O laboratório de biologia robótica da Universidade de Washington, em Seattle, Estados Unidos, não é exatamente futurista. Está bem longe de um cenário de “Black Mirror”, a série sensação da Netflix que fala de tecnologias ultravanguardistas. É uma sala de paredes brancas, um tanto bagunçada e com equipamentos espalhados pelas mesas. Mas lá, o engenheiro elétrico americano Howard Chizeck conduz um experimento sci-fi. Um voluntário veste um capacete com eletrodos, daqueles usados em exames de eletroencefalograma (que detectam problemas neurológicos). Então ele senta em frente a uma tela e começa a jogar Flappy Whale, um game popular nos EUA em que uma baleia precisa passar por obstáculos. Repentinamente, nomes de bancos americanos começam a piscar na tela: Citibank, Wells Fargo, Chase... É tão rápido que o voluntário mal percebe, caso não esteja atento.
Um site americano de tecnologia, o Motherboard, questionou o que são essas inserções –ao estilo Jequiti no SBT. Chizeck é direto: “É assim que os hackers vão inserir imagens no seu cérebro para extrair o que você está pensa sobre elas”. O dono do Citibank certamente adoraria saber de seu apreço pela marca. “As pessoas mentem, seus pensamentos, não”, disse o pesquisador em um artigo para a universidade.
Aparelhos para ler o cérebro
O trabalho de Chizek e sua equipe soa como fora da casinha. Não é de todo. Os americanos projetam ali a segurança de um futuro que pode estar mais próximo do que se imagina: aquele em que as máquinas serão capazes de “ler” os pensamentos. Ou quase isso: de decodificar parte das infinitas informações que o nosso cérebro produz. Ele não está só nesta corrente.
Há exatamente um ano, a Toyohashi University of Technology, uma universidade de tecnologia sediada em Tóquio, Japão, publicou um estudo em que mostra um método de leitura parcial do cérebro. Os japoneses colocaram capacetes de eletroencefalograma em diversos voluntários e pediram para que eles pensassem em números de 0 a 9 e em algumas sílabas específicas do idioma japonês. Enquanto isso, eles monitoravam que áreas cerebrais eram ativadas. Em seguida, os pesquisadores tentavam “adivinhar” que número ou sílaba os voluntários estavas pensando apenas observando suas movimentações cerebrais. Com esta técnica, conseguiram chegar a resultados surpreendentes: 90% de acerto nos números e 60% nas sílabas.
Não foi o primeiro experimento do tipo. Na verdade, já há produtos com este princípio nas prateleiras. Uma empresa austríaca chamada Guger Technologies, por exemplo, criou há 8 anos um sistema chamado IntendiX, voltado para pacientes com dificuldades motoras – como no livro/filme “O Escafandro e a Borboleta”. O usuário compra um kit com um capacete cheio de eletrodos ligados a um computador. As imagens de letras piscam rapidamente na tela e o usuário se concentra para escolher a que quer. Uma leitura combinada de olho e impulsos cerebrais ajudava a pessoa a se comunicar, ainda que de uma forma vagarosa. Logo depois vieram as versões para que os deficientes possam transformar textos em conversa, imprimir documentos ou disparar alarmes. Hoje, a empresa austríaca já tem um kit sem fio à venda, que torna o equipamento bem mais prático. A Guger, porém, evita falar de preços.
Ambos os trabalho têm um pontos em comum (além de serem desenvolvidos para beneficiar deficientes): conectam um aparelho ao cérebro para tentar extrair as informações que o órgão produz. É o que no jargão técnico se chama Interface Cérebro-Computador (ICC). E há até uma versão brasileira destes equipamentos.
Um avanço brasileiro
Foi uma surpresa para a maioria dos brasileiros quando o cientista Miguel Nicolelis foi citado, no início da década passada, como um dos 20 mais influentes do mundo pela “Scientific American”, uma das revistas mais respeitadas do meio. Mas não para a comunidade científica, que já olhava atenta o trabalho do paulista no desenvolvimento de uma ICC capaz de fazer pessoas com paralisia movimentar membros. O fruto desta labuta extensa de duas décadas talvez tenha sido o único motivo real de orgulho para os brasileiros na Copa de 2014, aliás. Um exosqueleto desenvolvido por ele durante duas décadas foi usado na abertura do Mundial realizado no Brasil. O equipamento conectava o cérebro de um deficiente a um computador, que enviava ordens diretamente para a armadura. Um pontapé inicial simbólico, dado por uma pessoa paralisada da cintura para baixo, marcava o avanço significativo – é bem verdade que tal demonstração ocupou apenas dois segundos na cerimônia, tempo infinitamente menor do que aquele gasto com os replays dos gols alemães no fatídico 7 a 1.
Não parou por aí. Nicolelis, um professor da renomada Duke Unuiversity, nos Estados Unidos, trabalha agora em uma rede conectada de cérebros, uma brainet. Ele criou o primeiro computador capaz de fazer isso. Nos testes realizados, macacos e ratos foram conectados por um chip para executar uma mesma atividade motora, de forma simultânea. Em alguns casos, as redes tiveram performance superior à de um animal, individualmente, como se houvesse sido criado um super-cérebro. Nicolelis espera com isso impulsionar o campo da Medicina, sua principal área de atuação. Em entrevista ao jornal britânico The Guardian, ele deu como exemplo que um paciente que sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) poderia ter seu cérebro conectado diretamente com a área relativa à linguagem de um paciente saudável. Desta forma, a recuperação seria acelerada.
Tão avançada quanto uma rede de cérebros conectados, é um trabalho com leituras mais complexas. Cientistas da Carnegie Mellon University (CMU) disseram ser capazes de decodificar pensamentos complexos usando uma máquina de ressonância magnética. É que o pensamento humano é bem mais complexo do que adivinhar números ou sílabas. Uma palavra, por mais simples que seja, carrega mais informações do que seu significado em si, para os pesquisadores. Por isso eles decidiram tentar descobrir o significado desses blocos de informações. A equipe da CMU descobriu que os “blocos de construção” que a mente usa para construir pensamentos são compostos de conceitos, em vez de serem baseados nas próprias palavras. Isso sugere que o cérebro processa conceitos de maneira universal, independentemente da língua e cultura de uma pessoa.
“Um dos grandes avanços do cérebro humano foi a capacidade de combinar conceitos individuais em pensamentos complexos, pensar não apenas em ‘bananas’, mas ‘eu gosto de comer bananas à noite com meus amigos’”, disse Marcel Just, líder pesquisador do estudo, ao The Guardian. “Nós finalmente desenvolvemos uma maneira de ver os pensamentos dessa complexidade no sinal da ressonância magnética funcional. A descoberta dessa correspondência entre os pensamentos e os padrões de ativação cerebral nos diz do que os pensamentos são construídos”, conta.
Para o estudo, os cientistas mostraram aos voluntários 239 “eventos complexos” – como “uma pessoa gritando em um tribunal. Eles então usaram inteligência artificial para detectar como estes eventos eram entendidos pelo cérebro. Um último evento era extraído apenas do cérebro. Ou seja, o voluntário pensava em algo e a máquina cruzava as informações de áreas ativadas para gerar a imagem do que ele estava pensando. Segundo a CMU, a taxa de acerto chegou a 87%. “Nosso aproveita a característica da ressonância magnética de unir os sinais que emanam de eventos cerebrais que ocorrem simultaneamente, como a leitura de duas palavras sucessivas em uma frase”, diz Just. “Esse avanço possibilita, pela primeira vez, decodificar pensamentos contendo vários conceitos. É disso que a maioria dos pensamentos humanos são compostos. O próximo passo pode ser decodificar o tipo geral de tópico sobre o qual uma pessoa está pensando, como geologia ou skate. Estamos no caminho de montar um mapa de todos os tipos de conhecimentos no cérebro”, aponta, sem muita modéstia.
Uma nova visão de ética
Enquanto Mark Zuckerberg, o poderoso CEO do Facebook, sentava-se diante do Congresso norte-americano para tentar justificar a (pouca) segurança dos dados em sua rede social, no início do mês, neurocientistas e estudiosos já estavam avançados em questões ainda mais preocupantes. Uma coisa é ter medidas de segurança sobre aquilo que digitamos em um aparelho, dados que preenchemos em um formulário ou até o que falamos em uma gravação. Outra, totalmente diferente, é ter controle sobre o que se pensa. E é aí que a “leitura da mente” começa a se tornar algo bem mais sombrio do que entusiasmante.
Em um relatório intitulado “Engineering the Brain”, cinco neurocientistas americanos destacam que “uma vez que as ICM são capazes de realizar uma extração direta de informações do cérebro, as pessoas estarão inconscientes da quantidade e do tipo de informação obtida de seus pensamentos”. Estes equipamentos podem revelar, por exemplo, a veracidade daquilo que a pessoa diz, seus traços psicológicos, estado mental ou até atitudes em relação a outras pessoas. Os sinais neurais podem ser usados para diversos fins, prosseguem os pesquisadores – de marketing ultra-agresivo (como o citado no início do texto) a ações discriminatórias (uma pessoa pode ser afastada de seu trabalho por pensar diferente sobre determinadas ações da empresa).
“A linguagem e a comunicação não-verbal são os meios hoje para entender a mente de alguém. A pessoa precisa se comunicar. Mas, na medida em que a tecnologia se desenvolve, veremos essa capacidade de observar diretamente o cérebro das outras pessoas”, explica por e-mail Kathinka Evers, neurocientista da Universidade Uppsala, na Suécia. Com um parceiro argentino, Mariano Sigman, professor das universidades FCEN e Torcuato di Tella, ela desenvolve estudos sobre o risco desta interação. “Agora pense em uma fonte externa que obtém o controle de uma interface em uso. O padrões de comunicação sem fio nestes aparelhos expõe os usuários à interferência de outros. Imagina um empregador antiético, um governo autoritário ou qualquer outro ator mal-intencionado em posse das suas informações cerebrais?”, questiona.
É uma preocupação também de Nicolelis. “Uma vez que os cérebros estejam conectados, eles podem se tornar um sistema hackeável, no qual os pensamentos e ações dos indivíduos conectados podem ser acessados e manipulados, escreveu em artigo do Wall Street Journal em outubro do ano passado. “Imagine se essa arma for real em vez de virtual – uma realidade que pode estar chegando. Os usos militares das interfaces cérebro-máquina devem ser banidos pela comunidade internacional, juntamente com armas químicas e de destruição em massa”, completa o cientista brasileiro.
E, caso isso ocorra? “Tem as responsabilidades moral e legal, inclusive sobre se temos menos controle sobre nossos pensamentos. O usuário é o responsável por todas as ações do dispositivo? Nosso sistema legal e moral precisará ser readaptado a este cenário”, defende , Kathinka Evers.
A preocupação é ainda mais profunda do que aquelas expostas no recente inferno astral do Facebook. Em tempo, a rede social é uma das que tem investido nas pesquisas de leitura mental, assim como outras gigantes na berlinda da segurança de dados, como o Google. Em 2017, Zuckerberg apontou que a “telepatia é o modo de comunicação mais de vanguarda” em uma conferência.
Pelo sim ou pelo não, é melhor estar preparado
É um tema controverso. Embora as pesquisas avancem, estão longe de ser consenso na comunidade científica. “Tem muita gente trabalhando com pesquisa, muita coisa acontecendo com bastante velocidade, mas ainda assim temos que pensar que é tudo muito complexo. Surgem resultados e uma série de publicações e os mais otimistas vão logo achando que amanhã vamos ler a mente das pessoas”, aponta o neurocientista Fernando Louzada, professor da UFPR e pós-doutor pela universidade de Harvard. “Eu sou um pouco mais cuidadoso. O primeiro passo é tentar entender o que esses sinais [cerebrais, captados pelos equipamentos] nos fornecem. Não é como se você estivesse extraindo um filme de dentro da cabeça das pessoas. E não é nada disso. É muito indireto”, aponta.
“As técnicas de leituras, como as modernas neuroimagem funcional (NIRs), mostra se a região está mais ou menos ativa naquele determinado momento. Coloco você para pensar alguma coisa e vejo que região está com maior ou menor atividade. O NIR vê quanto de hemoglobina está sendo carregada e o quanto está sem oxigênio. Estamos falando de atividade neuronal a partir da ligação de oxigênio com hemoglobina. Daí a falar que se está lendo o cérebro de uma pessoa é uma caminhada enorme. E qual é essa caminhada? Coloco você para pensar em diversos itens: banana, carro, etc. Vou guardar essa informação para quando perceber uma atividade que similar saber que você está pensando em uma banana, por exemplo. Mas as pessoas são muito diferentes, os contextos são muito diferentes. Então ainda estamos caminhando nessa história. A ideia que o público leigo tem é que se consegue extrair palavras. O que você vê são as atividades elétricas. Mas isso está muito longe da representatividade das imagens que estão ocorrendo na cabeça”, aponta.
Que a caminhada é longa, é um ponto de consenso. Se vai haver chegada é que é a dúvida. Pelo sim ou pelo não, é melhor estar preparado. “Temos bem pouco tempo, na verdade. Se não colocarmos isso na agenda já, será tarde”, defendeu Chizeck ao Motherboard.
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