Concorrer com os grandes bancos e as fintechs mais badaladas não é fácil. Para conquistar novos usuários, o PicPay, startup financeira brasileira fundada em 2012, cede um crédito aos que se cadastram mediante convite de quem já usa seus serviços. Nos últimos dias, porém, alguns usuários começaram a se aproveitar dessa oferta de crédito fácil para manipular o sistema e, se passando por marcas famosas, inclusive bancos, ludibriar outras pessoas em esquemas questionáveis e que, em alguns casos, lembra o das pirâmides.
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O esquema funciona assim: um usuário qualquer com nome de alguma marca famosa, como Adidas, Itaú e Nubank, entre outras, segue centenas de usuários comuns e divulga que está devolvendo em dobro valores que receber. Além de uma carteira digital, o PicPay também funciona como uma espécie de rede social baseada nos gastos, com curtidas e comentários, o que viabiliza tal estratégia.
Para algumas vítimas, o dinheiro é de fato devolvido em dobro. A maioria, porém, fica no prejuízo: jamais recebe de volta nem o valor pago à “marca” muito menos o dobro dele. É um subterfúgio comum em golpes do tipo: o fraudador cumpre a promessa surreal para alguns que, contentes com o bom negócio, comentam e dão legitimidade ao esquema a fim de passar confiança a usuários desconfiados.
Alguns usuários têm usado outra estratégia que prejudica exclusivamente o PicPay: eles mandam os convites a terceiros condicionados ao recebimento de parte dos R$ 10 ganhos pelo entrante, numa estrutura que lembra as pirâmides — só que apenas com dinheiro oferecido pelo próprio serviço. O PicPay publicou alertas em suas redes sociais oficiais de que essa retribuição não é obrigatória (abaixo), mas há casos em que o usuário que convida deixa isso claro e conta com a boa vontade dos amigos para lhe repassar o crédito recebido com o convite.
Isso! A nossa ideia é facilitar a vida de vocês ð
â PicPay (@picpay) June 21, 2017
à importante lembrar que não recomendamos essas práticas no app. Tudo bem? https://t.co/AT4ajFh1Lg
A onda de publicações dentro do PicPay começou na última sexta-feira (23). No início, os valores pedidos por quem prometia dobrar os pagamentos recebidos eram elevados – muitos pediam R$ 10, ou seja, a totalidade do crédito que o PicPay cede a novos usuários convidados. Hoje (27), muitas ofertas já estão na casa dos centavos, reflexo da saturação meteórica motivada por incontáveis pedidos e perfis tentando replicar o golpe.
Esse crédito inicial de R$ 10 parece ser o principal motivador dos esquemas. Como o usuário não tira o valor a ser investido do próprio bolso, há um incentivo para que ele se arrisque mais. Afinal, caso não receba o valor enviado em dobro ou parte dos R$ 10 dos seus próprios convidados, ele não terá perdido nada além de um bônus.
De qualquer forma, o dinheiro existe e é bancado pelo próprio PicPay. A empresa foi viabilizada com valores dos próprios fundadores e de investidores anjos, que colocaram ao todo US$ 1 milhão na startup, segundo publicações especializadas. Questionada sobre outras rodadas posteriores, a assessoria do PicPay informou que não revela valores de investimentos.
Facilitadores do esquema
O sistema do PicPay deixa muita margem para que o esquema da promessa de devolver valores em dobro se dissemine lá dentro. O cadastro exige poucos dados e não pede garantias nem faz verificações aprofundadas. A foto do perfil e o nome podem ser trocados livremente, a qualquer tempo, e também dispensam verificações ou justificativas.
A análise de alguns perfis durante o fim de semana constatou que alguns trocam de nome, aumentando o caos e as chances de pegar algum usuário novo desatento ou como forma de fugir de cobranças de usuários lesados pelo esquema.
Segundo a assessoria do PicPay, “como em qualquer rede social, é natural que em algum momento os usuários queiram alterar seus dados do perfil”. A mensagem segue dizendo que a empresa está “trabalhando fortemente” no aprimoramento do sistema “a fim de detectar qualquer alteração que represente risco.”
Outro ponto problemático é o perfil “Pro”, que o PicPay concede a quem deseja receber valores parcelados e com outros benefícios a lojistas. Não existe requisito algum para se tornar Pro nem qualquer custo inicial. Basta tocar em uma tela nas configurações do app. Além das vantagens comerciais, o perfil ganha um selo “Pro” que se confunde muito facilmente com os selos de perfis verificados, comum em redes como Twitter e Facebook, e que nelas atesta a legitimidade de um perfil oficial.
A plataforma do PicPay carece, também, de um botão para reportar perfis falsos ou que estejam tentando aplicar golpes, o que ajudaria a mapear e mitigar essas ações. Segundo a assessoria da empresa, “o PicPay está desenvolvendo um sistema de denúncia de perfis e transações que permitirá que a própria comunidade identifique perfis ou comportamentos inadequados.”
Marcas famosas, perfis falsos
Dos dois esquemas, o mais grave é aquele em que pessoas mal intencionadas se passam por marcas famosas. Pesquisas feitas por elas retornam perfis com diversas características comuns aos falsos, mas que parecem não impedir que usuários mais inocentes se arrisquem.
Alguns, como o Nubank, retornam três ou mais resultados, cada um com algumas centenas de seguidores e o selo "Pro". A Gazeta do Povo entrou em contato com o Nubank para perguntar se a fintech mantém perfil no PicPay. Ela negou:
“O Nubank não possui conta de perfil ativa no aplicativo PicPay ou em quaisquer outros aplicativos financeiros. Transparência, idoneidade e cumprimento às leis e regulações do país são alguns dos principais pilares que embasam a atuação do Nubank, e ressaltamos que as iniciativas demonstradas por estas contas falsas são contra a todas as diretrizes e políticas internas da empresa, e são de responsabilidade de terceiros agindo de má fé. Já entramos em contato com PicPay a fim de solucionar o ocorrido e evitar que novas contas falsas sejam geradas, e tomaremos todas as medidas necessárias que nos caibam para isso.”
Também perguntamos à Caixa, que tem alguns perfis falsos no PicPay, se o banco está oficialmente na plataforma. Outra negativa:
"Informamos que a CAIXA não tem perfil no referido aplicativo e que irá apurar uso indevido do seu nome."
Ontem (26), a primeira resposta do PicPay à reportagem da Gazeta do Povo foi um posicionamento geral em relação a esses esquemas que estão acontecendo em sua plataforma:
“O PicPay afirma que trabalha com um sistema que monitora as interações dentro do app e, caso detectem algum indício de fraude, esse usuário é imediatamente bloqueado do aplicativo. Para intensificar esse combate, também estão sendo checados todos os perfis que foram criados em nome das marcas e, caso não sejam oficiais, são deletados do sistema. Destacamos ainda que os usuários prejudicados podem entrar em contato para receber o dinheiro de volta.
A empresa reforça que investe constantemente na segurança do aplicativo e continuará trabalhando incessantemente para garantir uma experiência para os seus usuários cada vez melhor.”
Hoje (27), porém, confirmamos que a quase totalidade dos perfis apontados à empresa pela reportagem e outros monitorados desde o fim de semana continuam ativos. De acordo com a assessoria da empresa, em novo contato feito hoje mais cedo, a demora se deve ao grande volume de usuários em atividades irregulares. O sistema está sendo aperfeiçoado para agilizar esse processo.
A situação já transcende o próprio app e está infestando outras redes sociais. No Twitter, há uma profusão de pessoas oferecendo códigos promocionais e fazendo convites para esquemas como os mostrados aqui, e até perfis criados unicamente para esse propósito.
Ainda que por motivos tortos, tudo isso gerou uma explosão de interesse pelo PicPay. Ao longo do último fim de semana, o app entrou na lista dos mais populares da Play Store, a loja de apps do Android. Curiosamente, os comentários de usuários, lá também, estão repletos de convites e pedidos para entrar nos esquemas.
Resta saber se essa popularidade se reverterá no uso do aplicativo para o fim que ele foi concebido, que é permitir pagamentos entre pessoas e entre pessoas e estabelecimentos, e se essa enorme atividade para fins questionáveis não prejudicará a reputação do app.
Quando questionada diretamente sobre como está lidando com esse problema do “mande dinheiro, receba em dobro” por perfis falsos de marcas, o PicPay foi enfático:
“Atuamos constantemente para manter a comunidade PicPay sadia e segura, ou seja, livre de pessoas ou negócios mal intencionados. Qualquer atividade que seja ilícita ou que, de alguma forma, prejudica a experiência dos nossos usuários, são rapidamente identificadas e bloqueadas para que não consigam mais utilizar o aplicativo. Estamos empenhados em resolver esse cenário atual e o PicPay reforça que o seu negócio respeita os seus usuários e continuará investindo em melhorias com foco na segurança.”
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Agradecimentos à Débora Sögur Hous pela dica da pauta. Valeu!