Um criador do iPhone chamou o dispositivo de “viciante”.
Um fundador do Twitter disse que “a internet está quebrada”.
Um dos primeiros investidores do Facebook levantou questões sobre o impacto da rede social nos cérebros infantis.
Agora, dois dos maiores investidores de Wall Street pediram que a Apple estudasse os efeitos de seus produtos na saúde e facilitassem para os pais a imposição de limites para o uso de iPhones e iPads por seus filhos.
As empresas do Vale do Silício que, de modo pouco crítico, já foram elogiadas por sua inovação e sucesso econômico, estão sendo atacadas por todos os lados, e muitos querem que assumam mais responsabilidades por seu papel em tudo, desde a intromissão nas eleições e os discursos de ódio até a saúde física e o vício na internet.
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“As companhias têm que assumir sua parte e ajudar a resolver esses problemas. Conforme os fundadores das grandes empresas reconhecem hoje, os dias em que bastava lançar novas tecnologias e ignorar seu impacto potencial acabaram”, disse Barry Rosenstein, sócio-diretor da Jana Partners, firma de investimento que escreveu uma carta aberta à Apple em janeiro pedindo que esta examinasse os efeitos de seus produtos sobre a saúde, especialmente de crianças.
As reações contra essas grandes empresas estão crescendo: o Facebook e o Twitter estão sob escrutínio por sua contribuição à intromissão russa na eleição presidencial americana de 2016 e por facilitar o comportamento abusivo; o Google recebeu uma multa recorde na Europa por explorar indevidamente seu poder de mercado.
Mas até agora, a Apple tinha escapado incólume, e as preocupações sobre os efeitos deletérios do uso excessivo da tecnologia não estavam entre os assuntos mais importantes para os executivos do Vale do Silício.
A Jana escreveu sua carta junto com o CalSTRS, órgão que administra as pensões dos professores de escolas públicas californianas. Quando esses investidores pressionam as empresas a modificar seu comportamento, seu objetivo normalmente é elevar o preço das ações que estão em baixa; neste caso, disseram que estavam tentando aumentar a conscientização sobre uma questão que os preocupa profundamente, acrescentando que, se a Apple for proativa ao fazer mudanças, isso poderia ajudar o negócio.
“Acreditamos que, em longo prazo, a saúde de seus clientes mais jovens e a da sociedade, da nossa economia e a da própria empresa são indissociáveis”, disseram na carta.
Quaisquer que sejam as motivações, os dois grandes investidores tocaram em um ponto nevrálgico para os pais sobre o uso de dispositivos pelos filhos em detrimento de atividades como esporte e leitura.
“Nos últimos 10 anos, vem ocorrendo uma reação de baixo para cima; ela pode ser vista em atitudes como não mandar as crianças para escolas que usam iPads e filhos dizendo a seus pais para largar o celular “, disse Sherry Turkle, professora no Instituto de Tecnologia de Massachusetts e autora de Alone Together: Why We Expect More From Technology and Less From Each Other (“Sozinhos juntos: por que esperamos mais da tecnologia e menos um do outro”, ainda sem tradução no Brasil).
Estudo
Há anos os pesquisadores vêm avisando sobre a onipresença dos celulares e das redes sociais. Um estudo de 2015, feito pelo Common Sense Media, grupo de pesquisa dedicado ao uso da tecnologia, descobriu que mais da metade dos adolescentes passa ao menos quatro horas por dia olhando para telas, e que para um quarto deles esse número pode passar de oito horas. Em outra pesquisa de 2016, 50 por cento dos jovens disseram se considerar viciados em seus dispositivos móveis.
“Essas coisas podem ser extremamente viciantes. É incrível, mas há uma série de consequências não intencionais”, disse Tony Fadell, ex-executivo da Apple que ajudou a criar o iPod e o iPhone.
Cada vez mais executivos de tecnologia estão se preocupando com as criações que lhes trouxeram fama e fortuna.
Sean Parker, um dos primeiros investidores do Facebook, refletiu sobre a ampla influência do site. “Ele literalmente muda sua relação com a sociedade, com o outro. Provavelmente interfere com a produtividade de maneiras estranhas. Só Deus sabe o que está fazendo com a cabeça de nossos filhos”, disse em uma entrevista para a Axios, em novembro.
Evan Williams, um dos fundadores do Twitter, lamentou no ano passado o fato de o serviço ter se tornado um antro para o discurso de ódio. “A internet está quebrada”, disse ele.
Chamath Palihapitiya, um dos primeiros executivos do Facebook e executivo-chefe da Social Capital, uma empresa de capital de risco, disse, em novembro, que sentia uma “culpa tremenda” sobre seu papel na construção da rede social.
“No curto prazo, a dopamina gerada pelos feedbacks que criamos estão destruindo o modo em que a sociedade funciona. Não há discurso educado, não há cooperação, só desinformação e inverdades. E isso não é um problema americano; não se trata dos anúncios russos. É um problema global.”
Ao cobrar a Apple, a Jana e o CalSTRS, que juntos detêm aproximadamente US$2 bilhões em ações da empresa, selecionaram o gigante da tecnologia que talvez seja o menos dependente do tempo de seus usuários. A maior parte do faturamento da Apple vem da venda de hardware, e não da publicidade digital, por isso, teoricamente, poderia ter recursos para incentivar os usuários a passar menos tempo com seus produtos.
Em um comunicado, a Apple disse que o controle dos pais, que já existe em seus dispositivos, é líder do setor e que leva muito a sério a forma como seus produtos são utilizados e o impacto que têm sobre os usuários e as pessoas ao seu redor.
“Nós encaramos essa responsabilidade com muita seriedade e estamos empenhados em atender as expectativas dos nossos clientes e superá-las, especialmente quando se trata de proteger crianças”, continuou a declaração.
O medo em relação ao vício em tecnologia não é novo. O BlackBerry, um dos primeiros smartphones, foi apelidado de “CrackBerry”. Adam Alter, psicólogo social e autor de Irresistible: The Rise of Addictive Technology and the Business of Keeping Us Hooked (“Irresistível: o crescimento da tecnologia viciante e o negócio de nos manter viciados”, também sem tradução no Brasil), documenta casos de vício em internet por todo o mundo.
Vício
Mas alguns executivos de tecnologia agora reconhecem que, longe de ser um acidente, seus produtos foram concebidos para serem viciantes.
Parker afirmou que, quando o Facebook começou, o processo de pensamento era “como tomaremos a maior parte possível de seu tempo e atenção consciente”.
Palihapitiya disse que, conforme a rede social ia crescendo rapidamente, “nas profundezas de nossa mente, nós meio que sabíamos que alguma coisa ruim poderia acontecer”.
Fadell contou que na época em que a Apple estava projetando o iPhone, o pessoal não sabia que isso ia acontecer, mas o fato é que, hoje, as pessoas estão simplesmente passando muito tempo olhando para seus celulares.
“Agora, alguma coisa precisa ser feita. Há dez anos que isso vem em um crescendo”, disse ele.