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O Google tentou mudar a China, mas a China é que está mudando o Google

O Google deixou a China em 2010, mas ensaia o retorno ao país. | DOUG CHAYKA/NYT
O Google deixou a China em 2010, mas ensaia o retorno ao país. (Foto: DOUG CHAYKA/NYT)

Desde a sua fundação em uma garagem no Vale do Silício, 20 anos atrás, o Google se considera, com orgulho e muitas vezes ostensivamente, o arquiteto de um novo modelo de virtude corporativa.

“O Google não é uma empresa convencional”, afirmaram os fundadores Larry Page e Sergey Brin aos investidores na oferta pública inicial de ações, em 2004. Segundo eles, a empresa sempre vai colocar os valores em longo prazo acima do ganho financeiro em curto prazo. “Fazer do mundo um lugar melhor” seria um dos principais objetivos do negócio e sua ética poderia ser resumida em um lema simples: “Não seja do mal”.

Desde então, essa sensibilidade outrora revolucionária foi adotada e diluída por muitos outros na indústria de tecnologia, transformando-se em material de paródia e ceticismo. O próprio Google arrefeceu seu zelo anterior; a Alphabet, sua empresa-mãe, recentemente abandonou algumas referências ao princípio de seu código de conduta.

Mesmo assim, se você trabalha no Google ou se acreditou em seu apelo missionário, pode mencionar momentos em que seu etos foi mais que exagero de marketing. O exemplo mais óbvio: em 2010, após quatro anos tentando operar um mecanismo de busca censurado na China sob um regime que se tornava cada vez mais hostil às liberdades online, a empresa fez algo que outra mais convencional não teria feito: disse que tinha aguentado demais e se retirou daquele imenso mercado.

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Agora, parece ter mudado de ideia. Com um plano chamado Dragonfly, a empresa está testando uma versão censurada de seu mecanismo de busca para o mercado chinês. Em uma reunião recente com os funcionários, Sundar Pichai, o presidente-executivo do Google, disse não estar “nem perto de lançar” um site de busca na China, mas defendeu a exploração do mercado pela empresa.

Defesa essa que não é infundada — afinal, sob qualquer lógica racional administrativa, seria insano esperar que uma das maiores empresas de internet do mundo ficasse de fora do maior mercado mundial da rede, especialmente quando vários rivais americanos operam sob as regras intrusivas do governo. A China é o terceiro maior mercado da Apple; Microsoft e Amazon oferecem uma série de serviços por lá.

Mas, esse afastamento não era para ser a marca registrada do Google? Deixar a China foi o tipo de decisão não ortodoxa da qual a empresa de busca sempre se orgulhou — um movimento que sacrifica a prosperidade financeira em prol da moral, que mostra a funcionários e clientes que a empresa, com a sua missão hercúlea de organizar toda a informação da vida, era motivado por algo mais profundo do que a ambição financeira.

Ativistas das liberdades online temem que o retorno do Google tenha consequências perigosas no mundo real, talvez acelerando uma grande onda de restrições na China e em outros lugares. Porém, o impacto mais duradouro pode estar na maneira com que teremos que reimaginar o tipo de empresa que ela foi e o que representava.

É difícil não ver essa volta como uma decepção terrível, uma atitude que mostra claramente uma companhia que a cada dia se assemelha mais e mais às corporações convencionais em que já jurou nunca se tornar.

“Se o Google quer ser visto como qualquer outra empresa global, tudo bem. Basta que deixe bem claro que sua obrigação principal é com seus acionistas e seu balanço. Só que essa agora não é sua retórica, e acho justo julgá-lo pelos padrões que definiu para si”, disse Ben Wizner, diretor do Projeto de Discurso, Privacidade e Tecnologia da União Americana de Liberdades Civis.

Em declaração, um porta-voz do Google disse que não ia comentar sobre a especulação de planos futuros, mas os líderes da companhia contestaram a ideia de que retornar à China seria uma reviravolta moral. Em uma reunião do pessoal, em meados de agosto, Pichai sugeriu que essa volta estaria de acordo com a visão que a empresa tinha, em 2006, quando pela primeira vez concordou em censurar resultados para agradar Pequim.

Na época, disse em um blog que “filtrar nossos resultados de busca claramente compromete nossa missão”, mas acrescentou que “não oferecer as buscas do Google para um quinto da população mundial a compromete mais severamente”.

Uma internet muito diferente

Há outros fatores por trás dessa atitude. A internet mudou muito desde 2010, e os executivos da empresa começaram cada vez mais a ver sua decisão de deixar a China como algo impensado, ingênuo e contraproducente.

A decisão do Google começou com uma invasão chinesa em seus serviços visando descobrir dissidentes e espiões. O ataque chocou e irritou os fundadores. Em entrevistas, Brin, que nasceu na União Soviética, comparou o governo chinês às “forças totalitárias” que moldaram sua juventude. Ele e outros executivos sugeriram que assumir uma posição na China poderia definir um tipo de limite a regimes repressivos em outros lugares.

“Acho que em longo prazo, eles vão ter que se abrir”, disse Brin ao New York Times.

Desde então, as regras ali só endureceram, enquanto uma série de outros governos têm intensificado os esforços para policiar o discurso online.

Agora, até mesmo governos democráticos estão adotando controles rigorosos à expressão online. Por exemplo, na Europa, a regra do “direito de ser esquecido” forçou o Google e outros mecanismos de busca a remover os resultados que podem ser considerados invasão de privacidade, e mais regras que regem a propaganda e o discurso de ódio estão sendo elaboradas. Além disso, as denúncias de Edward Snowden mostraram que os governos norte-americano e britânico também hackearam grandes empresas de internet, incluindo o Google.

“Esse argumento me deixa muito triste: o mundo está se tornando mais como a China, portanto podemos também estar na China”, disse Rebecca MacKinnon, defensora da liberdade na internet do think tank New America.

Ela afirma que os defensores da liberdade de expressão e dos direitos humanos sempre viram o Google como um aliado e que essa mudança de atitude em relação à China seria considerada uma grande derrota.

“Escrevi um livro onde avisei que a China é a prova de como os governos autoritários se adaptam à internet e a partir daí começam a mudá-la. Ver empresas como o Google agora jogando a toalha e dizendo: ‘Bem, é por aí que a internet está indo’ e ‘Se não pode vencê-los, junte-se a eles’, é muito preocupante”, disse MacKinnon.

Se o Google voltar para a China, provavelmente terá que concordar com um regime de censura ainda mais restritivo do que o que existia anteriormente. Pichai prometeu ser transparente a respeito de como tal plano pode transcorrer, mas defensores disseram que só a transparência não mitigaria suas preocupações sobre a mudança de atitude.

“O Google pode até estar tentando promover a abertura e a sociedade livre, mas a transparência não basta para isso. Ela pode ser direcionada para o resto do mundo, mas não para o povo chinês, ainda que a empresa não diga explicitamente o que ele não pode ver”, disse Wizner, da União Americana das Liberdades Civis.

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Certamente, ainda é cedo, e os planos do Google não são claros. Ainda há a possibilidade de que a empresa pense em alguma maneira completamente não tradicional de satisfazer os censores chineses sem perder sua alma.

Mas isso parece improvável. A conclusão mais plausível é a mais óbvia: o Google enfrentou a China e perdeu.

Michael Posner, professor de Ética e Finanças na Faculdade Stern de Administração da Universidade de Nova York, disse: “Não se engane. Será uma vitória enorme para o governo chinês e qualquer outro que queira restringir severamente a internet”.

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