Linha de montagem da Tesla, em Fremont, Califórnia.| Foto: Noah Berger/Bloomberg

A ideia de que o Vale do Silício poderia reinventar o setor automobilístico da mesma forma que a Apple reinventou o de celulares é atraente e, por algumas métricas, a Tesla fez exatamente isso. As características distintivas da fabricante do Vale do Silício — desempenho empolgante, baterias de longo alcance e interfaces com telas sensíveis a toques — atraíram legiões de fãs e investidores, dando a impressão de que o futuro da indústria automobilística chegou de repente.

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Relatórios recentes colocam esse futuro brilhante em xeque, porém. Após 15 anos, é cada vez mais claro que a Tesla não tem nada a oferecer na área que, como o analista de tecnologia Horace Dediu aponta, é onde “quase todas as inovações significativas acontecem”: o sistema de produção.

A Tesla sempre sofreu com a baixa qualidade de fabricação e falhas no cumprimento dos prazos de produção. Agora, segundo a repórter Lora Kolodny da CNBC, a Tesla conta com operações encarregadas de “retrabalhar” e “remanufaturar” carros e peças de baixa qualidade, mostrando que o problema é mais profundo que a má qualidade em si. Ao fazer isso com veículos após eles saírem das linhas de montagem de sua fábrica em Fremont, na Califórnia, em uma instalação dedicada à remanufatura na cidade vizinha, Lathrop, ou até mesmo em seus centros de serviços, a Tesla está levando a indústria automobilística de volta à idade das trevas.

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Esta já foi uma prática padrão entre as montadoras de Detroit. Guiados pela lógica do sistema de produção de Henry Ford, as fabricantes americanos mantiveram a produção em marcha para maximizar a escala de eficiência, consertando carros defeituosos depois de eles saírem da linha. Apesar de muitos fatores terem contribuído para o declínio dos “Big Three” (General Motors, Fiat e Ford) nos anos 1970 e 1980, a ineficiência e a apatia entranhadas na cultura da companhia com esta abordagem sobre qualidade foram os mais importantes.

Elon Musk, fundador e CEO da Tesla. 

Em contrapartida, os carros da Toyota poderiam não ter o design dramático com tubos cromados ou o desempenho dos V8 de seus concorrentes americanos, mas o lendário Sistema de Produção Toyota (também conhecido como TPS ou “lean”) acabou como retrabalho, e seus carros confiáveis e de alta qualidade arrebataram o mercado de Detroit. Ao eliminar sistematicamente de sua produção toda forma de desperdício — “muda” —, a Toyota percebeu que tanto eficiência como qualidade se beneficiavam enormemente de construir bem os carros na primeira vez.

Por exemplo, a Toyota criou o sistema “andon”, em que um cabo é instalado acima de cada estação de trabalho. Todos os funcionários tinham o poder de puxá-lo quando vissem algum defeito, interrompendo toda a fábrica enquanto uma análise da raiz do problema traçava o caminho dela até a sua fonte.

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Essa prática reflete a abordagem sistemática da filosofia do TPS: em vez de tentar reparar com mais eficiência os defeitos, que, por sua natureza, variam muito e confundem processos padronizados, o modo Toyota enfatiza o conserto da causa do defeito. Melhor parar a produção até a raiz do defeito ser solucionada do que fomentar a indiferença dizendo aos trabalhadores que outras pessoas o consertarão mais tarde.

A Tesla parece desinteressada ou alheia a esta lição histórica. Na última conversa com os acionistas, o CEO Elen Musk disse que a empresa não enxerga o TPS como um modelo para sua companhia, mesmo reiterando seu objetivo de transformar as fábricas da Tesla em um produto comercial.

À medida que os relatórios de problemas de qualidade com o novo Model 3 aumentam, a Tesla reforça sua operação de serviço para reparar os problemas que escaparam até à sua operação de retrabalho. Como é comum para a companhia, o lançamento de um novo carro está sendo acompanhado por uma expansão das equipes de serviço móvel que vão até a casa dos consumidores para fazerem os reparos. O serviço, agora com capacidade para até 230 veículos, ajuda a aumentar os dados de satisfação dos clientes por meio de um serviço personalizado, mas também mostra o desinteresse da companhia em fazer a coisa certa já na primeira vez. Se a história se repetir, a Tesla deve abandonar esse ineficiente serviço móvel assim que as vendas do Model 3 decolarem, deixando, novamente, seus clientes tendo de dirigir longas distâncias até os centros de serviços que já estão reparando um grande volume de veículos antes e depois deles serem entregues.

A arrogância de Musk e sua disposição de jogar pela janela a ortodoxia da indústria automobilística claramente ressoaram junto ao público. E se a Tesla mirou apenas em construir uma marca premium de nicho, touchscreens gigantes, vídeos de aceleração feitos para o YouTube e portas “asas de falcão” já seriam suficientes.

Mas, conforme a empresa almeja preços de varejo mais baixos e volumes maiores, sua atitude ambivalente em relação aos princípios da produção em massa de carros modernos parece cada vez mais capaz de sabotar sua poderosa marca. Como o TPS enfatiza o papel fundamental da cultura na fabricação de alta qualidade e como leva-se muito tempo para mudar uma cultura, a Tesla pode estar diante do mesmo tipo de esforço das fabricantes de Detroit, que demoraram décadas para chegarem a um padrão de qualidade competitivo.

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A mão quente do Vale do Silício em tudo, de smartphones a softwares, parece ter cegado a Tesla para a importância e a dificuldade de fabricar, assim como a cultura e o poder de consumo de Detroit saindo dos anos 1950 e 1960 cegou as fabricantes da época à ameaça posta pela indigesta excelência em fabricação da Toyota.

* Niedermeyer, analista da indústria automobilística, é co-fundador do Daily Kanban e ex-editor do blog The Truth About Cars.