Desde o início de 2018, o PSD2 (Payment Services Direct) transformou o sistema bancário europeu e acelerou o chamado Open Banking. Pela nova regulação, os bancos europeus tiveram de abrir suas APIs, ou seja, a interface por onde os sistemas “conversam”, e disponibilizar os dados, antes fechados a eles, a terceiros — como outros bancos concorrentes e fintechs, desde que autorizados pelo cliente/usuário.
Para que esta transformação fosse possível, os bancos tiveram de investir em tecnologia. Muitos aproveitaram a oportunidade para, também, repensarem estratégias e criarem novos serviços e negócios. É o que conta Marika Lulay, CEO global da GFT Technologies, multinacional alemã que desenvolve tecnologias voltadas para o setor financeiro.
Lulay cita o caso de uma fintech que criou um aplicativo que capaz de ler os dados dos clientes e seus gastos com energia — sempre com consentimento do cliente, reforça. A partir da análise desses dados, a empresa é capaz de indicar, por exemplo, um novo fornecedor que vá fazer com que o cliente gaste menos. O banco, então, fica com uma comissão pelo serviço prestado pela fintech. “Isso poderia ser feito em relação a qualquer gasto. O PSD2, portanto, permitiu que novos serviços sejam oferecidos”, afirma.
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No Brasil, este movimento ainda está ganhando força e sendo debatido por órgãos reguladores do sistema, para que se chegue ao modelo ideal. Para Lulay, porém, os desafios a serem enfrentados por aqui não são muito diferentes dos lá de fora, e passam por uma tomada de decisão estratégica. “Os bancos precisam decidir se vão apenas prover os dados ou se eles próprios vão oferecer novos modelos de negócios, baseados nos dados que possuem e nos de outros”, avalia.
Os passos da modernização dos bancões
A CEO diz que, desde o ano passado, bancos brasileiros têm procurado a empresa interessados nos passos dados pelas instituições europeias, cientes de que há um novo cenário sendo desenhado.
O primeiro passo dos bancos que se abrem a esse novo cenário é tomar uma decisão: os bancos, em especial os grandes e tradicionais, vão querer estar apenas nos bastidores, administrando as transações, ou vão querer estar próximos aos clientes?
O banco, então, tem que escolher entre se colocar como a “indústria” por trás das transações, focando em ser o mais rápido e mais eficiente, mas, talvez assim, sem manter sua marca forte junto ao cliente, ou pode optar por oferecer novos modelos de negócio aos clientes, inclusive ajudando-o a otimizar e administrar suas finanças pessoais. “Os bancos europeus se tornaram mais sofisticados a partir do entendimento de que não conseguem atuar nas duas frentes. Este também deve ser o desafio no Brasil”, acredita a CEO.
Definida esta estratégia, as fintechs podem se tornar grandes parceiras dos bancos, diferente da suposta ameaça que essas empresas inovadoras pareciam oferecer ao setor quando surgiram. Isso já é observado na Europa, e aconteceu, segundo Lulay, porque a maioria das fintechs oferecem soluções pontuais, que cobrem um pedaço do negócio dos bancos. “Elas perceberam que provavelmente é melhor procurarem negócios B2B com os bancos. Do outro lado, os bancos aprenderam que podem integrá-las e não as ter apenas como concorrência. É uma relação de ‘co-ompetição’, ou seja, colaboração e competição”, explica.
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Além disso, é nas fintechs que grandes bancos também encontram um espaço de teste, de laboratório para novos serviços e ideias. “Em um banco tradicional, quase não há espaço para testes, erros. Por isso grandes bancos, inclusive no Brasil, estão se abrindo para startups”, comenta Marco Santos, CEO na América Latina da GFT.
Neste novo momento, o que realmente tem preocupado os bancos não são as fintechs, mas os grandes conglomerados de tecnologia, como Google, Apple e Amazon, que têm poder, dinheiro e alcance global. “As fintechs são os peixes pequenos. Os bancos estão no caminho para se tornarem empresas de tecnologia, então a concorrência é outra”, completa.
Blockchain, Inteligência Artificial e Cloud Computing: o que vem por aí
“Mobile first” foi o mote da última transformação tecnológica, que já começa a ficar no passado na visão de Lulay. Agora, a executiva acredita que é o momento da inteligência artificial (IA) assumir o protagonismo — o que não significa que esta seja uma mudança imediata, mas que, em um futuro próximo, sobreviverão os negócios que tiverem aderido a ela.
Como um primeiro passo, a alemã aponta a migração dos sistemas antigos dos bancos para a nuvem, tendência já observada no Reino Unido e nos Estados Unidos. Além de mais barato em termos de licenças, a nuvem possibilita que as instituições utilizem as ferramentas nativas dos provedores, como do Google, por exemplo, auxiliando na análise de dados e na utilização destas informações em seus negócios. A escolha de qual provedor utilizar também vai depender das decisões estratégicas de cada banco, mas Lulay conta que a maioria tem optado por dois provedores para se beneficiarem de diferentes propostas e ferramentas.
Uma dificuldade enfrentada por empresas tradicionais, segundo Santos, é que seus sistemas costumam ser monolíticos, ou seja, concentrados em um grande bloco, e a migração para a nuvem se torna mais complexa. “O trabalho de desconstruir este bloco em pedaços menores, de microsserviços, por exemplo, exige reengenharia, e ao migrar é preciso pensar como refazer os compartimentos, o que vai trazer benefícios...É preciso uma boa arquitetura e conhecimento para ajudar o cliente — os bancos — a planejar a implementar”, explica o diretor.
Uma das possibilidades, nestes casos, seria o que os executivos chamam de “lift and shift”, em que se “pega” o software e apenas o transporta para a nuvem, mas ele contina monolítico. “É mais barato, em termos de armazenamento, uso de CPU, mas não muda em nada o sistema, não é uma plataforma aberta, é apenas um software funcionando em outro lugar”, frisa Lulay. “Para mudar isso, é necessário conhecimento do sistema financeiro e de tecnologia, senão você não sabe para quê e por quê mudar”, acrescenta.
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Outra tecnologia, esta mais diruptiva e ainda não tão difundida, é a blockchain. Conhecida mais pelo seu uso atrelado a criptomoedas, ela não é limitada a isso. A blockchain permitiu os “livros razão distribuídos”, segundo Lulay, bastante promissora por permitir que se construam sistemas sem uma função central.
Por exemplo, muitos processos são baseados na necessidade de haver uma ponta com um nível de confiança, que podem ser bancos, cartórios, tabeliões, responsáveis pelo chancelamento destes processos, e, então, duas pessoas possam negociar. Na blockchain, a confiança é transferida para a tecnologia. “É um conceito incrível, porque é possível ver facilmente que muitos negócios e instituições que ganham dinheiro para proverem confiança podem ser excluídos do mercado”, diz Lulay.
Como IA, a tecnologia blockchain também não deve ser uma mudança imediata. Há, inclusive, uma dificuldade para que estas operações cresçam em escala e se tornem rápidas o suficiente. Apesar disso, se há dois anos era uma tecnologia de que as pessoas apenas falavam sobre, hoje já é possível ver, na Europa, alguns bancos utilizando a tecnologia de maneira parcial, semidescentralizada, para pagamentos transfronteiriços. “Considero blockchain a grande tecnologia para o sistema financeiro no futuro, mas ainda vão alguns anos até vermos grandes operações”, afirma a CEO.
A GFT já realizou testes com a tecnologia no Reino Unido, na França e na Itália, experimentando diferentes provedores para verem como cada um se comporta diante dos problemas que se propõe resolver. Na Itália, desenvolveram uma solução, junto a dez bancos, que visa diminuir fraudes no pagamento de faturas de pequenos e médios empreendedores. “Por não ser controlado apenas por um banco, que poderia agir de forma fraudulenta, é mais confiável. Isso é muito importante: uma solução blockchain deve ser trabalhada por muitas partes, senão não faz sentido. É sobre muitos, que não se conhecem, mas que confiam na tecnologia”, frisa.
Desafios na liderança
Por enquanto, observamos no Brasil os primeiros bancos digitais a aderirem ao Open Banking, como o Original — projeto, inclusive, encabeçado pela GFT. Também está em discussão, no Banco Central, um novo modelo para pagamentos instantâneos, P2P.
De qualquer forma, as transformações por vir não são apenas tecnológicas, mas culturais, o que exige que as empresas repensem suas operações. Para Lulay, a grande diferença é que antes você tinha tempo: alguém tinha uma ideia, preparava um relatório, uma apresentação, a ideia era discutida em comitês e, depois de muitas contribuições, análises de riscos e feedbacks, a decisão era tomada. Hoje, tudo é mais rápido, e em vez de tempo para planejar e executar, de forma estável, o que se vê são mais testes e experiências. “Os bancos, por exemplo, precisam ter tecnologias que ainda não estão provadas, que ainda não possuem grandes elementos de pesquisa e desenvolvimento. Então precisam testar”, afirma.
Por óbvio, ainda que neste cenário, é preciso respeitar as legislações e os bancos não podem, simplesmente, testar com seus clientes algo que pode ser um fracasso. Para Lulay, trata-se de uma grande contradição: é preciso ser fácil, ágil e flexível, mas com cuidado para não estragar tudo e ir parar na cadeia. “Os mais jovens, principalmente, querem ter liberdade e autonomia, enquanto as chefias tradicionais querem manter tudo sob seu controle. Lidar com estas contradições é um desafio das lideranças mundiais. Como crescer e não se tornar burocrático? Como manter o espírito inovador, de startup, mas ao mesmo tempo se beneficiar do poder de ser uma grande empresa?”, pondera.
Por fim, Lulay acredita que acabaram os tempos em que membros de conselhos apenas tomavam decisões. “É preciso que as posições de topo entendam de tecnologia de verdade, tenham opinião sobre isso e não apenas tenham o cara da TI pra representá-lo. Este é o desafio para as lideranças”, finaliza.
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