Chinês paga por uma bebida usando o celular em Shenzen| Foto: Nagarjun KandukuruFlickr

Há dois anos, o deputado federal Reginaldo Lopes (PT-MG) apresentou o projeto de lei 48/2015 que determina a extinção do dinheiro em espécie, ou seja, no formato de cédulas e moedas. As transações financeiras seriam realizadas “apenas através do sistema digital”. Essa proposta, embora talvez pelo instrumento e com o timing errados, já é quase realidade em alguns lugares do mundo. Na China, em menos de três anos o dinheiro em espécie cedeu lugar para o celular.

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Na China, em restaurantes, lojas e até nas caixinhas dos artistas de rua, a opção de pagamento predominante é o celular. Os dois meios de pagamento digitais dominantes são o Alipay e o WeChat, das empresas Alibaba e Tencent, donas de 90% do mercado. De acordo com o New York Times, quando o garçom apresenta a conta, são essas duas opções as oferecidas. O dinheiro em espécie é “uma terceira e remota possibilidade”, segundo Paul Mozur, correspondente do jornal norte-americano.

Mozur morava em Hong Kong e, recentemente, teve que se mudar para Xangai. Por um problema com seu banco, se viu impossibilitado de ativar os pagamentos móveis pelo app do WeChat de imediato. Ele relata que não conseguia usar nenhum dos apps da abarrotada cena de startups de empréstimo de bicicletas e que delivery de comida também ficou fora das suas possibilidades. Tudo está atrelado a pagamentos pelo celular.

Os números referentes a 2016 dão uma dimensão do quão desenvolvido é esse modelo na China. De acordo com a iResearch, em 2016 o país movimento US$ 5,5 trilhões em pagamentos móveis. No mesmo período, nos Estados Unidos o volume ficou em US$ 112 bilhões, ou 50 vezes menor que o chinês.

Rapidez e ausência do cartão

Dois aspectos dessa revolução financeira e cultural na China chamam a atenção. Primeiro, a rapidez: há três anos, o dinheiro em espécie era a norma no país. A outra é a virtual ausência do dinheiro de plástico no cotidiano dos chineses.

Alguns nativos que vivem na China comentaram, no fórum de discussões online Hacker News, que a cultura do país é incompatível com a dinâmica dos cartões, especialmente o de crédito. Um deles escreveu que “a tradição cultural chinesa estimula a economia, não o empréstimo. E pegar pequenos empréstimos é exatamente como o cartão de crédito funciona. Talvez seja por isso que as pessoas daqui não gostam muito dele”.

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O argumento encontra respaldo na academia. À NPR, Cheng Lian, pesquisador da Academia Chinesa de Ciências Sociais explicou que “tradicionalmente, os chineses não gostam de cartões de crédito porque eles não querem ficar devendo a ninguém”.

QR Codes do WeChat e do Alipay<br> 

Se não pegou no passado, hoje há ainda menos incentivos para a adoção em massa do dinheiro de plástico. O custo do pagamento via celular é menor para o lojista e em muitos casos o modelo é mais prático para o usuário. Em vez de uma “maquininha” especializada, os apps Alipay e WeChat funcionam com QR Code, uma espécie de código de barra que é muito popular na China (acima). Basta apontar a câmera para o código do estabelecimento, que pode estar impresso em papel mesmo, e confirmar o valor pago.

Ao New York Times, Shiv Putcha, um analista da consultoria IDC, disse que o pagamento via celular “se tornou o estilo de vida padrão agora. Literalmente toda empresa e marca na China está conectada a esse ecossistema”.

Confiança e privacidade

Na base dessa revolução rápida e avassaladora pode estar a confiança trazida pelo modelo digital. Na cobertura internacional, com frequência é citada a segurança que não carregar dinheiro em papel acarreta – vantagem que também consta na justificação do projeto de lei do deputado Lopes.

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Lin Guangyu, responsável pelos pagamentos de serviços urbanos da Ant Financial, o braço financeiro da Alibaba, diz que “quando criamos o Alipay em 2003, queríamos resolver o problema da confiança entre as pessoas. E resolvendo essa questão de confiança, também resolvemos a questão dos pagamentos”.

Além do Alipay, a Alibaba/Ant Financial oferece outros serviços. Um deles, o Sesame Credit, atribui notas aos cidadãos chineses com base em seus hábitos de consumo e histórico de pagamentos. Mantenha as contas em dia e consuma com frequência, e sua nota será boa. Tipo em um episódio de Black Mirror, a série britânica que apresenta futuros distópicos.

Toda essa estrutura, apesar de futurista e trazer inegáveis vantagens, acarreta preocupações. Uma, a possível marginalização dos que não têm acesso a crédito ou à tecnologia necessária. Outra, o comprometimento da privacidade dos cidadãos chineses. A relação íntima entre as grandes empresas de tecnologia do país e o governo significa acesso desses entes aos hábitos de consumo de milhões de chineses.

Não foi uma lei, mas uma conjuntura que levou em consideração a cultura chinesa e as características do mercado de consumo que potencializaram a disseminação tão rápida e efetiva dos pagamentos móveis no país. Talvez isso sirva de exemplo ao Brasil: se queremos fazer o mesmo, talvez a força da lei para forçar mudanças tão abruptas não seja o melhor caminho.