A proposta de novo arcabouço fiscal do governo federal, apresentada na quinta-feira (30), é questionada por economistas por trazer embutida uma previsão inequívoca de aumento de arrecadação nos próximos anos.
Para que as projeções oficiais se confirmem, especialistas em contas públicas e analistas do mercado financeiros consideram pouco crível a fala do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, de que não haverá aumento linear de carga tributária.
Com a nova regra, cujo texto ainda não foi finalizado, o governo quer limitar o crescimento anual das despesas a 70% da alta da receita dos 12 meses encerrados em junho do ano anterior – os 30% restantes seriam utilizados para abatimento da dívida pública ou composição de caixa.
Há ainda um piso e um teto para o crescimento real da despesa primária, de 0,6% e 2,5% ao ano, respectivamente. Além disso, o investimento público passará a ter um piso: não será menor que o atual patamar de R$ 75 bilhões, sendo reajustado nos próximos anos, no mínimo, pela inflação do exercício anterior.
Diante de uma expectativa de déficit primário de R$ 107,6 bilhões em 2023, a equipe econômica estabeleceu uma meta, considerada ousada, de resultado primário neutro para o ano que vem, passando depois a superávit primário de 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2025 e de 1% do PIB em 2026.
Na entrevista coletiva de apresentação do novo arcabouço fiscal, Haddad disse “não estar no horizonte” a “criação de novos tributos ou aumento de alíquota de tributos existentes”, mas defendeu a necessidade de revisão de isenções e benefícios fiscais a determinados setores, citando, como exemplo, o mercado de apostas eletrônicas.
“Nós vamos, ao longo do ano, e já começando na semana seguinte à apresentação do arcabouço, encaminhar para o Parlamento as medidas saneadoras que vão dar consistência para o resultado previsto nesse anúncio”, garantiu. Segundo ele, essas medidas podem gerar entre R$ 100 bilhões e R$ 150 bilhões até o fim do ano.
Diante de poderosos lobbies, a batalha pela revogação de benefícios tributários, no entanto, perpassa governos de maneira infrutífera. Uma emenda constitucional aprovada em 2021, em meio à pandemia, obrigou o Executivo a apresentar um plano para reduzir os incentivos a 2% do PIB até 2029 – menos da metade do nível atual. O plano foi apresentado ainda em 2021 pelo governo de Jair Bolsonaro (PL), mas em uma versão desidratada que eliminaria apenas 0,06% do PIB em desonerações, e mesmo assim está parado na Câmara desde então.
Se falhar no plano de revogar renúncias fiscais, e sem previsão de corte de gastos, a alternativa para o governo concretizar suas projeções estaria no aumento da carga tributária. A dependência da elevação de receitas é o principal questionamento à nova regra.
“Pelo anúncio do governo, a intenção é de recompor despesas e utilizar as receitas para garantir a geração de superávit primários para controlar a dívida pública. Não ficaram claras as condições de enforcement para o cumprimento da regra, assim como as condições impostas em caso de descumprimento”, escreveram Vilma Pinto e Alexandre Seijas de Andrade, respectivamente diretora e analista da Instituição Fiscal Independente (IFI).
Professor de Finanças e Controle Gerencial do Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (Coppead) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rodrigo Leite considera que a proposta tem brechas para uma “espiral negativa nas contas públicas” em caso de queda de arrecadação.
“Como você tem um piso de investimentos, significa que, mesmo que a arrecadação cair, você vai ter que aumentar os gastos”, explica. “No curto e médio prazo, espera-se que o governo aumente a arrecadação. Mas em um cenário futuro, de queda de arrecadação, essa lei pode criar uma espiral inflacionária, na qual a inflação aumenta, e o governo, porque a inflação aumentou, tem que gastar mais, gerando ainda mais inflação.”
Para ele, o maior problema da proposta reside nessa dependência em relação às expectativas. “Qualquer projeção de governo é extremamente otimista. A do Temer foi na reforma trabalhista, a do Bolsonaro, na reforma previdenciária, e a do atual governo está sendo agora. Só que, nos casos anteriores, as projeções não eram base para outras políticas”, compara.
Silvia Matos, coordenadora do Boletim Macro do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), vai na mesma linha. “Para a nova regra ser crível, ou seja, termos superávit no horizonte futuro, temos que ter aumento de receitas. E aí que está o desafio. De onde virão essas receitas? O Congresso vai aprovar medidas de aumento de carga tributária?”, questiona.
Mercado financeiro aguarda mais detalhes
Apesar dos indicadores positivos do pregão de quinta-feira (30), quando o Ibovespa subiu 1,89% e o dólar caiu 0,73%, as incertezas também alcançam analistas do mercado financeiro, que aguardam mais detalhes do projeto e outras medidas do governo.
Jason Vieira, economista-chefe da Infinity Asset, destaca que para chegar a um déficit primário de 0,5% do PIB ainda em 2023, conforme previsto pela Fazenda, é fundamental a contenção de gastos e um ajuste fiscal, “coisa que parece não estar no radar do governo”.
“Se obtiver sucesso, a inflação será menor e, portanto, reduzirá automaticamente parte da receita, pois os instrumentos não seriam de estímulo”, diz Vieira em relatório para investidores.
Tiago Sbardelotto, economista da XP Investimentos, avalia que o governo não “contou toda a história” na apresentação da nova regra fiscal. “Embora o ministro tenha falado em medidas para incrementar receitas com a correção de distorções no sistema tributário, não foram apresentados maiores detalhes, exceto uma previsão preliminar de um ganho de R$ 100 [bilhões] a R$ 150 bilhões”, diz.
“Ainda há detalhes a serem apresentados acerca da regra fiscal que podem modificar nossa análise. No entanto, com as informações divulgadas até o momento, entendemos que a regra fiscal per se não garante a sustentabilidade fiscal nos próximos anos”, afirma o economista.
Além da possibilidade de aumento de carga tributária, Bruno Monsanto, sócio da RJ+ Investimentos, avalia que a proposta não traz bons sinais para a inflação, o que seria importante para o início de um ciclo de redução de juros pelo Banco Central. “Pelo contrário, a proposta parece trazer mais incerteza e piorar o quadro de desancoragem das expectativas de inflação”, diz.
“Sobre a arrecadação, Haddad disse que não pretende criar novos tributos, aumentar alíquotas, acabar com o Simples. Mas, na contramão, falou em voltar a arrecadar através do fim de benefícios tributários, que ele não detalhou. Ou seja, acho difícil não termos algum aumento da carga”, acrescenta.
Simulações feitas pelos economistas Felipe Salto e Josué Pellegrini, da Warren Renascença, mostram que seriam necessários aumentos de receita na casa dos R$ 100 bilhões em 2024, R$ 45 bilhões em 2025 e outros R$ 45 bilhões em 2026, além do crescimento de despesas apenas no piso de 0,6% no ano que vem, para que a relação dívida/PIB se estabilizasse nos próximos três anos em patamar pouco acima de 77%.
“Enfim, a nova regra fiscal é a primeira etapa de um conjunto maior de providências que precisarão ser tomadas para viabilizar sua aplicação. Essas medidas terão que elevar a receita de modo significativo, possibilitar o controle da despesa obrigatória, sem sacrificar determinado conjunto de gastos, como investimentos”, concluem os economistas.
Proposta de novo arcabouço foi bem recebida por bancos
Economistas do Bradesco, por outro lado, elogiaram a proposta, embora também considerem importante aguardar a apresentação do texto final do projeto, “sobretudo para avaliar os mecanismos de fiscalização do cumprimento das regras apresentadas”.
“Em nossa avaliação, a regra impõe limites para a despesa mais rígidos do que o esperado em nosso cenário base, levando a uma queda do gasto em relação ao PIB no médio prazo. Se cumprido, portanto, o arcabouço pode levar a uma consolidação fiscal um pouco mais rápida do que projetávamos”, diz nota do Departamento de Pesquisas e Estudos Econômicos do banco.
“Ainda que a regra de primário presente no arcabouço evidencie que a busca por receitas será parte da consolidação fiscal, a regra de despesa apresentada sugere que também haverá algum controle do gasto”, complementa a equipe do banco.
As diretrizes divulgadas pelo governo agradaram a Federação Brasileira de Bancos (Febraban). “Ainda que seja necessário conhecer e aprofundar seus detalhes, a proposta anunciada representa um avanço na busca da trajetória sustentável da dívida pública, ao estabelecer limites para a expansão das despesas do setor público combinada com metas de resultado primário ambiciosas, com a previsão de zeragem do déficit primário já em 2024”, diz trecho de nota assinada por Isaac Sidney, presidente da entidade.
“A proposta também tem o mérito de buscar um horizonte de estabilidade da dívida, ao definir regras para a gestão das finanças públicas que sejam, ao mesmo tempo, razoavelmente ambiciosas, mas críveis em sua execução”, afirma Sidney no texto.
Parlamentares criticam possibilidade de aumento de impostos
No Congresso, fora da base aliada há desconfiança em relação ao novo arcabouço. “É uma regra fiscal frágil, baseada em projeções que só se concretizarão com aumento de impostos, como se o brasileiro estivesse disposto a pagar mais pela irresponsabilidade do governo”, disse o presidente do Novo, Eduardo Ribeiro.
Para o presidente da Frente Parlamentar pelo Brasil Competitivo, deputado federal Arnaldo Jardim (Cidadania-SP), sem uma diminuição de gastos, as metas de resultado primário apresentadas pelo governo ficam pouco críveis.
“O governo anunciou que busca superávit primário nos próximos anos, estabelece percentuais do PIB, mas faz isso como uma declaração de intenções apenas”, diz. “Porque não tem jeito de fazer uma previsão ou de dar credibilidade a esse esforço se não houver um compromisso ou um sinal em relação a corte de despesas.”
“Sem corte de despesas, o único jeito de ter esse equilíbrio é com aumento de arrecadação. É pontual ou será que está embutida uma expectativa de aumento de base tributária, de peso de impostos? Eu acho que isso pode acabar multiplicando os receios com relação à reforma tributária”, avalia.
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