídos no orçamento para cobrir despesas urgentes e imprevisíveis. No caso de 2020, essas despesas estão relacionadas à pandemia e os recursos foram destinados ao pagamento do auxílio emergencial, socorro aos estados e municípios e gastos do SUS.
A ideia para usar parte dos créditos extraordinários para investimentos seria enquadrá-los como despesas de enfrentamento ao coronavírus, o que não constava da PEC do Orçamento de Guerra. “Essa tentativa de expandir o gasto primário à margem do teto, a partir de interpretações extensivas do regime extraordinário da EC 106, demonstra, justamente, que a regra limita a ação discricionária do governo. Contrariar esse espírito do Orçamento de Guerra seria muito negativo e sintomático do que estaria por vir quanto ao compromisso com a responsabilidade fiscal”, aponta a IFI.
Uso de dotações canceladas e do Bolsa Família
O uso de dotações canceladas e do Bolsa Família: ainda há dúvidas sobre como aproveitar o espaço fiscal gerado no teto de gastos para esse ano por causa de cancelamentos de dotações orçamentárias. Isso ocorre porque parte das despesas com enfrentamento da pandemia tem como fonte o cancelamento compensatório de outras ações previstas, o que daria uma folga entre o teto e a projeção de gastos que ficariam sob essa régua.
No caso do Bolsa Família, muitos beneficiários do programa acabaram migrando para o auxílio emergencial, que pagava pelo menos R$ 600, em vez dos R$ 200 médios do BF. “Isso derrubou a execução orçamentária das dotações do Bolsa Família”, aponta a IFI. A folga na dotação do programa é meramente contábil, estimada em R$ 9,5 bilhões pela IFI.
O TCU se manifestou em agosto sobre a possibilidade de o governo usar essa “sobra” das dotações orçamentárias. O entendimento é de que poderia, desde que o dinheiro fosse destinado a ações de enfrentamento da pandemia ou que fosse usado pela mesma área da despesa cancelada. “A deliberação do TCU, portanto, vai na contramão do que pretenderia o governo, isto é, utilizar os créditos excedentes para investimentos em infraestrutura”, diz a IFI.
Para a IFI, essas tentativas todas acabam criando uma “atmosfera insalubre para a política fiscal”, porque não respondem a perguntas sobre a necessidade de uma expansão fiscal para além da pandemia ou fora da principal regra da União.
“No passado recente, a contabilidade criativa e a tentativa de evidenciar uma situação fiscal diferente da realidade tiveram consequências adversas para o país. Basta rememorar o expediente dos descontos realizados na meta anual de resultado primário, amplamente documentado por especialistas, à época”, ponderam os economistas.
Dificuldades com regras fiscais não se restringem ao teto
O estudo também ressalta que essa dificuldade em cumprir as regras fiscais não é exclusividade brasileira, mas que o país tem um histórico ruim nesse quesito, como as diversas alterações na meta de resultado primário entre 2001 e 2020. Inicialmente, ela era fixada para permitir a redução da relação entre a dívida pública e o PIB ao longo do tempo, conforme acordado com o FMI em 1999.
Outro ponto levantado é que, desde o ano passado, o país já descumpre a regra de ouro – mecanismo que proíbe que o governo contraia dívidas para bancar despesas correntes, o que só pode ocorrer com aval do Congresso. Para a IFI, não fossem receitas financeiras obtidas com as devoluções do BNDES e transferências do lucro do Banco Central, essa regra já teria sido descumprida há mais tempo.
O problema também não é exclusivo da União. A IFI lembra que um terço dos estados não teria cumprido a obrigação de limitar o gasto com pessoal caso adotassem a metodologia do Tesouro Nacional. “A reação a mudanças na regra de teto levará em conta esse histórico, o que apenas reforça a necessidade de o governo demonstrar compromisso com a sustentabilidade das contas na travessia da crise”, defendem os economistas.
Discussão sobre revisão não pode ser interditada
O trio ainda analisa os riscos embutidos na alteração das regras vigentes para o teto, sem descartar possibilidades de mudança, e considera os efeitos do acionamento dos gatilhos em caso de rompimento do teto. “Evitar a prática da contabilidade criativa e preservar a essência do teto de gastos são tarefas fundamentais, sem prejuízo de se optar, posteriormente, por um redesenho do arcabouço atual”, apontam.
A avaliação é de que não se deve “interditar” a discussão sobre o teto de gastos e suas regras. Mas é preciso levar em consideração o cenário completo: o relaxamento fiscal, associado ao elevado gasto público motivado pela pandemia da Covid-19, fez a dívida pública disparar.
Ainda que o quadro das contas públicas se beneficie do cenário de inflação e juros baixos, o baixo nível da atividade econômica e os altos déficits primários que devem vir na sequência exigem algum regramento fiscal para conter o ímpeto gastador do governo e que criem uma política que vá fomentar o crescimento.
As notícias recorrentes da busca por meios de driblar o teto de gastos acabam enfraquecendo a credibilidade da política fiscal brasileira, à medida que os agentes econômicos passam a avaliar que as regras atuais são incapazes de acomodar as contas públicas. A reação acaba sendo uma cobrança dos planos do governo para enfrentar o cenário de fragilidade fiscal.
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