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As mudanças implantadas na Previdência Social após a reforma mais recente, aprovada em 2019, deixaram o tema em segundo plano na pré-campanha eleitoral. Entretanto, o sistema continua registrando déficit crescente e por isso outras alterações são necessárias para garantir a sustentabilidade dos pagamentos para a atual geração de trabalhadores e as futuras. Além de antigos problemas nos regimes dos servidores públicos e dos militares, outro fator que vem penalizando a previdência brasileira é a ampliação do número de microempreendedores individuais (MEI).
O alerta consta da coletânea de artigos “Para não esquecer: políticas públicas que empobrecem o Brasil”, organizado pelo economista e pesquisador do Insper Marcos Mendes. O livro reúne análises sobre uma série de ações e projetos governamentais implantados nas últimas décadas no Brasil e que não devem ser repetidos, sob pena de colocar o Brasil em rota de desestruturação econômica, fiscal e social. Há três capítulos sobre a Previdência Social.
“Percebi que somando os conhecimentos específicos de uma rede de economistas a gente conseguiria deixar um registro de análises de políticas que deram errado, e que têm grande apelo no meio político. Veja o caso do MEI. Toda hora querem ampliar, recentemente abriram para caminhoneiros também. Mas o capítulo mostra que a criação da figura do MEI não atingiu os objetivos propostos, de ampliar a cobertura previdenciária do trabalhador informal. Isso não aconteceu porque o informal, apesar do custo baixo, não adere, ou quando vai, fica inadimplente”, resumiu Mendes em entrevista à Gazeta do Povo.
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Segundo os pesquisadores Rogério Nagamine Constanzi, subsecretário do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) e Otávio Sidone, coordenador-geral de Estudos Previdenciários no Ministério do Trabalho e Previdência, a criação do MEI não estimulou a formalização, mas sim atraiu a migração de trabalhadores que anteriormente já contribuíam com a previdência. Esse cenário é descrito como consequência da “pejotização”: como não há contribuição patronal na contratação de serviços de MEI, há um estímulo para a substituição de trabalhadores formais, sobre os quais a alíquota para o INSS é de 20% do salário.
Os pesquisadores dão o seguinte exemplo: em 2021, o valor da contribuição previdenciária do MEI era de R$ 55, o que garantirá uma aposentadoria pelo salário mínimo; para conseguir o mesmo benefício, um empregado formal contribui com 27,5% do salário mínimo (ou R$ 302,50), sendo que a renda atual deste pode ser bem inferior. “Ou seja, um segurado empregado, que pode ter renda menor que o MEI, gera um benefício de mesmo valor (salário-mínimo) com uma contribuição 5,5 vezes maior. Isso deixa claro que tratamentos diferenciados acabam gerando iniquidades, em especial, pela falta de rigor na criação dessas diferenças de tratamento”, afirmam os pesquisadores.
Outro exemplo citado é o de uma mulher de 47 anos, que faça contribuição ao MEI durante 15 anos sem interrupção e se aposente aos 62 anos. As contribuições capitalizadas corresponderiam a apenas 5,6% do fluxo esperado de aposentadoria. O resto seria bancado pelo RGPS, ou seja, todos os contribuintes. Os autores argumentam que o impacto disso será muito negativo nas próximas décadas, começando a aparecer já em 2030.
Com base nas análises, Constanzi e Sidone sugerem mudanças, argumentando que a criação do MEI não ampliou a cobertura previdenciária dos mais pobres e está deteriorando toda a Previdência Social. Entre os caminhos possíveis, apontam para:
- Procurar formas de restringir as novas inscrições no MEI apenas a trabalhadores com baixa capacidade contributiva, que de fato estejam inseridos de maneira estrutural no setor informal do mercado de trabalho;
- Avaliar a possibilidade de instituição de contribuição patronal para os contratantes pessoa jurídica de serviços do MEI, como forma de restringir a pejotização;
- Rediscutir o Simples Nacional, de forma a evitar que o subfaturamento seja incentivado como um mecanismo de redução da carga tributária.
Fatores críticos das aposentadorias de militares
Em outro capítulo da coletânea, os pesquisadores Bernardo Schettini, técnico do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e Thaís Vizioli, auditora do Tesouro Nacional, detalham a aposentadoria dos militares brasileiros, afirmando que estes possuem um sistema de previdência bem mais vantajoso que o dos trabalhadores civis dos setores público e privado. Apesar de responderem por apenas 1,2% do número de benefícios previdenciários pagos pelo governo federal e contribuírem com cerca de 1,5% da arrecadação, a despesa com a previdência dos militares corresponde a 6,4% do total.
Segundo os dados levantados, o sistema de previdência militar federal paga benefícios a 163 mil indivíduos e outras 124 mil famílias a custo anual de R$ 44,4 bilhões – 69% a mais do que os R$ 26,2 bilhões gastos com os militares da ativa. O déficit é crescente mesmo após a reforma implantada em 2019, pois ocorreu em termos bem mais brandos do que as mudanças implantadas para os civis, além de ir na contramão do que vem ocorrendo nos demais sistemas militares do resto do mundo.
Segundo os autores, essa despesa elevada ocorre em decorrência de quatro fatores. O primeiro motivo é a aposentadoria precoce, antes dos 50 anos. O segundo ponto é a integralidade e paridade com a remuneração dos ativos. Outra questão é a pensão integral e, na maioria das vezes, vitalícias. Por fim, as aposentadorias dos militares federais não são contributivas. Nos estados, esse quarto ponto já foi sanado com a instituição de contribuição. Entretanto, a maioria dos entes também enfrenta um problema crescente com a aposentadoria de policiais militares e bombeiros.
Brasil convive com inação e contrarreformas na Previdência
Thais Vizioli e Rogério Costanzi assinam juntos outro artigo, no qual levantam um histórico da Previdência Social no Brasil para mostrar que períodos de inação, em que nada é feito, além de uma série de contrarreformas, que vão contra a sustentabilidade do regime, jogam um fardo para as próximas gerações de trabalhadores brasileiros.
Atualmente, o Brasil gasta mais de R$ 1 trilhão por ano com despesas previdenciárias públicas e o Benefício de Prestação Continuada (BPC), pago a idosos de famílias pobres ou pessoas com deficiência. “Isso representa cerca de 15% do PIB, gasto muito superior ao que muitos países desembolsam com todo seu sistema de proteção social”, escrevem.
Os autores lamentam a falta de mudanças na aposentadoria rural, que manteve a permissão de homens se aposentarem com 60 anos e mulheres com 55, contra 65 e 62 na zona urbana. Os indicadores, dizem eles, mostram que a sobrevida na área rural é até maior, e por isso não há como justificar essa diferença de idade. “O resultado é que, embora responda por 20% da despesa, a clientela rural é responsável por apenas 2% da arrecadação para o RGPS. No ano de 2020, a arrecadação do RGPS rural foi suficiente para bancar apenas 6,4% da despesa total com essa clientela”, afirmam.
O retrato atual da Previdência Social no Brasil leva os autores a afirmarem que uma nova reforma deve ser feita em breve, de forma a “conciliar sustentabilidade, alta cobertura, suficiência e efeitos positivos na distribuição de renda, em associação com a construção de um sistema de proteção social mais equilibrado durante todo ciclo de vida”.
Entre as medidas que necessitam mudanças, os pesquisadores apontam para:
- Revisão automática da idade mínima de aposentadoria;
- Aumento da idade da aposentadoria rural;
- Convergência entre idades mínimas de homens e mulheres;
- Convergência mais rápida entre regras do regime geral e do regime dos servidores públicos;
- Mudanças nas regras do BPC, por prever o pagamento a idosos acima de 65 anos, desconsiderando o envelhecimento da população;
- Mudanças no regime de MEI;
- Mudanças no sistema de proteção social dos militares.
“O histórico, contudo, mostra que evitarmos contrarreformas e as armadilhas da inação já exigirá bastante esforço”, dizem sobre as condutas dos governantes nas últimas décadas.