Em meados de abril, Mark Zuckerberg abriu a F8, conferência anual para desenvolvedores do Facebook, prometendo um futuro livre de smartphones. Para o executivo, a próxima onda, o que virá para substituir essas telinhas conectadas que carregamos no bolso, será a realidade aumentada. Ainda não há forma nem aplicações relevantes para a tecnologia, mas já é possível extrapolar as possibilidades e imaginar como o futuro poderá ser.
Facebook vai transformar o seu celular em uma plataforma de realidade aumentada
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Realidade aumentada não é, em si, um conceito novo. Há quase uma década, quando o smartphone era novidade e ainda precisava se provar, algumas aplicações para os antigos celulares da Nokia já empregavam a tecnologia. Em uma delas, por exemplo, o usuário conseguia saber, graças a placas virtuais, a localização física de restaurantes e outros estabelecimentos comerciais no campo de visão exibido na tela.
Grosso modo, realidade aumentada consiste em sobrepor elementos virtuais ao mundo físico. Frequentemente, com o auxílio de uma câmera que, até o momento, tem como suporte smartphones ou óculos especializados.
O conceito divide espaço e atenções com a realidade virtual, que suprime o ambiente físico e joga o usuário em universos virtuais. Uma promessa de longa data, desde as primeiras experiências do pioneiro Jaron Lanier na década de 1980, foi só no começo dos anos 2010 que a tecnologia atingiu a maturidade para permitir a fabricação de capacetes convincentes – e que não causassem enjoo nos usuários.
Em 2010, Palmer Luckey, então 17 anos, juntou peças de smartphones e criou, em casa, o Oculus Rift, precursor dessa nova leva de capacetes de realidade virtual. Sua empresa foi comprada por US$ 2 bilhões pelo Facebook.
Apesar da competição e de a realidade virtual estar mais madura com produtos de empresas como Facebook, Valve e Samsung já disponíveis no mercado, analistas como Benedict Evans, da empresa de capital de risco a16z, de São Francisco, apostam na realidade aumentada como a próxima grande interface. Há a tecnologia, os incentivos na indústria e boas ideias; tudo está alinhado.
Parte desse entusiasmo deriva de uma extensão do entendimento do que será a realidade aumentada. Diferentemente daquelas primeiras aplicações, a aposta é de que, além de incluir elementos virtuais no mundo real, os dispositivos terão “consciência” do que está ao redor graças à aprendizagem de máquina, computação visual e outros avanços recentes da tecnologia.
Em um artigo publicado recentemente, Evans argumenta que ainda estamos num momento bastante incipiente dessa revolução iminente. “Com a verdadeira realidade aumentada” ou realidade mista (termo que a Microsoft adota), diz, “os dispositivos começam a perceber o que está ao redor e a colocar coisas no mundo de tal forma que se você suspende a descrença, consegue imaginar que eles estão ali mesmo.”
O mundo é uma tela
Quando foi processada pela Apple por copiar os produtos da rival, em 2011, a Samsung levou ao tribunal cenas do filme 2001: Uma Odisseia no Espaço para provar que a ideia do tablet moderno precedia o iPad. A Apple alegava que o design do Galaxy Tab havia se inspirado demais no do seu produto; a Samsung, por sua vez, dizia que a sétima arte já havia antecipado o formato décadas antes, em 1968.
O argumento não colou, mas é um belo exemplo de como a ficção é, comumente, terreno fértil para vislumbrar o impacto que tecnologias incipientes no mundo real terão nas nossas vidas quando elas estiverem consolidadas. Se a realidade aumentada realmente seguir por esse caminho, respaldo na ficção ela já tem.
No episódio “White Christmas” do seriado Black Mirror, as pessoas podem ser “bloqueadas” na vida real. Em vez de enxerga-las normalmente, alguém bloqueado aparece como uma TV analógica fora de sintonia, a silhueta sendo o único aspecto que denuncia que ali há uma pessoa. Se as promessas da indústria se concretizarem, e há sinais de que isso acontecerá, esse cenário apresentado pelo seriado inglês será perfeitamente possível.
O conceito de bloquear alguém, tão comum em redes sociais, ganha outra dimensão quando se materializa no mundo real – quando o ato é ressignificado de modo quase literal, com a pessoa bloqueada de fato do seu campo de visão. O mesmo ocorre com as informações passíveis de serem extraídas e processadas derivadas das relações entre o real e o virtual. As possibilidades (e os riscos) aumentam exponencialmente.
Situações corriqueiras, como encontrar alguém e não se lembrar quem é aquela pessoa, serão coisas do passado. Evans imagina, nesse caso, uma reunião onde “eu consigo ver um cartão do perfil do LinkedIn em cima da sua cabeça, ou uma anotação da Salesforce me dizendo que você é um cliente-chave em potencial ou, ainda, um aviso do Truecaller dizendo que você tentará me vender um seguro e que eu devo evitá-lo.”
Note que todos os nomes dos exemplos dele são de aplicativos para smartphones. Com a realidade aumentada, o mundo vira uma grande tela onde cabem os apps que já usamos, porém aumentados – não só em tamanho de tela, mas em potencialidades. E, claro, temos as aplicações inovadoras que o novo formato permitirão e que, nesse ponto, são impossíveis de se prever. Apps como Uber, Snapchat e Waze eram impensáveis antes do smartphone e só se tornaram possíveis por causa dele.
Em sua fala na abertura da F8, Zuckerberg manifestou a ideia de que a realidade aumentada tem potencial para substituir todas as telas com as quais lidamos, incluindo a TV. O problema (ou um deles) é: como controlar essa TV virtual sem que seja preciso andar por aí com um controle remoto enorme na mão?
Anestesiamento comportamental
Entre nós e nossos desejos e o poder computacional bruto que faz funcionar computadores e smartphones, existem camadas de abstração. É preciso abstrair, afinal, que arrastar um objeto na mesa fará mexer um cursor virtual na tela – eis a descrição do mouse.
Temos, ao longo das últimas décadas, reduzido a quantidade dessas camadas. Se nos primórdios da computação era preciso escrever o código do programa para rodá-los e o teclado era o único método de entrada disponível, o futuro aponta para a demolição das últimas camadas de abstração que nos separam da interação direta com o virtual.
O smartphone deu um passo enorme nesse sentido. O toque na tela substituiu o teclado e mouse e, no processo, facilitou tremendamente o acesso à tecnologia para um número maior e sem precedentes de pessoas. Não à toa, o smartphone é o produto tecnológico mais difundido da história – estimativas de Evans apontam cerca de 2,5 bilhões de usuários de smartphones no planeta. Crianças e idosos, por exemplo, gente que jamais tocou em um computador, pegam um tablet e começam a usá-lo com relativa naturalidade.
A realidade aumentada, diminuindo ainda mais a abstração, tem potencial para ir além. Mas, além dos dilemas típicos de mercado – será caro ou acessível? –, outros de ordem conceitual e de usabilidade se apresentam nesse caminho.
Colocaremos elementos virtuais no campo de visão através de óculos? O Google Glass, de 2013, meio que tentou isso e fracassou. As pessoas estranharam e se sentiram incomodadas com o acessório. Apesar do estardalhaço do Google em promover o produto, ele não vingou.
Em 2016, a Snap, empresa dona do Snapchat, lançou um par de óculos batizado de Spectacles. Em alguma medida, ele lembra o Google Glass: ambos filmam e transmitem os vídeos para outras pessoas. A vantagem dos Spectacles, além do visual mais descolado e das funções limitadas, é que ele teve um timing melhor também.
Hoje, estamos mais acostumados ao digital, ao online, às redes sociais e a sermos filmados e fotografados o tempo todo. Se há dez anos sacar o celular à mesa ou durante uma aula era rude, hoje isso foi normalizado, já não incomoda. Talvez hoje sejamos mais receptivos à ideia de óculos como o Google Glass do que éramos em 2013. As dinâmicas do comportamento humano são flexíveis, mudam com o tempo.
Um dos episódios mais lembrados do desenho Futurama parodia o iPhone na forma de um objeto que as pessoas instalam diretamente no olho, o “eyePhone”. Seria, nesse caso por vias tortas, a ficção outra vez prevendo o nosso futuro?
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Todo esse anestesiamento comportamental que ocorre gradualmente na sociedade pode ser útil de outra forma à realidade aumentada, no domínio da interação. Ela ainda é uma incógnita. Não se sabe se teremos um controle especial ou se usaremos as mãos. Ou, ainda, se sensores extremamente precisos captarão o movimento dos olhos para responder aos seus comandos. Outra possibilidade em franco desenvolvimento é a voz.
Falar com entidades incorpóreas já é uma realidade, embora (ainda) seja estranho, bem longe da naturalidade com que o personagem Theodore fala com o sistema inteligente Samantha em Ela, filme de 2013 do diretor Spike Jonze. De qualquer forma, todos os smartphones modernos contam com assistentes pessoais, versões mais rudimentares de Samantha – a Siri no iPhone, o Google Assistant no Android, até o Windows tem a sua, a Cortana.
Com a Alexa, a assistente da Amazon, esses seres virtuais começaram a avançar em direção a outros equipamentos, a dominar o ambiente doméstico. Durante a CES 2017, evento ocorrido em Las Vegas no começo do ano, a assistente da Amazon roubou a cena, aparecendo em toda a sorte de eletrodomésticos como caixas de som, geladeiras, robôs, lâmpadas inteligentes e até em carros. “A Alexa está em todo lugar,” declarou o site americano de tecnologia The Verge; “A Alexa conquistou a CES 2017. O mundo é o próximo,” dizia uma manchete da Wired.
Meio desengonçados e bastante limitados, esses assistentes têm, no mínimo, uma grande tarefa em suas mãos (metafóricas): naturalizar a interface por voz. E eles estão conseguindo.
O que é real?
A indústria da tecnologia vive de fazer apostas. A maioria fracassa, mas algumas são tão grandiosas que mudam a vida de todos no planeta – o computador, a Internet e o smartphone estão aí como provas. A realidade aumentada é uma das maiores dos últimos anos. Na visão de Evans, ela está num estágio bastante inicial, equivalente ao momento pré-iPhone na história dos smartphones. “(...) Já vimos algumas grandes demonstrações e os primeiros protótipos, e não temos ainda um produto comercial de massa, mas estamos próximos.”
Olhar para o que temos atualmente em realidade aumentada é um parâmetro fraco para antecipar o que vem a seguir. Pokémon Go, o jogo de realidade aumentada que foi sensação em 2016, serviu para apresentar a ideia básica às pessoas. Mas ele apenas arranha a superfície das possibilidades.
O próprio uso por muita gente e as dinâmicas de mercado podem mudar tudo da noite para o dia. E as implicações da tecnologia em si, também. Em última instância, porém, a realidade aumentada deve deturpar o sentido do real, gerando novos questionamentos. Na F8, Zuckerberg sugeriu que graças à tecnologia, “você pode colocar outra caneca [na mesa], assim fica parecendo que você não está tomando café sozinho.” Quem quereria isso?
Nitasha Tiku, do Buzzfeed, diz que nesse futuro será ainda mais difícil distinguir o que é real. De repente, apps que corrigem “imperfeições” no rosto e que modulam vozes com efeitos engraçados serão considerados primitivos ante alterações em tempo real no ambiente e cópias fiéis da voz e aparência de gente poderosa. Imagine o estrago dessas aplicações em um contexto de instabilidade política ou ânimos acirrados. No horizonte, desponta um futuro em que a realidade será questionável o tempo todo. Tomara que não acabemos neuróticos ou, para fazer outra relação com a ficção, incapazes de distinguir o virtual como acontece em Matrix.