A ausência de votações no plenário da Câmara dos Deputados fará uma de suas primeiras vítimas nesta semana: a medida provisória (MP) 992/2020. A medida criou uma linha de crédito com condições melhores destinada às microempresas e empresas de pequeno e médio porte, além de permitir que imóvel financiado pudesse ser usado como garantia de um novo empréstimo.
Editada pelo governo em junho, ela tem eficácia somente até a próxima quinta-feira (12). Como não haverá sessões nesta semana nas duas Casas do Congresso devido às eleições municipais, ela vai "caducar", isto é, perderá sua eficácia.
A caducidade da MP tem a ver com a obstrução no plenário da Câmara. Há semanas, o presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), convoca sessões, mas elas precisam ser canceladas sem que nenhuma votação ocorra devido às obstruções, que vêm sendo feitas pelo Centrão, que faz parte da base do governo, e também pela oposição. A MP – de interesse do próprio governo – estava na pauta de votações, mas nunca foi votada.
A obstrução ocorre por causa de dois motivos. Do lado do Centrão, a disputa é pela presidência da Comissão Mista de Orçamento. O grupo, liderado por Arthur Lira (PP-PB), quer o comando do colegiado. Já o grupo de Rodrigo Maia diz que o comando é seu, conforme acordado no início do ano. A disputa deve fazer com que a comissão nem seja instalada neste ano e que a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) seja votada direto em plenário.
O segundo motivo é o auxílio emergencial. A oposição quer votar a MP que estendeu o auxílio até o fim do ano, mas reduziu seu valor à metade, para R$ 300. Os oposicionistas querem retomar o valor integral, de R$ 600. Para isso, se negam a votar qualquer outro projeto enquanto não se vota a MP do auxílio. O governo é contra mudanças, devido ao seu impacto orçamentário.
Tema central da MP 992: crédito
A MP 992/2020, que caducará nesta semana, criou o Programa de Capital de Giro para Preservação de Empresas (CGPE). O programa mudava regras contábeis para permitir melhores condições de empréstimo às microempresas e empresas de pequeno e médio porte com faturamento de até R$ 300 milhões por ano.
O crédito disponibilizado pela linha devia ser buscado junto às instituições financeiras e só podia ser usado para capital de giro. Os bancos e instituições que fizessem empréstimos por essa nova linha de crédito poderiam utilizar parte das suas perdas para ter benefício fiscal no pagamento do Imposto de Renda e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Essa era uma das novidades da MP, visando destravar os empréstimos.
O prazo mínimo do empréstimo é de 36 meses, com carência mínima de seis meses para o início do pagamento da dívida. O empréstimo tinha de ser liberado de maneira simplificada, sem a exigência de contrapartidas – outra novidade em relação a outras linhas de crédito. O texto deixava a critério dos bancos a taxa de juros a ser cobrada.
O governo esperava que R$ 120 bilhões viessem a ser emprestados sob essas condições. Os financiamentos poderiam ser contratados até 31 de dezembro de 2020, caso a MP tivesse sido aprovada pelo Congresso.
Imóvel como garantia duas vezes
Além de criar o programa de crédito, a MP permitia que um imóvel financiado pudesse ser usado como garantia de um novo empréstimo com o mesmo banco do financiamento. O objetivo do governo com essa medida foi tentar reduzir os juros num momento de crise. A expectativa do Ministério da Economia e do Banco Central é que a medida injetasse R$ 60 bilhões na economia.
“O artigo 14 da MP permite o compartilhamento da alienação fiduciária para a tomada de um segundo crédito. Por exemplo, eu compro um imóvel no valor de R$ 700 mil, pago R$ 500 mil à vista e financio R$ 200 mil. Eu posso usar esse mesmo imóvel para contrair outro crédito. Mas precisa existir uma diferença entre o valor da dívida e do imóvel [não necessariamente no percentual do exemplo]. Se não existir diferença, você não tem lastro e o banco não autorizará o novo empréstimo”, explica a advogada Ana Carolina Osório, sócia do Osório Batista Advogados.
Ela ressalta que é decisão da instituição financeira decidir qual o valor desse lastro e autorizar o novo empréstimo ou não. Como a MP vai caducar, os empréstimos dando o imóvel com segundo garantia poderão ser feitos somente até quinta-feira (12).
"Jabuti" permitia protesto de dívida em imóvel que não fosse garantia
O deputado federal Glaustin da Fokus (PSC-GO), relator da medida provisória 992/2020, incluiu em seu parecer um "jabuti" – isto é, um dispositivo sem relação com o objeto original da MP – que mudaria a dinâmica do protesto de dívidas em cartório.
Ele acolheu uma emenda do deputado Geninho Zuliani (DEM-SP) para permitir que o cartório, a pedido do credor, registrasse a dívida do devedor em imóveis ou veículos dos devedores, mesmo que esses bens não tenham sido dados em garantia de nenhuma operação.
Com isso, esse bem ficaria “sujo” até que a pessoa pagasse a dívida ou esta caducasse, o que dificultaria, por exemplo, a venda desse bem. A pessoa não perderia o bem, já que ele não é garantia da operação. Seria apenas uma forma de tentar pressionar o devedor a pagar a dívida.
Hoje a lei de protesto de títulos não permite a averbação (registro) de dívida em bens que não tenham sido dados como garantia. Os protestos de títulos são feitos atualmente nos chamados cartórios de nota. O artigo incluído na MP 992 mudaria a lei de protesto.
Segundo o relator, a ideia é “consoante com as modernas aspirações de desburocratização e eficiência negocial, permitindo o aproveitamento da estrutura cartorial e de seu papel no que concerne à publicidade dos atos jurídicos para propiciar uma forma alternativa de tutela do crédito, que apresenta vantagens para o sistema creditício como um todo”.
A advogada Ana Carolina Osório, sócia do Osório Batista Advogados, explica que o objetivo do artigo era dar maior efetividade ao instrumento de protesto de dívidas em cartórios.
“O artigo traz bastante eficácia ao instrumento do protesto, pois no momento que a dívida é averbada [registrado] no imóvel, isso faz com que o devedor tenha muito mais interesse em pagar esse débito”, afirma. Se a MP fosse aprovada, explica a advogada, caso o devedor quisesse dar o imóvel como garantia em outro empréstimo, não conseguiria, já que o bem teria uma dívida protestada.
Ainda segundo Ana Carolina, o registro da dívida no imóvel ou veículo só poderia ser feita a pedido do credor. Caso o credor não pedisse, não haveria o registro. Já a retirada da averbação teria que ser feita a pedido do devedor, quando a dívida fosse quitada ou viesse a caducar. “O cartório só age quando provocado.”
Por isso, o artigo estava sendo visto como uma medida em benefício dos cartórios, que receberiam quando os credores protestassem títulos e também quando a dívida fosse paga.
A sócia da Osório Batista Advogados, contudo, não vê ilegalidade nos artigos, e afirma que poderiam ser uma boa medida para combater os chamados devedores contumazes, ou seja, aqueles que ficam devendo de propósito, normalmente em valores altos, mesmo tendo capacidade de arcas com suas dívidas.
Como a MP perderá a eficácia, esse artigo nem sequer entrará em vigor.
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