Uma das prioridades do governo na área de infraestrutura é a aprovação do novo marco regulatório das ferrovias. O projeto está em tramitação no Senado Federal e o governo negociou para votá-lo diretamente no plenário nesta quarta-feira (2), mas não houve acordo. Reunião de líderes desta terça-feira (1º) definiu que a matéria não entrará na pauta do plenário desta semana.
O texto permite que ferrovias sejam construídas e operadas no regime de autorização, que é mais flexível que as atuais concessões. O objetivo é destravar investimentos privados em ferrovias, que hoje respondem por apenas 15% da matriz de transporte brasileira. A meta do Executivo é chegar a 30% nos próximos dez anos.
O projeto é de autoria do senador José Serra (PSDB-SP) e tem a relatoria de Jean Paul Prates (PR-RN). O governo apoia o texto, que, inclusive, está na lista de 16 projetos prioritários do Ministério da Economia para aprovação no Congresso entre o fim de 2020 e 2021.
Candidato derrotado a prefeito em Natal ainda no primeiro turno, Prates apresentou o relatório na semana seguinte às eleições. Ele emitiu parecer favorável ao texto, mas fez algumas modificações atendendo a pedidos dos senadores para tentar aprovar o projeto na Casa.
Mudança de regime
Pelo relatório, o principal avanço do projeto será permitir que ferrovias sejam construídas e operadas pelo regime de autorização, inclusive trechos abandonados. Nesse novo regime, ao contrário do atual, não haverá leilões. Basta que as empresas interessadas apresentem projeto para a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).
Caso o projeto seja aprovado, a empresa poderá construir e operar ferrovias no país por conta e risco. Os bens não serão mais reversíveis à União. A autorização terá prazo de 25 a 99 anos, a ser proposto pelo postulante a concessionário e aceito pela ANTT. O texto original, do senador José Serra, não determinava prazo mínimo e máximo.
"Acreditamos que o estabelecimento de prazo contratual permite melhor avaliação do negócio e traz mais segurança jurídica para o investidor", justificou Prates.
No regime de autorização, as empresas também terão liberdade para propor traçados, preços, níveis de serviço e suas especificações. Caberá ao órgão regulador aceitar ou não, além de sugerir aperfeiçoamentos. O papel do Estado será mais de supervisor e de instância de recursos em caso de práticas anticoncorrenciais. Também caberá ao Estado uniformizar e padronizar a regulação do setor, além de garantir a segurança do transporte.
Segundo o relator, embora os preços cobrados no regime de autorização não sejam previamente estipulados pelo regulador, as empresas autorizatárias sujeitam-se ao controle dos órgãos de defesa do consumidor e da concorrência, que têm autoridade para coibir a cobrança de preços abusivos.
O poder público também poderá rescindir o contrato das autorizatárias caso constate: negligência, imperícia ou abandono da linha; de transferência irregular da autorização para outra empresa; descumprimento reiterado dos compromissos assumidos, ou até mesmo em razão de excepcional relevância pública.
Atualmente, a construção e operação de ferrovias é feita pelo regime de concessão. É preciso fazer uma licitação, com estudos de construção e operação de ferrovias sendo feitos pelo governo, aprovados pelo Tribunal de Contas da União (TCU), e editais postos em leilão para interessados. O regime é considerado por alguns especialistas um dos empecilhos ao desenvolvimento do setor.
Projeto permite exploração de imóveis no entorno das linhas e estações
O projeto também prevê a “autorregulação ferroviária”, ou seja, o próprio mercado vai promover a gestão e a coordenação do trânsito de pessoas e de mercadorias por linhas de diferentes empresas. O Estado, através da ANTT e da Justiça, atuaria de maneira reativa para mediar conflitos.
Outra inovação da matéria é possibilitar a exploração dos imóveis em torno das linhas e estações ferroviárias. O objetivo é dar às empresas mais uma forma de financiamento das ferrovias, além das receitas com a tarifa. As atuais concessionárias têm amarras para licenciar atividades paralelas às ferrovias. O projeto permite explorar uma série de bens no entorno, da mesma forma que ocorreu com os aeroportos, para aumentar as receitas das empresas.
Segundo o senador José Serra, "a experiência japonesa e a norte-americana mostram que a exploração imobiliária do entorno das estações permite o florescimento de serviços de transporte de passageiros integralmente privados”. Todo o projeto, relata o autor, é inspirado nos modelos americano e japonês, além das próprias experiências brasileiras de transição do regime de concessão para autorização realizadas nas telecomunicações e nos portos.
O que o projeto prevê para as atuais concessionárias de ferrovias
Sobre as atuais concessionárias, que atuam no regime de concessão, o relator afirma que tentou em seu parecer reduzir a assimetria concorrencial entre autorizações e concessões, já que no novo modelo haverá empresas atuando sob o regime mais flexível e o mais inflexível.
Para isso, ele permitiu que as atuais concessionárias tenham mais liberdade para explorar as receitas imobiliárias no entorno das linhas férreas. Essa era uma das demandas do setor, já que hoje existem uma série de restrições para exploração imobiliária das concessões ferroviárias.
Porém, ele não atendeu ao principal pedido das atuais concessionárias: a possibilidade de migração dos contratos de concessão para autorização, como já aconteceu no setor de telefonia, por exemplo.
"Embora, em nosso entender, essa pudesse ser uma solução amparada pela Constituição para oferecer maior flexibilidade e equanimidade às empresas incumbentes, as argumentações que nos foram encaminhadas apelam para que somente se faça essa migração após a experimentação do novo modelo de autorização", argumentou o relator.
Atuais concessionárias pedem mudanças
Fernando Paes, diretor-executivo da Associação Nacional de Transportes Ferroviários (ANTF), que representa as atuais concessionárias de ferrovias, diz que o projeto foi muito bem recebido pelo setor, que enxerga o modelo de autorização ideal para os contratos ferroviários. Mas a associação defende que o texto contemple as atuais ferrovias, permitindo a migração dos contratos.
“A migração é importante porque aumenta a abrangência e eficácia da lei, colocando toda a malha ferroviária já nesse modelo. Também evitaria o problema de assimetria regulatória, que seria deixar funcionando dois regimes ao mesmo tempo [concessão e autorização]”, explicou Paes à Gazeta do Povo.
A preocupação das atuais concessionárias é com a competição com as futuras ferrovias autorizadas. Como a autorização tem metas mais flexíveis, menos imposições regulatórias e mais liberdade de preços, as concessionárias temem que a competição fique desigual, já que elas têm que cumprir uma série de amarras regulatórias. Com isso, as ferrovias autorizadas poderiam "roubar" a carga das malhas concedidas, levando as atuais concessionárias a prejuízos.
A ANTF pede, ainda, que os atuais contratos passem por processos de reequilíbrio econômico-financeiro. Os contratos ferroviários nunca passaram por reequilíbrios, o que se tornou comum em outros modais. A visão do setor é que há uma regulação muito pesada sobre as atuais concessionárias, o que diminui a lucratividade e a competição das malhas.
“O ideal é que o Congresso e o Poder Executivo olhem para o PLN como uma possível evolução de toda a regulação do setor, não só pensando para novos projetos, sejam esses 'greenfield' (novos) e 'shortlines' (ferrovias de curta distância), mas pensando também nas atuais concessões, garantindo reequilíbrio dos contratos e a migração [para o regime de autorização]”, afirma Paes.
Para ANTF, projeto tem potencial para destravar linhas mais curtas
Questionado se o regime de autorização será suficiente para garantir a expansão da malha ferroviária no país, em especial de projetos "greenfield", Paes disse que será um desafio.
“Tradicionalmente, recursos públicos são associados à construção de ferrovias, porque é um processo longo, com longo prazo de maturação, riscos regulatórios, ambientais e políticos. [Mesmo com a autorização] será um desafio pegar uma ferrovia estruturante, um tronco ferroviário [que corte vários trechos do país]", afirmou. "Será importante criar um ambiente de segurança jurídica que convença o setor privado a colocar os recursos que só dali há muitos anos serão retornados.”
Ele disse que o projeto tem mais potencial para destravar as chamadas "shortlines", ou seja, ferrovias de curta distância. Essas ferrovias não interessam para as grandes concessionárias, que não veem vantagem financeira em operá-las nas atuais regras de concessões.
“São trechos que chamamos de antieconômicos, mas que, se você se você tiver modelo mais flexível de autorização, com menos custos operacionais, talvez faça sentido para outras empresas que queiram entrar no setor”, explica o diretor da ANTF.
Foi o que ocorreu nos Estados Unidos, ao implementar o regime de autorização. Lá, o mercado passou de concentrado para mais de 500 empresas, a maior parte operando "shortlines".
Reforma tributária promete simplificar impostos, mas Congresso tem nós a desatar
Índia cresce mais que a China: será a nova locomotiva do mundo?
Lula quer resgatar velha Petrobras para tocar projetos de interesse do governo
O que esperar do futuro da Petrobras nas mãos da nova presidente; ouça o podcast