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Sancionado há pouco mais de um ano e em vigor desde o final de 2022, o Novo Marco Legal do Mercado de Câmbio Brasileiro (lei 14.286/21) alterou ou revogou 39 leis e decretos editados desde 1920 para modernizar as operações com moeda estrangeira no Brasil feitas tanto por pessoas físicas como empresas. A medida é um dos compromissos firmados pelo país para entrar na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e faz parte de um amplo programa de desburocratização que vem sendo implantado há mais de uma década e ganhou impulso nos últimos quatro anos.
O novo conjunto de regras, menor e mais sucinto, permite que empresas brasileiras invistam no exterior recursos captados no país ou lá fora, além de facilitar o uso do próprio real em transações internacionais. Já para as pessoas físicas, a maior vantagem é o aumento do limite do valor de dinheiro em espécie para entrada ou saída o Brasil – de R$ 10 mil para US$ 10 mil ou o equivalente em outra moeda.
A nova legislação também passa a concentrar no Banco Central (BC) toda a regulação das operações, que antes era dividida com o Conselho Monetário Nacional (CMN), como a de operações de câmbio, contratos futuros para evitar a especulação com o real e a organização e fiscalização de corretoras. E, ainda, abre espaço para que fintechs passem a oferecer serviços cambiais, aumentando a competitividade.
“Na parte do câmbio, tínhamos várias restrições legais para avançar em aperfeiçoamentos. A lei veio para eliminar essas barreiras e abrir margem para avançar em inovação de operações cambiais”, disse Otávio Damaso, diretor de regulação do BC, em um evento em meados de novembro na Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB).
A medida, segundo o então Ministério da Economia, torna o próprio ambiente de negócios menos burocrático e cria um “mecanismo de hedge cambial natural aos contratos celebrados entre exportadores e concessionários ou arrendatários de infraestrutura”, diz em um dos pontos citados no estudo “Política brasileira para competitividade e produtividade 2019-2022”, publicado no final do ano passado para orientar o então gabinete de transição do governo.
O que foi bem recebido pelos agentes do mercado por corrigir um paradoxo em vigor até então. Vivian Portella, diretora de negócios internacionais da B&T Câmbio, explica que os brasileiros já são bem familiarizados com tecnologias de pagamento e um alto grau de bancarização – ou seja, o uso de bancos para operações do dia a dia, principalmente com a entrada no mercado de instituições digitais.
No entanto, as operações com moeda estrangeira ainda eram burocráticas e altamente reguladas pelas autoridades monetárias. Com o novo marco legal, até mesmo transações financeiras entre pessoas passou a ser permitida.
“O Brasil, em comparação com outras economias, é um país que internamente possui um sistema de pagamentos altamente desenvolvido e tecnológico e uma população bastante bancarizada. Mas, em relação ao câmbio, ainda possui um viés mais conservador no que tange a liberdade econômica dos consumidores, demonstrando que ainda existe um nível de maturidade a ser alcançado para que essa liberdade possa se expandir”, explica.
Ao todo, o novo marco legal consolida mais de 400 normas cambiais criadas há mais de 100 anos, e que passaram a sofrer constantes alterações desde 2010, quando as primeiras medidas de flexibilização começaram a ser implantadas. “O foco aqui é no cidadão brasileiro, na simplificação e na redução de custos. E isso é apenas o começo, em que o Banco Central vai testando [novos serviços] e afrouxando as regulações para tornar o mercado de câmbio mais competitivo”, completa João Paulo Weller, economista e sócio da corretora Swap Câmbio e Capitais Internacionais.
Custos menores para pessoas físicas e empresas
A implantação das novas regras reduz a burocracia para as transações com moeda estrangeira e os custos para o envio e recebimento de recursos do exterior. Uma das medidas é a permissão para que pessoas físicas transfiram até US$ 500 entre si, sem precisar passar por bancos e corretoras – desde que sejam transferências “eventuais e não profissionais”, segundo a legislação.
O novo marco também simplifica a burocracia para transferências internacionais de até US$ 50 mil, que respondem por 90% das operações feitas nas corretoras e bancos brasileiros. Até o final de 2022, o Banco Central exigia uma farta documentação mesmo para valores muito baixos, além de obrigar às instituições o informe diário das operações.
Com as novas regras, a documentação necessária foi reduzida e a quantidade de códigos de classificação das operações também, passando de 180 para apenas dez, em que o registro é feito pelo próprio cliente, e não mais pelos bancos e corretoras.
“O cliente passa a ser responsável pelas próprias operações, e não mais os bancos, o que dá mais autonomia, diminui o tempo de aprovação da transação e abre espaço para mais instituições financeiras”, afirma Vanderson Santana, economista e também sócio da corretora Swap.
Por outro lado, as operações acima de US$ 50 mil seguem em vigor com a mesma burocracia de antes, em que tanto os bancos como as corretoras precisam justificar ao Banco Central a finalidade das transferências. Isso é algo que deve ser flexibilizado no futuro, mas que, por ora, ainda é restrito para a autoridade monetária avaliar o desempenho das novas regras.
É o mesmo que ocorre com a liberação da abertura de conta corrente para transação em outras moedas que não o real para brasileiros e estrangeiros, que já era permitida pelo Banco Central, mas com regras complexas de operação e controle. O novo marco legal simplificou as operações, mas para apenas 11 segmentos da economia, como empresas operadoras de frete, agências de turismo e corretoras de câmbio, entre outros.
“Um dos grandes receios do Banco Central é a dolarização da economia, como aconteceu na Argentina, por exemplo. Lá, as pessoas movimentam as contas em dólar, e não mais em peso argentino”, justifica Santana lembrando que isso poderia afetar a soberania do real – exatamente o contrário do propósito do BC, que é tornar a moeda brasileira mais conversível para operações estrangeiras.
Isso faz com que a flexibilização destas regras se dê com cautela e vigilância pelo Banco Central, tanto para evitar um descontrole na circulação de moeda estrangeira como para prevenir que uma liberação geral das operações abra brechas para o cometimento de crimes de lavagem de dinheiro e evasão fiscal, como ocorreu entre 2007 e 2012.
Os sócios da Swap lembram que, naquela época, o Banco Central começou a fazer as primeiras flexibilizações em operações de pagamento antecipado de importação, que acabaram sendo usadas para lavagem de dinheiro por empresas que depois foram alvos da Operação Lava Jato. Agora, com regras mais claras e limites de operações, as instituições podem ter um compliance mais apurado com os clientes.
Ainda há muito o que mudar, e até voltar atrás
Em pouco mais de um ano entre a sanção do novo marco e a efetiva entrada em vigor, o Banco Central e o Conselho Monetário Nacional realizaram diversas audiências públicas para apurar as reais necessidades dos consumidores e das empresas que trabalham com moeda estrangeira. Tanto que a legislação aprovada pelo Congresso deixa clara a responsabilidade de regulação de acordo com a aplicação das novas normas, autorizando, supervisionando, disciplinando ou cancelando-as.
Isso foi necessário, segundo Vivian Portella, da B&T Câmbio, para “garantir que todo, ou a maior parte do mercado, esteja sendo abrangida dentro da nova regulação, o que demanda tempo de análises e revisões”. “Porém, este novo marco legal ainda é passível de novas consultas e novas operações”, completa João Paulo Weller, da Swap Câmbio.
Entre as operações que ainda não são permitidas pela nova legislação está compensação privada de crédito, em que as empresas fazem ajustes nos seus balanços com contrapartes no exterior de forma automática. Este tipo de operação atualmente necessita de registro no Banco Central através de contratos simbólicos para ajustar contabilmente – com altos custos para as empresas. A expectativa é de que isso seja alterado até o final do ano.
E, mais para o futuro, se estuda a implantação até mesmo de um Pix Internacional, com a transferência de recursos em moeda estrangeira assim como se faz atualmente com o real entre os brasileiros. É algo que ainda está em fase de avaliação e depende de conversações do Banco Central do Brasil com os de outros países, mas que também faz parte da política de permitir uma livre movimentação de capitais para tornar a economia do país mais aberta e próxima de nações da OCDE.
Além das novas regras, o mercado também espera que o novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) mantenha a política de desoneração do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), previsto para ser zerado gradualmente até 2029. A medida também é parte do compromisso do Brasil para aderir à OCDE.
Quais são as principais mudanças trazidas pelo Novo Marco Legal do Câmbio
Veja abaixo uma síntese das principais mudanças no mercado de câmbio brasileiro que já estão em vigor, segundo os especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo e a normativa do Banco Central (veja na íntegra):
Entrada ou saída do país com dinheiro em espécie
A nova legislação permite que brasileiros e estrangeiros possam entrar ou sair do país com até US$ 10 mil ou o equivalente em outras moedas em espécie sem a necessidade da Declaração Eletrônica de Bens do Viajante (e-DBV) à Receita Federal do Brasil (RFB). Antes, este limite era de R$ 10 mil.
Transferências para pessoas físicas
A nova legislação permite trocas de papel moeda em moeda estrangeira entre pessoas físicas até o limite de US$ 500 ou o equivalente em outra moeda estrangeira, sem necessidade de intermediação de um banco ou corretora, de forma eventual e não profissional.
Transferência entre contas do Brasil para o exterior
Segundo a regulamentação, provedores de serviços de câmbio digital (eFX), poderão atuar permitindo que os brasileiros transferiam para uma conta de mesma titularidade no exterior ou unilateralmente até US$ 10 mil ou o equivalente em outras moedas para pagamentos, recebimentos e aquisição de bens ou serviços, através de bancos e corretoras. No entanto, o pagamento ou recebimento em território nacional deve ser feito exclusivamente em reais e sem qualquer indexação à moeda estrangeira.
Transferências para pessoas jurídicas
A nova legislação permite que empresas realizem operações de transferência de moeda estrangeira de até US$ 50 mil ou equivalente em outras moedas, com menos burocracia. Se mantém a obrigatoriedade de intermediação de um banco ou corretora, mas com a simplificação da classificação de finalidade – apenas 10 códigos – e de responsabilidade do cliente. Acima deste limite foi dada autonomia para as instituições financeiras estabelecerem os próprios procedimentos de controle salvaguardando a capacidade financeira do cliente e legalidade da operação.
Contas bancárias de estrangeiros
Estrangeiros podem abrir uma conta bancária no Brasil para transações em reais de forma equivalente a de um cidadão brasileiro, eliminando burocracias e custos que chegam a R$ 2 mil ao mês em algumas instituições bancárias. O Banco Central ainda permite que os correntistas façam operações de pagamentos pré-pagos de até R$ 100 mil prestando informações apenas ao banco que oferece este serviço, e de R$ 10 mil às demais operações desde que com contrapartida de crédito ou débito na conta.
Contas bancárias em moeda estrangeira
A regulamentação do Banco Central permite que empresas de 11 segmentos da economia tenham contas para operação com moeda estrangeira no Brasil: agência de turismo; embaixadas, legações estrangeiras e organismos internacionais; serviços postais; emissores de cartões de crédito; estrangeiro transitoriamente no país e brasileiro não residente; entidades da administração pública direta e indireta; empresas do setor energético; sociedades seguradoras e corretoras de resseguro; transportadores não residentes; instituições autorizadas a operar no mercado de câmbio; e empresas do setor de petróleo e gás natural.
Remessas ao exterior
A nova legislação também dispensa o registro declaratório, salvaguardando alguns limites, para empresas que remetem dinheiro ao exterior a titulo de pagamento de empréstimos, dividendos, juros, royalties e outras finalidades regulamentadas, necessitando apenas recolher o tributo devido e fechar o câmbio em uma instituição autorizada. O Banco Central disponibilizou outros sistemas para controle, sendo eles o SCE-Crédito (Sistema de Prestação de Informações de Capital Estrangeiro – Crédito Externo) e o SCE-IED (Sistema de Prestação de Informações de Capital Estrangeiro de Investimento Estrangeiro Direto) nos quais, a depender do volume, devem informar ao BC sobre as movimentações.
Operações de leasing
As operações de arrendamento mercantil (leasing) abaixo de US$ 1 milhão ou equivalente em outras moedas também estão dispensadas de registro no Banco Central, mas devem estar disponíveis para consulta pelos bancos e corretoras responsáveis. Acima deste limite ou quando o devedor for do setor público, é preciso registrar previamente no Sistema de Prestação de Informações de Capital Estrangeiro – Crédito Externo.
Além dessas operações, há outras que tiveram a simplificação de normas, como a compensação privada de créditos, o pagamento em moeda estrangeira de obrigações exequíveis, ordens de pagamento de terceiros do exterior a partir de contas em reais mantidas no Brasil por meio de bancos estrangeiros, operações com ouro, entre outras que podem ser consultadas nas resoluções do Banco Central e do Conselho Monetário Nacional.