Imagine que você foi detido na alfândega, esperando para entrar em outro país. Ou talvez que você tenha sido flagrado cometendo uma infração de trânsito. Um policial pega o seu celular e mostra o aparelho para você. “Veja isso. Isso é seu? ", ele pergunta.
Antes de você poder responder ao questionamento, um pequeno sensor infravermelho no celular já digitalizou todo o seu rosto. Combinando essa leitura com a armazenada em seu dispositivo, o celular conclui que o celular é seu e que você está tentando desbloqueá-lo. O dispositivo, então, reduz os mecanismos de defesa e entrega em questão de segundos todo o conteúdo do seu celular para o policial que está segurando o aparelho.
Sem você conseguir dizer uma palavra, o policial já conseguiu tudo o que queria, apenas posicionando o celular em frente ao seu rosto.
Esse é o cenário de pesadelo que alguns especialistas em segurança e privacidade estão criando depois que a Apple apresentou na terça-feira passada o seu novo iPhone X (pronuncia iPhone 10), um dispositivo com poderoso recurso de reconhecimento facial para desbloqueio de tela. A tecnologia de reconhecimento facial, chamada de Face ID pela Apple, substitui o botão home e o leitor de impressões digitais (Touch ID).
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Para todos os efeitos, o Face ID funciona exatamente como seu antecessor, o Touch ID. A única diferença é que, em vez de escanear sua impressão digital, o iPhone X escaneia seu rosto. É uma tecnologia bastante conveniente de usar e, por isso, foi considerada como um mecanismo para aumentar a segurança dos dispositivos, já que diminuiria a frequência de senha fracas, como "121212".
Mas o lançamento do Face ID também levantou o debate sobre violação de privacidade. Muitos especialistas de liberdade civil afirmam que a nova tecnologia trazida pela Apple representa um risco de violação da privacidade e de abuso de autoridades.
"Você tem que trabalhar muito para colocar minha impressão digital em um leitor", afimrou Chris Calabrese, vice-presidente para assuntos políticos do Centro para Democracia e Tecnologia dos Estados Unidos. "Você precisa trabalhar muito menos para colocar um telefone na frente do rosto de alguém", completa o raciocínio.
A polícia pode realmente forçá-lo a desbloquear seu telefone com apenas seu rosto?
"Há algumas questões em aberto para saber se eles [autoridades policiais] poderiam ou não fazer com que você digitalize seu rosto ou sua impressão digital", afirmou Susan Hennessey, membro do Brookings Institution e editora-chefe do Lawfare, um importante blog de segurança nos Estados Unidos. “Em última análise, este é o próximo ponto a ser resolvido da já existente questão legal aberta.”
A lei é ambígua - e a incerteza provavelmente persistirá até que um processo judicial estabeleça regras mais claras, acreditam os analistas consultados pela reportagem do Washington Post.
Enquanto você não pode ser legalmente obrigado a fornecer sua senha facial, alguns tribunais americanos decidiram que a aplicação da lei pode obrigá-lo a fornecer sua impressão digital sob certas condições. Sob um padrão conhecido como "suspeita razoável", você pode ser obrigado a fornecer sua impressão digital. O mesmo padrão poderia ser aplicado aos seus dados faciais? Isso é o que não está claro.
De qualquer maneira, os americanos desfrutam de uma camada adicional de proteção legal. Mesmo que um policial use suas informações biométricas para desbloquear um telefone, a autoridade precisa obter uma autorização de busca para vasculhar o celular. A busca em celulares sem mandado foi declarada inconstitucional pela Suprema Corte de Riley c. Califórnia, em 2014.
Dado o quão confusa é a lei, não pode haver algum tipo de solução tecnológica?
Uma solução tecnológica para o impasse pode estar em andamento. A nova versão do sistema operacional móvel da Apple, o iOS 11, provavelmente virá com um mecanismo de segurança que desativará o Touch ID e o Face ID. Ao pressionar rapidamente o botão de energia cinco vezes consecutivas, o iPhone deixará de aceitar dados biométricos como mecanismo de desbloqueio e passará a pedir uma senha.
A nova funcionalidade está presente na versão beta do iOS 11, segundo apurou Edward Snowden. A nova versão do iOS será lançada nesta terça-feira (19), quando será possível saber se o recurso realmente existe.
O mecanismo pode ser a alternativa criada pela Apple para que um usuário consiga proteger dados sensíveis, sem ter a sua vida digital inteira exposta. Mas a novidade não funcionará para todos - e nem em todas as ocasiões. No calor do momento, alguns podem esquecer o “macete” para desativar o Touch ID e o Face ID. Ou talvez não tenham a oportunidade de ativá-lo antes que seu dispositivo seja confiscado.
Essa questão vai se tornar altamente relevante para muitos usuários que têm o ceular como um companheiro constante. E assim como o policiamento afeta certas comunidades de forma diferente das outras, tecnologias como o reconhecimento facial podem por em perigo alguns usuários mais do que os outros.
“Empresas responsáveis precisam se perguntar: ‘Onde paramos? Pensamos nas implicações?’”, ressaltou Katharina Kopp, diretora de assusntos políticos do Centro para a Democracia Digital, um grupo que atua em defesa da privacidade.
A polêmica no Brasil
- Da redação
No Brasil, a matéria ainda não é pacífica. Dois casos recentes, debatidos em artigo assinado por pesquisadores do InternetLab, centro interdisciplinar de pesquisa em direito e tecnologia, contrapõem entendimentos da nossa justiça.
Em um caso, contam os pesquisadores, o Superior Tribunal de Justiça determinou ilícita a devassa de dados e conversas obtidas pela polícia em celular apreendido em flagrante, sem prévia ordem judicial. Em outro, julgado no início de 2017 pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, o desembargador Jaime Ferreira Menino acatou as provas obtidas por entender que a lei confere à polícia atribuições de repressão e prevenção de crimes que abarcariam a possibilidade de checagem do aparelho.
A justificativa do magistrado não é unânime e recorre a alguns pontos que, mesmo constando em lei, estão em desacordo com as novas tecnologias. Na decisão, Menino disse que a proteção às comunicações privadas previstas no Marco Civil da Internet, por exemplo, só se aplicar quando “indivíduos estão conectados”, não bastando que apenas o dispositivo esteja. Os pesquisadores do InternetLab explicam que “a fronteira entre estarmos ou não conectados torna-se cada vez mais tênue, na medida em que nossos celulares estão persistentemente conectados. Com o celular no bolso não estamos mais online?”, questionam.
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