A Volkswagen estava a pouco mais de um mês da maior crise de sua história quando Oliver Schmidt, engenheiro do alto escalão da montadora que lidava com os reguladores do governo norte-americano, escreveu um e-mail para seus superiores garantindo que tudo estava bem.
Schmidt havia acabado de se reunir com Alberto Ayala, vice-diretor executivo do Comitê de Recursos Aéreos da Califórnia, a agência que garante a qualidade do ar no estado. Por mais de um ano, Ayala pedia para que a Volkswagen explicasse por que seus carros a diesel poluíam muito mais no dia a dia do que nos testes de laboratório feitos na Califórnia.
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O e-mail de Schmidt, que não havia sido divulgado anteriormente, foi datado de 5 de agosto de 2015. Horas antes, em Michigan, Schmidt havia apresentado a Ayala as informações que visavam oferecer uma solução para o problema das emissões.
A reunião “foi muito bem”, afirmou Schmidt. Contudo, ele destacou que a informação que havia encontrado poderia encontrar “resistência” quando fosse examinada pelos especialistas do laboratório do Comitê de Recursos Aéreos, nos arredores de Los Angeles.
Resistência foi pouco
Os especialistas logo concluíram que as informações técnicas apresentadas por Schmidt eram as últimas em uma série de manobras realizadas pela montadora para esconder seus delitos. Algumas semanas mais tarde, a Volkswagen admitiria que os carros a diesel que vendeu nos EUA desde o fim de 2008 continham um software projetado para camuflar as emissões que excediam em muito os limites legais.
As notícias a respeito do escândalo se concentraram em torno do pecado original da Volkswagen: a decisão tomada pela empresa em 2006 de equipar os carros a diesel com o software ilegal.
Contudo, o aspecto mais caro do delito da Volkswagen foi a estratégia da empresa para acobertar tudo, depois que os reguladores começaram a ficar desconfiados.
A reconstrução a seguir, baseada em entrevistas com dezenas de participantes e uma revisão de documentos internos e comunicações da Volkswagen, mostra que eles acobertaram o problema por anos, até os últimos dias antes de as mentiras da empresa serem reveladas. Seus funcionários não apenas manipularam o software do motor, como também geraram uma enorme quantidade de dados falsos para esconder o fato de que milhões de veículos foram propositalmente alterados para enganar os reguladores e liberar gases tóxicos no ar.
Documentos e entrevistas também revelam mais a respeito do papel de Schmidt, o chefe de adequação da Volkswagen, que até o momento foi o único executivo da empresa a ir parar atrás das grades. Preso ao visitar os EUA no Natal de 2016, Schmidt está aguardando julgamento sem direito a fiança por fraude e conspiração em Detroit.
Schmidt afirma que foi enganado por outros engenheiros da Volkswagen e pelos advogados da empresa.
O Alarme Começa a Soar
Era curioso ver aqueles alunos de pós-graduação da Universidade da Virgínia Ocidental passeando pelas rodovias da Califórnia no primeiro semestre de 2013.
A traseira de seu carro, uma perua Volkswagen Jetta, havia sido equipada com um emaranhado de canos e mangueiras. Tubos flexíveis recolhiam os gases do escapamento e enviavam o gás para uma caixa cinza instalada em uma tábua no porta-malas do carro. Instalados na tábua estavam um gerador portátil necessário para tudo funcionar.
Os estudantes, Hemanth Kappanna e Marc Besch, estavam testando as emissões de óxidos de nitrogênio do Jetta, uma família de gases que contribui para o aquecimento global. Trabalhando com a apertada verba de pesquisa de US$ 70 mil, Kappanna, Besch e outros membros da equipe da Universidade da Virgínia Ocidental deram início a uma cadeia de eventos que expôs a conspiração da Volkswagen para esconder as emissões.
No início de 2014, os alunos de graduação e seus professores publicaram um relatório que expôs o comportamento estranho dos carros a diesel da Volkswagen. Na sede da Volkswagen em Wolfsburg, Alemanha, os alarmes começaram a tocar.
Em maio de 2014, depois de examinar o estudo, Bernd Gottweis, diretor de segurança de produtos da Volkswagen, escreveu um relatório de uma página. Ele foi incluído no pacote que os assessores deram para Martin Winterkorn, o executivo-chefe da Volkswagen, ler durante o fim de semana.
Gottweis afirmava que o Volkswagen Jetta testado pela equipe da Universidade de West Virginia havia emitido de 15 a 35 vezes mais que as quantidades permitidas de óxidos de nitrogênio durante os testes na estrada. Um Volkswagen Passat apresentou resultados de 5 a 18 superiores ao limite. Contudo, os mesmos automóveis eram aprovados nos testes realizados em laboratório.
“Não é possível dar uma explicação convincente desse aumento dramático nas emissões de NOx para as autoridades”, afirmou Gottweis, utilizando o termo técnico para óxidos de nitrogênio. “Pode-se presumir que as autoridades irão investigar os sistemas da VW para determinar se a empresa desenvolveu um sistema de detecção de testes no software da unidade de controle do motor (também conhecido como dispositivo manipulador).”
Um Alerta Claro
O memorando de Gottweis era um alerta claro às instâncias mais altas da gestão sobre os riscos de que a Volkswagen tivesse sido pega utilizando um dispositivo manipulador ilegal.
Uma apresentação interna na Volkswagen, preparada logo depois que os executivos ficaram sabendo dos testes da Universidade da Virgínia Ocidental, discutia uma série de estratégias que a empresa poderia adotar para se livrar das suspeitas. Uma opção seria a Volkswagen simplesmente se negar a reconhecer o problema. Outra seria oferecer uma atualização para o software do motor. Contudo, a atualização não diminuiria as emissões para os níveis exigidos, afirmava a apresentação. No pior caso, a empresa poderia admitir que havia um problema e comprar de volta os carros a diesel vendidos nos Estados Unidos.
“Em primeiro lugar é preciso estabelecer que somos honestos”, escreveu Schmidt para um colega, de acordo com o processo contra ele. O comentário foi citado como evidência de que Schmidt tinha ciência de que a Volkswagen tinha algo a esconder.
Ayala, do Comitê de Recursos Aéreos da Califórnia, ou CARB, na sigla em inglês, ficou incomodado o suficiente com os resultados para dar início a uma pesquisa mais intensa, tirando vantagem do fato de o comitê ser uma instituição do governo. Ayala recolheu uma pequena frota de carros da Volkswagen para testar.
Os testes confirmaram que alguma coisa estava errada, mas não explicavam por quê. A Volkswagen, que conta com uma instalação técnica em Los Angeles, realizava os próprios testes.
“Para cada resposta que obtínhamos, apareciam outras questões”, afirmou Ayala.
Enquanto o jogo de empurra-empurra se arrastava sem uma solução, Ayala ficou impaciente. Os representantes da Volkswagen davam respostas que os reguladores consideravam evasivas, sem sentido, ou desconsideradas. Os testes do CARB estavam errados, se queixava a Volkswagen.
Para tentar resolver o embate, autoridades de ambos os lados realizaram uma conferência em primeiro de outubro de 2014. Os representantes da Volkswagen incluíam Schmidt e Stuart Johnson, um americano que era o segundo na linha de comando. Os executivos da Volkswagen revelaram um plano de recall para atualizar o software do motor dos carros a diesel a partir dos modelos de 2009.
O recall planejado parecia ser uma concessão da Volkswagen, mas não tinha o objetivo de funcionar como tática para atrasar o processo. A empresa ainda não tinha fornecido uma explicação honesta para o excesso de emissões. Ao invés disso, afirmou às autoridades do CARB que “o novo software incorpora as experiências de engenharia mais recentes para melhorar a eficiência” do equipamento de controle de poluição.
Aceitando as garantias da Volkswagen de que o recall resolveria o excesso de emissões, as autoridades do CARB e da Agência de Proteção Ambiental dos EUA permitiram que os modelos a diesel de 2015 fossem colocados à venda.
A Volkswagen fez a atualização do software em 280 mil veículos. Depois disso, os carros passaram a poluir menos que anteriormente, mas a atualização não removeu o software ilegal, nem deixou as emissões dentro dos limites legais. Na verdade, a Volkswagen usou o recall descaradamente para melhorar a capacidade do software de reconhecer quando o carro estava sendo testado.
Em junho de 2015, os testes do CARB mostraram que o recall e a atualização do software não haviam resolvido o problema do excesso de poluição. A produção de óxidos de nitrogênio aumentava após 23 minutos de direção, afirmava o CARB, um minuto após o fim do ciclo de testes padrão.
O comitê exigiu que a Volkswagen mostrasse o código fonte do software do sistema de controle de emissões nos modelos 2016. Queria também ver o código fonte dos modelos anteriores. Se a Volkswagen não atendesse a esse pedido, a agência não aprovaria a venda dos modelos 2016 na Califórnia.
Em Wolfsburg, um comitê da Volkswagen discutia a crise crescente nos Estados Unidos durante uma reunião em 12 de julho de 2015. O comitê decidiu criar uma força tarefa para promover “uma resolução rápida e eficiente do problema com as autoridades”, de acordo com um memorando interno.
No dia 5 de agosto, Schmidt, que em março do ano anterior havia se mudado para trabalhar no desenvolvimento de motores em Wolfsburg, e Johnson, que o havia substituído como chefe de adequação nos Estados Unidos, pediram para se reunir com Ayala em Traverse City, Michigan.
De acordo com Ayala, Schmidt e Johnson chegaram com uma pasta grossa contendo informações técnicas e passaram duas horas examinando os documentos com ele.
Depois de voltar para a Califórnia, Ayala entregou a pasta com as informações técnicas para sua equipe.
Uma semana depois, os engenheiros de adequação voltaram com os resultados da análise. As informações fornecidas pela Volkswagen não faziam sentido. Restava apenas uma explicação, afirmaram os engenheiros.
“Essa foi a primeira vez que ouvi as palavras ‘dispositivo manipulador’. Isso explicava tudo”, afirmou Ayala.
No dia 18 de agosto, Johnson abordou Ayala em uma conferência do setor na Califórnia.
Johnson admitiu a Ayala que os carros da Volkswagen continuam um dispositivo manipulador. Ele ficou furioso.
“Eles gastaram nosso tempo. Aquilo teve um impacto muito significativo e muito real em todos nós”, afirmou Ayala.
No dia 3 de setembro de 2015, a Volkswagen admitiu formalmente aos reguladores que 500 mil veículos a diesel vendidos nos Estados Unidos contavam com duas calibragens, uma para testes e outra para a operação normal dos veículos. Winterkorn deixou o cargo antes do fim do mês, embora insistisse que não tinha ciência do problema.
A pesquisa que começou com uma bolsa de US$70 mil acabou custando à Volkswagen mais de US$22 bilhões em multas e acordos judiciais, muito mais do que o custo de equipar os veículos com equipamentos adequados de controle de poluição.
Ninguém ficou mais surpreso com o resultado do que a equipe da universidade. “Nossa intenção não era causar problemas a ninguém”, afirmou Dan Carder, que orientou a pesquisa com os carros da Volkswagen quando era diretor do Centro de Combustíveis Alternativos, Motores e Emissões da universidade. “Só estávamos fazendo nosso trabalho normal.”
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